Subverter o que está dado como certo, para tentar chegar a um “lugar novo”. Sem a pretensão de fechar o processo, apenas de o tornar mais amplo. Num teatro sem palco, a vida segue
Um teatro à italiana sem o palco que o público toma como garantido. A imagem é estranha, deixa todos em suspenso. “O dispositivo cénico condiciona e estrutura todo o espetáculo. Foram retiradas as tábuas. Nesse sentido, ficámos sem chão. De repente, não há palco”.
Ou há uma outra situação de palco, diz Vasco Araújo. É com este desafio que a companhia Cão Solteiro coloca em marcha este novo trabalho, “Doismilevinteedois”, em cena no São Luiz Teatro Municipal, em Lisboa.
“É uma espécie de local de questionamento sobre o nosso tempo, a nossa existência. Não querendo falar da pandemia em que vivemos mas, ao mesmo tempo, falando disso. Porque há uma estagnação do tempo e da nossa existência”, explica o artista plástico que colabora pela sexta vez com os Cão Solteiro.
No limbo em que a vida tantas vezes nos deixa – inclusive coletivamente, à boleia de uma pandemia – há que perceber como seguir em frente. “O espetáculo começa com uma paragem, para refletir o que vamos fazer a seguir. E tudo se constrói e desconstrói”. Em permanência. Porque o mais importante não é chegar a um destino mas o processo de descoberta.
Esventra-se o teatro, para que ninguém fique confortável. Elimina-se o texto, para que os padrões não se repitam. Misturam-se funções, para que se consigam resultados inesperados. O mais expectável seria que Vasco Araújo, sendo artista plástico, se limitasse a criar a cenografia do espetáculo. Ou que Paula Sá Nogueira, sendo encenadora, estivesse dedicada apenas a erguer este trabalho.
Mas não, misturam-se funções neste “sítio de procura de um lugar novo”. Os artistas, sem palco, estão a “performar perante a adversidade”. Sem a pretensão de fechar o ciclo, só a de acumular conhecimento. Num espetáculo que tem como título um ano que todos esperamos que seja de mudança, 2022.
“Já entendemos o que é a pandemia mas não entendemos o que aconteceu à nossa vida. Sem chão já estamos. O que temos de perceber é como nos vamos habituar a uma nova realidade. Perdemos o que tínhamos como garantido. E isso é um espaço de libertação imensa”, traça.
É a possibilidade da novidade, de ver o mundo com outros olhos. Como numa das referências que fizeram parte da preparação de “Doismilevinteedois”: o trabalho do artista norte-americano Gordon Matta-Clark, que cortava casas a meio, para que o mundo pudesse ver através delas e ter uma outra perspetiva.
Agora que também nós saímos de casa, só precisamos de perceber como ver para lá de quatro paredes - e “performar” neste novo mundo sem palco.