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O adeus fere-me a garganta #VodafoneParedesDeCoura

21 ago 2022, 12:43

Tenho os ouvidos a tinir, há roupa para emalar, sou acometido de surtos narcolépticos no fim de cada palavra que escrevo, o estômago revolve-se. Mas também há coisas desagradáveis a acontecer. 

Escrever sobre o derradeiro dia de Paredes de Coura traz-me um amargo de boca que nem a dieta pouco mediterrânica dos últimos dias me deu. É muito mais fácil falar sobre a música do dia anterior quando há garantia de mais música para as próximas horas. Neste momento, o zumbido doloroso (pela longa exposição a altifalantes robustos) magoa muito menos que as promessas de quietude das noites que se avizinham. 

Será, então, a custo, com ouvidos desesperados, com boca amarga, com laringe dorida (citando esse grande filósofo do sec. XX, Charlie Brown, “O adeus dá-me sempre dores de garganta”) que destaco um punhado de actuações e despacho algumas palavras sobre o último dia do festival.

La Femme, no palco principal, foram mais uma banda francesa, nesta que pode ser considerada a edição francófona de Paredes de Coura. Mas que não me deturpem quando leem “foram mais uma”, porque a festa que  fizeram foi “como nenhuma”. Certa amiga minha que assistia ao concerto disse (e aqui faço uma paráfrase contida) que estava a desenvolver um crush por todo e cada um dos 6 membros daquela banda mista. A parada de coolness dos La Femme fez-me subscrever, em silêncio, as paixonetas da minha amiga.  Existe uma congénere francesa para a palavra “coolness”? Se sim, urge utilizá-la!

Perfume Genius foi, provavelmente, o concerto mais perfeito que vi este ano no palco secundário. Quem me conhece, sabe que “perfeito” não é elogio preferencial no que toca ao desempenho musical. Mas, neste caso, em vez de usar o “perfeito” só para despachar e dizer que não há nada apontar, aludo à perfeição porque há muito a apontar, muito de bom. Complexidade e leveza, ambas em harmonia absoluta, são amálgama para me arrancar vénias  - e muito verguei  a cabeça em aprovação do que estive ali a  ver  e ouvir.  Afinal, este Paredes de Coura do indie rock também é dos sensíveis. Perfeitamente sensíveis.

Slowthai era o nome que, à partida, eu aguardava com mais entusiasmo no cartaz deste ano. O álbum de estreia  tornou-se, muito possivelmente, o disco com maior número de escutas lá em casa em  2019 . “Nothing Great About Britain”, constituindo um óbvio conjunto de canções Hip Hop, foi o mais premente objecto punk a ser editado em muito tempo (e não o digo só pelo título, que parece saído directamente de 1977). Por isso, mesmo em ano de Idles e Turnstile, restavam-me poucas dúvidas que o apogeu punk caberia a um jovem rapper inglês. Dúvidas dissipadas. 

Nesse mesmo 2019, andei numa demanda proselitista do Slowthai, e fui mostrá-lo a um programa de rádio dos queridos Ricardo Mariano e Tiago Castro (eles que me foram, também, dois inestimáveis comparsas neste Paredes de Coura). Na minha tentativa de endoutrinação, havia um factor que excitava particularmente: em Slowthay, ouvíamos uma celebração total da identidade musical britânica, e isto através do Hip Hop -  género que, à partida, não é o que mais evidentemente associamos à Grã Bretanha. Outras bandas já tinham ensaiado essa ligação (como por exemplo The Streets, os Sleaford Mods, ou até os Gorillaz) mas, nessas, dificilmente a junção de rap com o grime, ou com electro-punk, se podia catalogar absolutamente como Hip Hop. Tyrone  Frampton, vulgo Slowthai, conseguiu tal alquimia perfeita. Não é menos do que qualquer punk-rocker inglês, não fica atrás de nenhum vulto do Hip Hop americano. 

Há pouco referi os Sleaford Mods, que já vi várias vezes ao vivo, mas cujo concerto que menos me impressionou ocorreu exactamente em Paredes de Coura. O  duo britânico (constituído por um vocalista arrebatador,  e por um pantomimeiro que se limita a clicar numa tecla a cada canção) estava a ter, no palco principal do festival, demasiado espaço físico que não o favorecia. Com Slowthai, essa sensação nunca me assaltou – sozinho, com a mesma batota musical das backing tracks, cada centímetro do Vodafone foi conquistado, foi conquistador. Mesmo até quando se entregou por completo ao trap (um afluente do Hip Hop que, de tão canónico, também pode ser nivelador em excesso), Slowthai nunca deixou de arrebatar. Assim, sim.

Como me excedi a falar do rapper, vou ser parco nas palavras sobre a última banda  - o tempo que lhes dedico agora é inversamente proporcional ao tempo que lhes dediquei durante a adolescência. Sobre o concerto de ontem, só digo isto: que bom que é ver os Pixies a fazerem mais do que cumprir calendário.

E agora, devia despedir-me do festival, e de vós, com algumas palavras. No entanto, fico aquém. O adeus fere-me a garganta, e vou adormecer ainda antes do ponto final.

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