"Um grupo assaltou-me em casa durante o dia e pôs-me uma faca no pescoço": Alice, 60 anos (histórias no coração de Lisboa)

31 jul 2024, 07:00
PSP

O presidente da junta de freguesia de Santa Maria Maior, em Lisboa, culpa a Câmara pelo que diz ser um aumento da insegurança na zona. O presidente da Câmara culpa o anterior Governo. Um, o presidente da junta, é do PS; o outro, o da Câmara, é do PSD. Mas no meio disto há as pessoas. As que vivem na cidade. As que são da cidade. Pessoas que, dizem as próprias, agora têm medo da cidade. A PSP fez uma megaoperação segunda-feira num dos bairros do coração de Lisboa mas quem lá mora diz que o problema mantém-se, que se vai manter. “Quem não tem janelas duplas está tramado”

Alice Garcia diz que mora na “boca do lobo”: há um mês sofreu o terceiro assalto em dois anos junto ao seu apartamento no Beco de São Marçal, no Martim Moniz, em Lisboa. “Foi mesmo à porta de casa, três pessoas abordaram-me, prenderam-me com os braços e roubaram-me um fio de prata.” Eram 10:00, conta a pensionista de 60 anos. “Não estava aqui ninguém, ninguém me conseguiu ajudar.” 

Mas este terceiro assalto nem sequer foi o pior. “Há um ano um grupo entrou-me casa adentro em plena luz do dia e ameaçou-me com uma faca no pescoço, não pude fazer nada e acabaram por me levar algumas poupanças que tinha guardado.” Fez queixa na polícia nas duas situações, mas, refere ainda não conseguiu reaver os seus pertences. 

“Fiquei com feridas na cara e no pescoço”, conta à CNN Portugal, acrescentando que a história é longe de ser inédita. Alice Garcia foi uma das vozes que falaram recentemente numa sessão pública organizada pela junta de freguesia de Santa Maria Maior, no Martim Moniz. Nessa altura, quando se ouviu queixas de várias dezenas de residentes naquela zona do centro histórico da capital, Alice Garcia diz que expôs claramente os seus receios. “Expliquei-lhes que vivo sozinha e que a partir das 16:00 não me sinto segura para sair de casa.”

Além do receio de ser assaltada novamente, refere que é o próprio bairro, que conhece e frequenta há 30 anos, que lhe parece desfigurado. “Há seis anos era um sossego, hoje quase não se consegue atravessar a rua, está preta, está cheia de lixo e o cheiro a droga é tão intenso. Mas ninguém consegue fazer nada.”

Depois da reunião em que Alice Garcia falou publicamente, Carlos Moedas afirmou que "houve realmente um aumento da criminalidade". A PSP reagiu posteriormente num comunicado público para desmentir a afirmação do presidente da Câmara. Independentemente do que uns e outros dizem, Alice Garcia gostava de ver mais polícias a fiscalizar a zona - sublinha que há cerca de três anos que tem de mudar a rota quando sai de casa para ir ao café ou ter com amigos. “É muito cansativo, uma pessoa quer passar a rua com calma e tem de mudar o caminho, fazer um mais longo e ir à volta para lá chegar.”

O grupo de imigrantes que varre o lixo do meio da rua

Esta segunda-feira, pouco depois de o presidente da junta de freguesia ter afirmado à CNN Portugal que o problema da insegurança da sua população tem sido tratado de forma “passiva” pela Câmara de Lisboa, a PSP deu uma prova de força no coração de Lisboa. O alvo era uma banca de venda diária de droga e para isso criou uma fortaleza de polícias à paisana, polícias de balaclava e polícias de martelo para cercar a zona do Martim Moniz e da Mouraria. 

No final, três detidos, outros três arguidos. Isabel Santos, reformada de 68 anos, viu a intervenção policial ao vivo na televisão enquanto comentava que conhecia muito bem aquela zona. Afinal, mora na Mouraria há “40 e tal anos”. O tráfico de droga, diz, é o problema mais visível. “Estão sentados, deitados e drogam-se mesmo à minha frente. Desde a pandemia intensificou-se muito. Como já os conheço, eles por vezes tratam-me por tia.”

Naquela reunião pública em que Alice Garcia falou, e durante a qual dezenas de moradores de microfone em punho contaram como eram assaltados recorrentemente ou como tiveram de reforçar as casas com alarmes e novas fechaduras, Isabel Santos não tomou a palavra. Mas notou como a vivência naquela freguesia se tem adaptado a uma nova realidade de crime, tráfico e perseguições policiais. “Há muita venda de droga, há muito consumo na rua ou em casas devolutas, há lixo e imenso barulho”, refere, sublinhando que a junta de freguesia tem feito a sua parte para que a operação de limpeza seja recorrente mas que, mesmo assim, “a intensidade do lixo é demasiada sequer para se notar uma diferença”. Aliás, por causa disso, Isabel Santos revela que um grupo de imigrantes do Bangladesh, trabalhadores num talho, limpa frequentemente a Rua do Benformoso.

Já o barulho “é imenso”. “Quem não tem janelas duplas está tramado. Ouvem-se gritos, pessoas a atirarem pedras da calçada, esfaqueamentos.” E o seio do bairro transformou-se completamente. “Costumava ser uma zona com muitos clientes que vinham a lojas comprar produtos para revender, vestuário, calçado, brinquedos, tudo isso parece estar a acabar. Quem quer vir a lojas neste ambiente?. Só espero que as coisas melhorem, porque daqui nunca vou sair”. Mas faz sempre um pedido: “A única coisa que posso fazer é pedir a quem consome que não se drogue ao lado da minha casa”.

"Uma mensagem clara para os traficantes de droga perceberem que a rua não é deles"

A CNN Portugal tentou falar com o presidente da junta de freguesia de Santa Maria Maior, o socialista Miguel Coelho, sobre o impacto que a megaoperação da PSP teve no sentimento de insegurança dos seus moradores. No entanto, o mesmo recusou dar qualquer comentário, remetendo para afirmações suas feitas no dia anterior.

Já o porta-voz da PSP, Artur Serafim, adianta que o cerco que se desencadeou no coração de Lisboa não teve qualquer ligação com os apelos do autarca. Miguel Coelho tinha dito à CNN Portugal que o tema da insegurança evoluiu de tal forma que “já não é um problema de perceção, é um problema de vítimas” - e que as vítimas sentem que já não vale a pena apresentar queixa às autoridades.

“Este tipo de operações é importante, mas deve ser a exceção e não a regra”, afirma por sua vez Hugo Costeira, presidente do Observatório de Segurança Interna. “Claro que passa uma mensagem clara aos traficantes de droga de que a rua não é deles”, mas isso, acrescenta, não resolve a consciência que hoje temos de que “há um claro afastamento entre o cidadão comum e a polícia”. 

A questão, afirma Hugo Costeira, “é que não há polícias a patrulhar as ruas”. “Apenas os vemos a realizar gratificados - que são serviços de segurança pagos por entidades privadas - ou a passar de carro sem parar ou apresentarem-se. Sem a presença da farda no bairro, sem aquele polícia que conhece as pessoas do café e as necessidades dos moradores, as pessoas acabam por não se sentir à vontade para denunciar movimentações estranhas ou crimes de que tenham tido conhecimento.” 

A causa disto, explica ainda Hugo Costeira, é por um lado a constante atribuição de funções aos polícias de proximidade e também o desgaste do próprio material com que os agentes trabalham. Um exemplo disso, à vista de todos, é no Martim Moniz, aponta. “Numa zona que é altamente turística, quem lá for encontra quase uma dezena de carros policiais abandonados -  tornam a via pública uma sucata.”

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