"A Rússia está interessada em adquirir o máximo possível de dados sobre as diferentes formas de vida da União Europeia"

8 jun 2022, 08:00
Sandra Kalniete

Sandra Kalniete, eurodeputada e autora do relatório sobre interferência russa nos estados da UE, que foi aprovado em março no Parlamento Europeu, falou com a CNN Portugal sobre como Putin tem estado a alimentar a sua máquina de propaganda e como o Kremlin procura capturar as elites europeias para implementar os seus interesses

A Rússia tem-se movimentado de forma eficaz para adquirir o máximo possível de dados e informação sobre as diferentes instituições nos países da União Europeia, ao mesmo tempo que procura capturar as elites e influenciar a tomada de decisões nos 27 países. Para isso, alerta a eurodeputada Sandra Kalniete em entrevista à CNN Portugal, o Kremlin “utiliza redes de amizades estabelecidas de maneira magistral com o objetivo de identificarem os grupos que conseguem influenciar para desestabilizar a União”.

Sandra Kalniete, eleita pela Letónia e uma das caras da independência daquele país da União Soviética, escreveu o relatório “sobre a interferência estrangeira em todos os processos democráticos na União Europeia, incluindo a desinformação”, aprovado em março deste ano após uma investigação do Comité INGE, que durou 18 meses e levou os seus membros de Bruxelas a Taiwan e aos EUA para ouvir oficiais da UE, políticos nacionais e funcionários da NATO.

Para a eurodeputada, a investigação permitiu identificar como, pelo menos desde 2007, o Kremlin começou a preparar a invasão da Ucrânia, aumentando também os seus conhecimentos e o acesso a diferentes fontes de novas tecnologias para “implementar os seus interesses no estrangeiro” e “interferir com os processos democráticos” dos países da UE.

Afirmando que o Parlamento Europeu está a trabalhar com plataformas para estabelecer um código de conduta voluntário, garante que é necessária mais legislação para combater a máquina de propaganda de Putin que tem um orçamento de 400 milhões de euros por ano e pede que os 27 não continuem a ignorar os avisos dos países que fazem fronteira com a Rússia.
 

Recentemente, descreveu o trabalho do Comité INGE, que se debruça sobre a interferência estrangeira na União Europeia, como uma ferramenta para mostrar ao mundo democrático como a desinformação é um instrumento de lavagem cerebral para preparar uma nação inteira a aceitar a guerra. Sente que, após a invasão, as instituições europeias e os líderes políticos estão mais cientes desse perigo?

Diria que, desde que a guerra teve o seu início, algumas instituições da União Europeia, particularmente o Parlamento, a Comissão e o Conselho da UE estão mais atentos aos riscos de desinformação e de lavagem cerebral por parte da Rússia. Mas é preciso salientar que a desinformação é apenas a parte visível de um organismo complexo que integra vários tipos de plataformas, dados e muito dinheiro e que está cada vez mais difícil de detetar, especialmente agora que nos movemos para um mundo de criação de inteligência artificial. Sei que a Comissão Europeia tem desenvolvido uma rede de especialistas e comissários para delinear uma estratégia para combater este novo tipo de guerra híbrida, mas na minha perspetiva precisamos de entender melhor como devemos reagir a isto, porque desde o dia 24 de fevereiro que vimos como um sistema pode virar-se contra um país vizinho, e a guerra sublinha a importância de um esforço coordenado para lidar com regimes não democráticos.
 

O relatório aprovado em março faz uma avaliação abrangente de como a Rússia manipula, influencia e enfraquece a União Europeia através de desinformação, ataques cibernéticos e financiamento de partidos políticos. Foi o resultado de uma investigação de 18 meses. Considerou difícil encontrar provas deste tipo de estratégias impulsionadas pelo regime de Putin, ficou surpreendida de alguma forma com as conclusões?

Em primeiro lugar, é preciso salientar que fui eleita eurodeputada pela Letónia e a Letónia é um país que faz fronteira com a Rússia, para além disso é um país que durante muitos anos foi ocupado pela União Soviética. Portanto, possuímos uma compreensão quase inata dos interesses políticos da Rússia, mas também da sua estratégia internacional. Dessa forma, não posso dizer que tenha ficado surpreendida, mas foi extremamente importante que o relatório tenha emergido após auscultarmos centenas de especialistas durante cerca de 55 audições e isso permitiu-nos adquirir um conhecimento mais complexo e profundo sobre os diferentes instrumentos que a Rússia utiliza para influenciar os países da União. 

E esse conhecimento ajudou os países que estão mais afastados da Rússia, como Portugal, a tomarem melhores decisões a nível diplomático com a Rússia?

Uma das coisas de que nos apercebemos foi que os meus colegas eleitos pela Espanha, Portugal e outros países que têm apenas um conhecimento teórico da ditadura de Putin, conseguiram aperceber-se melhor das estratégias que a Rússia utiliza para manipular opiniões e interferir com as democracias. Mas é importante referir que o alerta para esta ameaça russa já estava a ser propagado por países como a Polónia e a Bulgária, desde o alargamento da União Europeia aos estados dos Balcãs. Mas estes avisos sobre os processos hostis da Rússia foram praticamente ignorados. Em 2014, com a anexação da Crimeia, em que estava em causa um pedaço de terra de um país vizinho, foram aplicadas sanções, mas não afetaram seriamente a Rússia. Partiram também vários alertas à UE sobre a possibilidade de um ataque na zona Leste da Ucrânia, mas isso também não foi levado a sério e a guerra no Donbass devia de ter sido o momento central para impedirmos a guerra atual. Esse devia ter sido o momento em que a União Europeia devia de ter dito a Putin para retirar-se ou enfrentar total bloqueio, como enfrenta agora. Só espero que, no futuro, alertas como esses vindos dos países que conhecem melhor a Rússia e a Bielorrússia sejam observados com maior seriedade.

Segundo o relatório, a Rússia utiliza atores globais, diásporas nacionais, universidades e eventos culturais para interferir e ganhar influência junto dos países da União Europeia, mas o documento também denuncia que o regime de Putin está muito interessado na captura de elites, o que é que isto significa?

É um termo bastante político, eu diria, mas o significado é até muito primitivo. Observemos o exemplo mais visível, Gerhard Schröder. Este antigo chanceler da Alemanha fez parte da administração da Gazprom e foi muitíssimo bem pago. É um bom exemplo de como a Rússia captura pessoas através do dinheiro, mas até há pouco tempo poucas pessoas na Alemanha seriam capazes de imaginar os danos provocados por Schröder ao fazer lobbying pela construção do Nordstream 1 e, mais tarde, do Nordstream 2. Mais uma vez, avisámos que este projeto não era económico, mas sim político e que seria utilizado pelo Kremlin como chantagem. É importante que, a nível europeu, adotemos legislação que permita um período de nojo para comissários da UE e funcionários públicos da UE de alto nível integrem multinacionais, mas o mesmo tem de ser feito pelos Estados-Membros. Também temos de estabelecer um esquema de registo que nos possa ajudar a ver as pessoas e também as instituições que estão profundamente implicadas em algum tipo de ações de lobby por parte de países hostis à União Europeia.

Ao mesmo tempo que a União tentava impor sanções ao petróleo russo por causa da guerra na Ucrânia, a Hungria emergiu como um dos maiores obstáculos. Viktor Órban pode ser um exemplo deste esforço por parte da Rússia de capturar elites?

Aquilo que significa é que a Hungria, claramente, não está apenas a comunicar a sua posição. Basta olhar para o sexto pacote de sanções e a sua insistência em que o patriarca Cirilo I e outros porta-vozes do Kremlin ficassem de fora da lista.

No relatório também é afirmado que a Rússia está a desenvolver alianças estratégicas com parceiros locais para ter acesso à inteligência dos países da UE. 

A inteligência é uma atividade muito secreta, mas importante e absolutamente necessária. A Rússia está interessada em adquirir o máximo possível de dados e informações sobre as diferentes formas de vida da União Europeia, sobre os seus processos de tomada de decisão, sobre que decisões tomam. Para isso, utilizam redes de amizades estabelecidas de maneira magistral com o objetivo de identificarem os grupos que conseguem influenciar para desestabilizar a União Europeia e o seu poder normativo. Agora, com o desenvolvimento das novas tecnologias, tudo se tornou muito mais fácil, porque a quantidade de dados que conseguem ter acesso a partir das cinco mil empresas que legalmente os estão a armazenar e vender é gigantesca. Imagine, as informações atuais dizem-nos que há, em média, cerca de 10 mil pontos de informação em cada indivíduo e isso é algo difícil de imaginar, mas a verdade é que todos podemos ser facilmente manipulados na sua direção.

Vários académicos e os próprios serviços secretos da Ucrânia têm avisado para a criação de plataformas digitais para recrutar pessoas com nacionalidade russa ou simpatizantes das políticas do Kremlin, é uma tendência que o comité INGE tem observado?

Na última doutrina militar da Federação russa, a utilização de sistemas inovadores de comunicação para fazer a guerra cibernética foi considerada um dos elementos principais para se desenvolver e preparar uma agressão convencional. E é isto que eles estão a fazer há anos, porque o ataque de Putin à Ucrânia não foi um acontecimento vindo do nada, foi preparado já pelo menos desde 2007, quando fez o seu discurso na conferência de Munique e manifestou o seu desdém pelo sistema internacional existente. Desde aí, o Kremlin esteve a desenvolver as suas capacidades, aumentando os seus conhecimentos e o seu acesso a diferentes fontes de novas tecnologias que podem ser utilizadas para implementar os seus interesses no estrangeiro para perturbar e para intervir com os processos democráticos. Para isto alimentaram grupos institucionalizados na internet para interferirem nas opiniões políticas e na tomada de decisões e também utilizaram armadas de hackers.

O conceito de “Máquina de Propaganda Russa” tem ele próprio emergido de forma significativa, mas parece que há uma espécie de cortina de ferro à sua volta. É um conceito demasiado abstrato para se saber alguns detalhes sobre essa operação do Kremlin para desinformar e propagar os seus ideais? 

Como todas as ditaduras, a Rússia é um país extremamente difícil de penetrar e de obter dados factuais e verificáveis, mas podemos ter alguns fragmentos que nos dão a ideia daquilo que será o quadro completo. Por exemplo, o orçamento da Rússia para as atividades de propaganda e de desinformação é, atualmente, 400 milhões por ano. Isto inclui tanto as estratégias de construções de narrativas pró-Kremlin fora da Rússia, mas também atividades contra a própria população - que é também um elemento muito forte, especialmente ao analisarmos os conteúdos das televisões e alguns orgãos de comunicação russos relativamente à mensagem que passam para justificar a guerra na Ucrânia. É completamente um conto de fadas que é muito perigoso, porque podemos ver o que é possível atingir com uma lavagem de cérebro de grande escala que estupidifica totalmente as pessoas.

Foi isso que esteve na origem do bloqueio a nível europeu dos conteúdos transmitidos por canais e orgãos de comunicação russos?

Claro, o primeiro pacote de sanções colocou um embargo às emissões da Russia Today e da Sputnik em todas as línguas, agora com o sexto pacote de sanções, temos mais três canais de televisão - Rossiya 24, Rossiya RTR e a TVC - que vão ser totalmente bloqueados na União Europeia. Isto é importante, porque é a estratégia da Federação Russa de chegar às minorias que vivem nos países da União Europeia, mas não é a única forma. Desde que acordámos esse embargo, a atividade no Twitter subiu 55% e vimos claramente a multiplicação de perfis ligados ao estado russo, a apoiar mentiras e a lançar ataques contra algumas personalidades. Tudo isto ao mesmo tempo que desenvolvem novas ferramentas tecnológicas. É muito difícil, para ter a noção, estivemos reunidos com especialistas no centro de excelência da NATO em Riga e disseram-nos muito claramente que, ao nível da desinformação russa, é impossível distinguir aquilo que é uma conta falsa, uma personalidade falsa ou uma pessoa real.

Tem advogado por uma total implementação do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados. Crê que fica aquém perante os perigos que o relatório identificou?

Em primeiro lugar, temos de criar legislação. Sim, há o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados, mas ele próprio precisa de algumas atualizações porque as tecnologias estão em permanente desenvolvimento. Mas há outras áreas onde praticamente não há legislação, por isso a Comissão Europeia propôs a Lei de Serviços Digitais, que vai regular anúncios direcionados e obrigar as plataformas a apagar conteúdo nocivo e ilegal, temos praticamente um acordo e deve ser adotada já em junho, ou em julho. Mas isto não é suficiente, precisamos de uma cooperação global para implementar um princípio de que o que não é aceitável offline, não deve ser aceitável online. Assim, estamos a trabalhar com plataformas para estabelecer um código de comportamento voluntário, mas acredito que o próximo passo será torná-las responsáveis ​​pelo conteúdo que estão a publicar, através de regras claras e aplicáveis.

Após o relatório ter sido aprovado em março, o Parlamento Europeu criou, no dia seguinte, um novo Comité Especial INGE2. Quais vão ser as prioridades desta nova delegação?

A principal tarefa do novo comité será dar seguimento ao relatório anterior e ver que recomendações serão implementadas. Para isso, vamos ter várias audiências com comissários e serviços sobre o que pode e o que não pode, de facto, ser implementado. Vamos ter também em conta os acontecimentos recentes, porque o relatório foi redigido antes da guerra, mas o mais importante será a implementação das recomendações.

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