As mentiras de Alex Jones deviam ser proibidas? Conspiracionista divulgou desinformação sobre ataque que matou 20 crianças e vai ter de pagar 50 milhões às famílias

8 ago 2022, 18:13
Alex Jones no tribunal Travis County Courthouse, em Austin (Briana Sanchez/Austin American-Statesman via AP)

Durante o julgamento, o norte-americano Alex Jones acabou por admitir que o tiroteio foi "100% real" e reconheceu que foi irresponsável declarar o contrário. Mas o mal já estava feito

Parecia mais uma quarta-feira normal para os alunos da escola primária Sandy Hook, em Newtown, no estado norte-americano de Connecticut, até que um jovem, de 20 anos, entrou pela escola, armado, e começou a disparar indiscriminadamente sobre funcionários e crianças. O tiroteio chocou os Estados Unidos e e o mundo de tal forma que o dia 14 de dezembro de 2012 é recordado apenas como "Sandy Hook", em memória das 20 crianças e seis funcionários daquela escola primária que foram mortas no tiroteio.

Alex Jones, um conhecido promotor de teorias da conspiração e fundador do Infowars, um site de disseminação de desinformação, utilizou as plataformas online para difundir a ideia de que o tiroteio não teria passado de uma encenação. Os familiares das vítimas, além de sofrerem com o luto, tiveram de enfrentar acusações do público de Jones de que estariam a mentir sobre a morte dos seus filhos.

Foi o que aconteceu com Scarlett Lewis e Neil Heslin, os pais de Jesse Lewis, uma das 20 crianças que morreram no tiroteio de Sandy Hook. Num dos segmentos do seu programa, Alex Jones acusou o pai, Neil, de mentir sobre ter carregado o seu filho, sem vida, nos braços. Os pais de Lewis abriram um processo contra Jones, em 2018, por difamação, exigindo uma compensação no valor de 150 milhões de dólares pelos danos causados.

O veredicto, anunciado na semana passada, depois de um julgamento, no Texas que se prolongou por duas semanas, determinou o pagamento de uma indemnização de 45,2 milhões de dólares (cerca de 44 milhões de euros) em danos punitivos, que se somaram aos 4,1 milhões em danos compensatórios inicialmente anunciados pelo mesmo júri.

Alex Jones enfrenta ainda um outro julgamento, desta vez no Connecticut, por outras acusações de difamação levantadas pelas famílias de outras oito crianças que também morreram no tiroteio de Sandy Hook e por um agente do FBI. Em setembro, o conspiracionista vai ser novamente julgado no Texas, num processo movido pelos pais de Noah Pozner, uma outra criança vítima do ataque.

Durante o julgamento, Alex Jones - cujo podcast foi retirado das principais plataformas online, como o Spotify, em 2018 - admitiu que o tiroteio foi "100% real" e reconheceu que foi irresponsável declarar o contrário. Mas o mal já estava feito, uma vez que o público de Jones dificilmente vai aceitar que, afinal, foram vítimas de manipulação e desinformação.

Alex Jones e os limites à liberdade de expressão

Para Miguel Crespo, investigador do CIES-ISCTE que se dedica ao estudo da Comunicação Digital, este caso, além de trazer novamente a debate o fenómeno das fake news e da manipulação de audiências, levanta uma questão "mais alargada" relacionada com a liberdade de expressão e, mais concretamente, sobre quais os seus limites.

"Os limites à liberdade de expressão nunca podem ser definidos de forma arbitrária. Isto é, não pode haver um tribunal formal ou informal que avalie a liberdade de expressão. Portanto, os limites estão na legislação, no que é considerado um crime ou não", começa por explicar, em declarações à CNN Portugal.

Cometer um crime de liberdade de expressão "não é dizer alguma coisa", mas sim "dizer alguma coisa que ponha em causa aquilo que é a democracia", acrescenta. "E este caso do Alex Jones tem exatamente a ver com esta questão, ou seja, perante determinados factos, a forma como o Alex Jones pegou nos factos e criou uma realidade alternativa, ultrapassou o que é a liberdade de expressão do ponto de vista legal", problematiza.

"Na prática, aquilo que promoveu e advogou foram mentiras desmentidas por factos e não pela opinião ou pelas crenças de outras pessoas", argumenta, salientando que são precisamente os factos que "desconstroem" a desinformação.

Factos versus verdade

Neste ponto, o investigador sublinha a importância de distinguir o que são "factos" e o que é a "verdade": "são conceitos que, muitas vezes, causam muita confusão. Factos são verificáveis, enquanto verdades são construções sobre os factos."

Um simples copo de água pode servir como exemplo disto mesmo, como sugere Miguel Crespo: "Eu tenho um copo com 50% de água, isso é um facto. Agora, a verdade, para mim, é que o copo está meio cheio, enquanto para outra pessoa o copo pode estar meio vazio. O facto é o mesmo, as verdades são diferentes."

Voltando ao caso de Alex Jones, o investigador considera que esta decisão judicial "é importante", desde logo, pelo valor da indemnização: "Estamos a falar de quase 50 milhões de euros de indemnização, que, a ser paga, poderá pôr em causa a continuação desta grande fonte de desinformação norte-americana que é o Infowars."

Além disso, acrescenta, o facto de ser a primeira decisão judicial deste caso pode ser o ponto de partida para outras decisões semelhantes, quer estejam relacionadas com este caso ou com outros onde estiveram em causa "grandes campanhas de desinformação". O veredicto de Jones também é importante porque "pode também servir de exemplo para outros países", acrescenta.

A desinformação difundida por Jones não serve para obter algum tipo de vantagem, mas sim "desestabilizar a sociedade", e é aqui que reside o problema da partilha de desinformação, de acordo com o investigador, e que se divide em dois níveis, sendo este o nível "macro". A um nível micro, "a desinformação pode matar", diz, dando como exemplo o que se passou nos primeiros meses da pandemia, quando "algumas pessoas de várias partes do mundo, como no Brasil, Índia e EUA, seguiram conselhos para supostamente prevenir ou combater a covid que acabaram por levar à sua morte".

Serão as plataformas as responsáveis?

Questionado sobre se as plataformas têm alguma responsabilidade na difusão de desinformação, Miguel Crespo argumenta que estas "não são o bicho-papão de tudo isto", salientando, aliás, que estas plataformas "são um espaço democrático de liberdade de expressão". "Nunca vivemos num mundo tão democrático como hoje, e as grandes responsáveis por essa democratização são precisamente as plataformas. Qualquer cidadão de qualquer país pode, através delas, exercer o seu direito a exprimir-se como quiser", sustenta.

"É como tudo numa sociedade democrática: tudo o que é criado com um objetivo positivo, também pode ser criado com um objetivo negativo. O problema aqui é como é que os Estados democráticos conseguem lidar e regular estes poderes comerciais, privados, que são completamente transnacionais. Mas a verdade é que nenhuma destas plataformas quer ou tenta violar as legislações nacionais", afirma, acrescentando que as plataformas têm, isso sim, o objetivo de "ganhar o máximo de dinheiro possível".

E como é que as plataformas online ganham dinheiro? Muitas vezes, através da "polarização dos discursos", que pode resultar então na partilha de desinformação, explica o investigador. "Se o discurso nas plataformas não for polarizado, provavelmente têm menos tráfego, e, tendo menos tráfego, têm menos dinheiro. Ou seja, há um interesse das plataformas em promover a discussão."

"O problema das plataformas é que qualquer um de nós tem mais tendência em confiar em alguém ou em algo que reforça aquilo que nós já pensamos. E este é um dos processos que leva à disseminação de desinformação, que é fazer chegar a pessoas que já acreditam em determinadas coisas informação manipulatória que essas pessoas já considerem verdadeira à partida - e aqui estou a usar palavra verdadeira de propósito, e não factual - e que a reproduzem nos seus discursos", explica.

O investigador lembra, contudo, que este processo, designado na academia como 'filter bubble', não é novo, tal como não o é a desinformação, e acontece quando as pessoas se colocam "dentro de uma bolha do ponto de vista informativo", explica.

Nesta perspetiva, prossegue o investigador, o público do Infowars consome os conteúdos divulgados naquele site porque vão ao encontro daquilo em que já acredita. "Será que quem consome esses conteúdos pode ser influenciado a pensar de maneira diferente? Se calhar não, porque eles já pensavam daquela maneira", diz.

A analogia com a guerra na Ucrânia

Muitos analistas militares descrevem a guerra na Ucrânia como um conflito que se desenvolve também num campo de batalha diferente daquele que imaginamos num cenário de guerra - nas redes sociais. Este conflito está, tal como os outros temas, suscetível de cair nas armadilhas de desinformação e da manipulação de audiências. 

Também na guerra se pode aplicar estes termos, incluindo o 'filter bubble'. Exemplo disso foi o caso recente do relatório polémico da Amnistia Internacional que sugeria que a presença de tropas ucranianas em zonas residenciais estava relacionada com o aumento do risco para civis ucranianos durante a invasão russa. Este relatório acabou por gerar alguma polémica porque a informação que divulgava não ia de encontro ao que algumas pessoas esperam ler sobre a guerra.

A organização dos direitos humanos foi de tal forma criticada por divulgar o documento e a responsável pela organização em Kiev foi demitida. O presidente ucraniano, Volodymir Zelensky, recusou as acusações feitas no relatório e a Aministia Internacional acabou mesmo por pedir desculpa, este domingo, pela "perturbação e revolta" causadas.

Independentemente da posição do país e dos seus cidadãos em relação à guerra da Ucrânia, é importante não esquecer que "numa guerra, são cometidas atrocidades por todos os intervenientes", explica Miguel Crespo.

Mas houve "casos mais graves" no âmbito da guerra, diz o investigador, lembrando quando, ainda nos primeiros dias do conflito, a União Europeia decidiu censurar a informação russa, nomeadamente proibindo a transmissão das emissões da Sputnik News e Russia Today, canais que "não tinham audiência, ninguém sabia sequer que existiam nos operadores portugueses", por exemplo.

"Ao proibi-los, o que fizeram foi chamar à atenção para e censurar. Ou seja, fazer aquilo que criticam os Estados não-democráticos de fazer, e aumentar as audiências desses meios - que não são meios desinformativos, por definição. Quero dizer que não são apenas desinformação - não podemos comparar a Sputnik News com o Infowars, por exemplo - mas que promovem uma determinada visão do mundo e por vezes pegam em assuntos que levam a alguma desinformação", afirma.

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