Tendo crescido com insegurança alimentar, Kimi Ceridon e a irmã veem como as suas experiências de infância continuam a deixar marcas nas suas vidas.
Ceridon recorda a forma como se esgueirava para o quarto com todos os extras que encontrava. E agora, ela procura obter uma porção justa quando partilha com alguém.
E quando a pandemia chegou, Ceridon diz que ela e a irmã falaram sobre a consciência que tinham de ter para não entrarem em pânico e correrem para as lojas para acumular comida.
"Vivemos na miséria e agora aqui estávamos nós novamente a viver na escassez, e embora ambas já não tivéssemos preocupações com a insegurança alimentar, isso estava a provocar muita ansiedade", diz Ceridon, proprietária da Life Love Cheese, uma empresa de pastoreio em Boston.
Muitas pessoas gostam de ter uma despensa cheia de alimentos disponíveis para si e para a sua família. Mas quando a quantidade de alimentos se torna excessiva, está escondida ou se torna demasiado valiosa para ser deitada fora quando se estraga, a pessoa pode estar a sofrer de transtorno de acumulação de alimentos, dizem os especialistas.
Estima-se que 2% a 6% das pessoas sofram de um transtorno de acumulação, de acordo com a International OCD Foundation, uma organização sem fins lucrativos que apoia pessoas com transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). Entre essas perturbações está a acumulação de alimentos.
Cerca de 75% dessas pessoas têm outra perturbação de saúde mental além do transtorno de acumulação, como depressão grave, transtorno de ansiedade social ou transtorno de ansiedade generalizada, segundo a fundação.
É natural ter uma relação emocional com a comida e obter conforto ao tê-la disponível, diz Kate Daigle, conselheira profissional e especialista certificada em distúrbios alimentares em Denver.
Mas para as pessoas com transtorno obsessivo-compulsivo, um historial de escassez de alimentos ou outros traumas, o desejo de ter uma reserva de alimentos pode tornar-se debilitante, aponta a psicóloga de Nova Iorque Alexis Conason.
O que é o transtorno de acumulação de alimentos?
A acumulação de alimentos pode variar consoante o acesso que a pessoa tem à compra de alimentos, diz Daigle.
Para as crianças pequenas pode significar esconder comida dos pais ou de quem cuida delas no quarto ou no armário - por vezes, comem-na, mas outras vezes não, acrescenta.
"É apenas tê-la lá como uma forma de segurança emocional, vinda de uma sensação de privação", afirma Daigle. "Não necessariamente uma privação física, mas talvez emocionalmente tenha a sensação de privação ou escassez em relação à comida".
Para os adultos ou crianças com acesso a dinheiro, isso pode significar sair e comprar grandes quantidades de comida e, por vezes, guardá-la também em esconderijos, aponta Daigle.
Qual é o mal de acumular comida?
É interessante falar de acumulação de alimentos após os confinamentos da pandemia de Covid-19, porque a acumulação de alimentos serviu um objetivo nessa altura, diz Daigle.
Mas para muitos americanos não é necessário ter uma cave, uma despensa ou uma casa inteira cheia de comida, aponta.
A obsessão de acumular alimentos pode ter um impacto financeiro quando uma pessoa gasta todo o seu dinheiro em comida e não consegue satisfazer outras necessidades básicas. Há também preocupações sanitárias e de saúde quando a comida se estraga, diz Daigle.
Há também preocupações relacionadas com a saúde mental e as relações sociais, acrescenta. Algumas pessoas que se envolvem em comportamentos de acumulação de alimentos podem isolar-se por vergonha ou por se sentirem mais confortáveis perto da comida do que em público.
Porque é que as pessoas acumulam comida?
Armazenar mais comida do que a que necessitamos num determinado momento é, de certa forma, estratégico e comum na natureza, diz Erin Rhinehart, professora de neurociência na Universidade Susquehanna em Selinsgrove, Pensilvânia.
"Evoluiu para como que um seguro contra a fome", afirma.
Muitos animais desenvolveram mecanismos de armazenamento de alimentos para proteger a sua sobrevivência, acrescenta.
"Se os animais passarem por um curto período sem comida, esse comportamento aumenta", diz Rhinehart. "É basicamente uma apólice ou uma forma de garantir que nunca se vai ficar sem comida".
A acumulação de alimentos pode partilhar problemas subjacentes com - mas não é necessariamente causada por - distúrbios alimentares, aponta Daigle.
"Não se trata da comida. Tem a ver com o comportamento", aponta ela. Alguns distúrbios alimentares têm a acumulação de alimentos como parte dos seus comportamentos, e a mesma experiência pode levar as pessoas a ter comportamentos de acumulação e distúrbios alimentares, diz.
Muitas pessoas com estes comportamentos podem ter sofrido traumas significativos na sua infância.
"Talvez tenha havido uma verdadeira falta de recursos financeiros disponíveis para a alimentação da família e, por isso, a criança pode acumular os alimentos que consegue", aponta. Na idade adulta, as pessoas podem continuar a acumular alimentos com medo de que volte a haver escassez.
Mas a falta de outras coisas de que as crianças precisam também pode levar à acumulação de alimentos, diz Daigle.
"Pode acontecer quando a comida é controlada ou quando as necessidades emocionais de uma criança não são satisfeitas", afirma.
A segurança e a proteção não estão garantidas em famílias com toxicodependência, abuso físico ou emocional, ou negligência, aponta.
"Isso pode fazer com que se agarrem a objetos de conforto, quer se trate de comida ou de outros objetos sentimentais, para tentar satisfazer essas necessidades", diz Daigle.
Curiosidade e compaixão
É comum que a acumulação de alimentos cause vergonha e leve as pessoas ao isolamento, por isso lembre-se de abordar os entes queridos que acha que podem estar a acumular com curiosidade e sem julgamento, afirma Daigle.
Em vez de se concentrar no quão chocante pode achar os comportamentos, questione-os sobre a sua experiência emocional, acrescenta.
Se vir este comportamento em si mesmo, saiba que há formas de se sentir melhor, diz Daigle. O próximo passo é encontrar apoio profissional para superar quaisquer traumas profundos e necessidades não satisfeitas, de forma a substituir a acumulação de alimentos por mecanismos de sobrevivência mais saudáveis, acrescenta.
No entanto, o profissional com quem trabalha não deve ser um nutricionista focado em dieta ou alguém que o envergonhe por causa da comida. Em vez disso, procure um profissional com experiência em trauma, distúrbios alimentares, TOC, ansiedade e comportamentos compulsivos, afirma.
"O mais importante é saber quanto tempo e espaço isso está ocupar na sua vida", diz Conason. "Se sentir que está a impedi-lo de fazer coisas de que gosta ou a interferir com a sua qualidade de vida, é definitivamente uma boa ideia procurar ajuda."