“Na melhor das hipóteses, num centro de saúde espera-se seis meses para marcar uma primeira consulta de psicologia”

17 fev 2022, 07:03
O bastonário da Ordem dos Psicólogos Francisco Miranda Rodrigues. Fotografia: Ordem dos Psicólogos

Em entrevista à CNN Portugal, o bastonário da Ordem dos Psicólogos, Francisco Miranda Rodrigues, não hesita em apontar críticas à forma como a saúde mental tem vindo a ser trabalhada em Portugal. Da falta de psicólogos à “incompetência e negligência” dos vários governos sobre esta questão, da desvalorização do impacto da pandemia na saúde mental ao PPR que irá colocar em marcha necessidades com duas décadas, são vários os pontos fracos apontados.

Já é possível fazer um balanço do impacto da pandemia na saúde mental?

Balanço julgo que não, temos de aguardar mais algum tempo para termos resultados de investigações que nos permitam fazer um verdadeiro balanço. O que sabemos é que o impacto tem sido generalizado, a maior parte da população acabou por sentir sofrimento psicológico derivado a esta pandemia, nuns casos durante mais tempo, noutros menos tempo. Existiram também pessoas que acabaram por desenvolver situações mais graves de perturbação mental e até pessoas que já tinham perturbações e que as agravaram. Tivemos de tudo isto um pouco, mas quando falamos do impacto na maioria da população, estamos a falar não necessariamente de perturbação mental, mas de sofrimento psicológico, de problemas psicológicos com uma variação daquilo que é a sua escala de sofrimento.

A questão da saúde mental não é de agora. Podemos dizer que a pandemia veio deixar ao descoberto uma outra pandemia que até agora não tinha tanto impacto mediático como tem agora?

Impacto mediático é uma expressão que traduz razoavelmente bem a questão. Houve felizmente, durante a pandemia, uma maior visibilidade sobre esta matéria. Como esta dimensão do sofrimento psicológico se tornou mais generalizada, isto tornou-se uma coisa de todos, praticamente. E isso fez com que fosse algo presente na agenda mediática e, portanto, passou a ter uma visibilidade muito maior. Isso é muito importante, porque naturaliza estas questões, faz delas o que são, são coisas da nossa vida como outros aspetos da saúde. 

A definição de saúde da Organização Mundial da Saúde tem essa componente lá, a da saúde física, mental e social e não só ausência de doença, mas também bem-estar. Isto estava lá, nós é que não fazemos disso uma realidade sempre presente e, de facto, é por isso, que falar em saúde mental acaba por ser tão relevante, porque é importante chamar a atenção para ela até que ela ganhe essa presença, visibilidade e atenção no dia-a-dia, não só das pessoas, mas também, em consequência disso, dos decisores políticos e das prioridades políticas para que, de um ponto de vista social, se possam ver medidas que contribuam, não só para um maior equilíbrio da saúde que inclua a saúde nesta dimensão psicológica, mas também que com isso se ganhe do ponto de vista social.

O doutor ainda agora falava que a iniciativa também tem de partir dos decisores políticos, mas nas reuniões dos peritos da DGS no Infarmed pouco ou nada se falou de saúde mental nestes dois anos de pandemia. Isto é uma falha?

Julgo que tivemos várias fases relativamente a isso na pandemia. Inicialmente, foi desvalorizado, claramente. Houve alguma desvalorização da importância que isso tinha para o combate à própria pandemia. Inclusivamente chegamos a ouvir, naquelas célebres conferências de imprensa iniciais em que praticamente o país parava para ver e ouvir, um discurso de total desvalorização das pessoas que estavam a sofrer, naquele momento, do ponto de vista psicológico. É desvalorizar tudo o resto que não é doença. Como não tem diagnóstico não é importante. Isso tem que ver com uma mudança de paradigma que é necessária fazer. No domínio da saúde mental, não é só a pessoa que tem doença mental que tem de ser acompanhada, esse paradigma está errado, até porque não nos permite ter uma atitude preventiva relativamente aos problemas que surgem na saúde mental.

Acabamos por não ter uma política de saúde mental, acabamos por ter uma política de doença mental. Por exemplo, o Plano de Recuperação e Resiliência [PRR] que vem com uma aposta forte de investimento em estruturas que eram há 20 anos urgentes para a doença mental e isso é positivo que agora aconteça, temos todos de estar satisfeitos por isso acontecer. A questão é que é preciso que não nos esqueçamos que isso não vem dar a resposta necessária ao que nós hoje temos como necessidade. Costumo alertar muitas vezes que não há nada previsto para os psicólogos nos centros de saúde. Nada, nada. O que aconteceu durante a pandemia a esse nível, nessas reuniões e até determinada fase, foi um pouco um reflexo daquilo que sempre se viveu até aqui e das estruturas, da forma como estão organizadas. A resposta às necessidades ao nível da saúde mental em Portugal estão organizadas com base num paradigma que é ou tem doença ou não tem doença. E isso está errado e tem que ser mudado. 

Tudo isto pode ser um espelho de como a saúde mental tem sido abordada em Portugal? Durante a pandemia foram feitas mais de 130 mil chamadas para a linha de aconselhamento psicológico e parece que isso não levou a uma ação posterior...

Eu acho que a resposta a isso é que depende de nós e acho que nós temos de nos habituar a olhar mais para as coisas desta forma. Nós todos, cada um com os seus papéis e responsabilidades, enquanto cidadãos, ao fazermos da nossa voz um instrumento para expressar o que necessitamos e o que achamos que deve ser decidido pelos políticos, estaremos a contribuir para que haja medidas diferentes nesta área e que isto não seja esquecido. E julgo que tenham existido algumas medidas que apontam para que esquecido não seja. Agora, eu acho que nós nunca podemos dar as coisas pura e simplesmente como adquiridas. Se algo é necessário, temos de lutar por isso e continuar a sublinhar a sua importância até que existam as respostas necessárias. Deu o exemplo e bem do serviço de aconselhamento psicológico. A linha foi criada e mantém-se.

No caso do reforço que aconteceu nas escolas, temos de olhar para isto pelos factos. Foram resolvidos todos os problemas de necessidade de recurso do número de psicólogos nas escolas? Não, não foram. Mas foram supridas muitas? Sim. Podemos dizer que houve um investimento claro nesta matéria? Sim, podemos, porque quando olhamos para o número de psicólogos que tínhamos nas escolas há cinco anos, estávamos a falar de cerca de 700 e qualquer coisa, hoje em dia estamos a falar de perto de 1.700. Bom, dá-me ideia de que alguma coisa mudou, as coisas têm mudado. Isso não significa que esteja tudo resolvido e que não continuem a haver necessidades.

No entanto, é diferente, por exemplo, da realidade que encontramos nos centros de saúde. Há 20 anos que não abria um concurso e um concurso que abriu há quatro anos continua sem ter ninguém colocado. Há coisas que estão por resolver e há coisas que têm de mudar para que isto não aconteça sistematicamente. Eu não ouço ninguém dizer que não faltam psicólogos nos centros de saúde, mas não se está a discutir essa necessidade. Toda a gente acha que, de facto, o número é absolutamente insuficiente.

Não seria também importante dotar os médicos de família de mais conhecimento? Eles acabam por ser, muitas vezes, o primeiro e o último contacto de muitos pacientes.

Mal não faz e os médicos sabem, como nós sabemos, que a atualização permanente de conhecimentos tem de estar sempre presente. Não me parece que alguém possa refutar essa afirmação, agora, também não me parece que a questão principal seja essa, a questão talvez seja, em primeiro lugar, se existe ou não existe médicos de família e em segundo lugar se existem psicólogos para depois enviar as pessoas que chegam ao médico de família e precisam de ser referenciadas para psicólogos.

Coloco a questão de dotar estes médicos de mais conhecimento porque são eles que, muitas vezes, prescrevem os fármacos e o consumo de antidepressivos, por exemplo, tem vindo a aumentar... 

Também é sabido que receitam muitas vezes os fármacos porque, de facto, não existem lá os psicólogos. Para os centros de saúde temos um rácio de 2,5 psicólogos por 100 mil habitantes. Temos um número de psicólogos que é inferior a uma média de um por concelho. Mesmo que um médico identifique essa necessidade e mesmo que seja dos sítios em que tem um psicólogo, como é que é possível que esse psicólogo dê resposta  a toda a população possa necessitar? Isso não é possível. Já existem mecanismos para colocar em lista de espera só as pessoas mais necessitadas entre as necessitadas, porque se não a lista de espera seria interminável. E mesmo assim, na maior parte dos sítios e na melhor das hipóteses, num centro de saúde espera-se seis meses para marcar uma primeira consulta e depois pode esperar mais seis meses para uma segunda. Numa intervenção psicológica não é compatível com isto. Os psicólogos têm sessões de 45, 50 minutos e que têm de ser espaçadas por pouco tempo para que a intervenção possa ter resultados, porque pouco tempo não são seis meses, era uma semana ou quinze dias, isso é que é o recomendado. Esse é que é o problema. Aquilo que toda a investigação demonstra é que as pessoas ocupam os médicos de família e as urgências por necessidades que, no fundo, são psicológicas e que deveriam estar a ser acompanhadas por psicólogos.

E quais as consequências de não haver essa intervenção de a pessoa ter de esperar seis meses por uma primeira consulta e seis meses pela seguinte?

[O seu estado] Vai agravar. Algumas pessoas sofrem mais, sofrem durante mais tempo e até podem ultrapassar a situação sozinhas, digamos assim. Podem ficar mais resquícios do que aconteceu ou menos, mas outras agravarão a sua situação e isso levará à existência de perturbações mentais. Por isso, alertamos tanto para a importância do papel dos psicólogos para fazer essa prevenção. Hoje em dia, os psicólogos que estão nas escolas, mais do que fazer uma intervenção preventiva, estão a fazer o trabalho que deveriam estar a fazer nos centros de saúde, onde não há psicólogos para o fazer.

As famílias recorrem aos psicólogos que estão nas escolas, mas não é suposto estar a fazer intervenção clínica dentro de uma escola, isso não é o contexto adequado. Esta é a situação mais urgente e necessária. Claro que é positivo que os profissionais de saúde, de uma forma geral, tenham conhecimentos de base, que tenham uma literacia robusta em matéria de saúde psicológica, que conheçam bem os critérios de referenciação. Claro que isso é importante. A questão é: para onde enviam as pessoas? Somos defensores que o serviço de aconselhamento psicológico do SNS24 devia poder referenciar para o centro de saúde. Mas, onde é que estão os psicólogos para atender as pessoas?

A seu ver, porque é que esta é uma questão que se arrasta há anos?

Eu que tenho assistido por parte do Estado, e não estou a apontar o dedo a este governo ou aquele governo, é incompetência e negligência para lidar com isto, não tem sabido fazê-lo, não tem tido a capacidade de se reunir das competências necessárias, do conhecimento necessário para o fazer. E não o tem feito, tem posto outras prioridades, não tem sabido pôr à cabeça isto, às vezes existe arrogância, outras vezes existe desconhecimento. Tudo é posto à frente e isto fica para trás porque é desvalorizado. Depois no discurso passa a haver valorização, mas na prática continua a não haver ação. Tudo isto tem acontecido. Não há um fator único, mas há uma coisa que é um facto: as decisões para ultrapassar estas questões não têm sido tomadas e estas competem, somente, a quem esteja no governo.

Para terminar, o Presidente da República falou de saúde mental na sua mensagem de ano novo e o Partido Socialista teve o tema no seu plano eleitoral das últimas eleições, onde afirma que quer, por exemplo, concluir a cobertura nacional de Serviços Locais de Saúde Mental e alargar a Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados na área da saúde mental, ou seja, concluir aquilo a que chamam de Reforma da Saúde Mental. Para o doutor isto são sinais de mudança ou a saúde mental será sempre o parente pobre da medicina?

Quanto ao Presidente da República, é muito importante que tenham existido essas palavras, são fundamentais e são um forte ímpeto nesse ponto de vista para que o poder político tome as decisões que tem de tomar e também para envolver toda a sociedade nesse caminho. O que temos a dizer sobre isso é que quanto ao papel do Presidente da República nesta matéria foi muito importante que tenha feito e que não deixe de o continuar a fazer, até que as medidas cheguem ao terreno. 

Sobre o outro aspeto, o comentário que tenho é um pouco diferente. Há pouco falava das medidas do plano de recuperação e resiliência, e muitas dessas coisas de que se está a referir estão envolvidas no PRR, mas tudo isso são medidas relativamente à doença mental, são dirigidas a pessoas que sofrem de doença mental, não estamos a falar dos psicólogos nos centros de saúde para fazer o trabalho que estávamos aqui a falar nesta conversa. Essa parte não está incluída no PRR.

Até agora, não tenho qualquer conhecimento, não foi divulgada nenhuma informação, não há nada que tenha saído que diga assim o que gostaríamos de ouvir que é ‘nós vamos agora avançar com o reforço dos psicólogos nos centros de saúde’. A questão dos psicólogos nos centros de saúde não tem que ver só com saúde mental, que é a única coisa que está prevista no PRR, vai além disso. O trabalho dos psicólogos não é um trabalho apenas na área da saúde mental e muito menos apenas sobre doença mental, é um trabalho preventivo, a esse nível também, é um trabalho mais precoce, é um trabalho da saúde mental e da saúde no global. É nesta lógica que defendemos que é preciso fazer muito mais e sobre o qual ainda não vimos os compromissos necessários.

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