No seu quarto romance, a autora de sucesso de "Pessoas Normais" e "Conversas Entre Amigos" apresenta-nos dois irmãos a viver o luto do pai e a tentar encontrar a felicidade. Há depressão e raiva, paixão e sexo. E pessoas que se tentam libertar do peso das convenções sociais. Afinal, o que é isso de ser normal?
"Intermezzo": o título do novo livro de Sally Rooney é um jogo com um termo usado na música e no xadrez. Na música, significa um interlúdio; no xadrez, um movimento inesperado.
Durante o confinamento de covid-19, o marido de Sally Rooney começou a jogar xadrez online e ela, embora não jogasse, gostava de ver os tutoriais do YouTube com ele. "Comecei a ver o xadrez quase como uma forma de arte, a elegância matemática de quando as pessoas fazem movimentos realmente brilhantes e consegue-se ver uma ideia a desenrolar-se no tabuleiro", explicou a escritora ao The Guardian. A primeira ideia para este livro foi, precisamente, uma exibição de xadrez onde um jogador talentoso joga com vários jogadores ao mesmo tempo. Essa foi a primeira cena a ser escrita, disse Rooney à The New Statesman. Ivan, o jogador de xadrez, e Margaret, a diretora do centro de artes de uma localidade rural onde ele vai jogar, foram as primeiras personagens de "Intermezzo": "Comecei a perguntar-me sobre o resto das vidas deles, de onde vinham e o que tinham feito até se encontrarem, escrevi bastante sobre eles até que tive um bloqueio. Foi então que surgiu a ideia de ele ter um irmão e, a partir daí, eu soube que tinha de escrever sobre irmãos e que isto iria ser romance."
Esta é, portanto, a história de dois irmãos após a morte do pai: Peter, um bem sucedido advogado de 32 anos, com roupa de marca e uma intensa vida social, fala muito ao telefone, manda muitas mensagens, come em restaurantes, bebe mais do que deveria; e Ivan, um campeão de xadrez de 22 anos, com aparelho nos dentes, poucos dotes de sociabilização e muitas preocupações ecológicas, usa roupa em segunda mão e não anda de avião. Peter está envolvido com uma estudante universitária, Naomi, uma jovem praticamente sem-abrigo que lhe pede dinheiro e proteção e lhe dá em troca a excitação de uma relação imprevisível. Mas, ao mesmo tempo, e embora não o confesse, continua emocionalmente ligado à sua melhor amiga e ex-namorada, Sylvia, que devido a um acidente de carro sofre de dor crónica. Entretanto, o irmão mais novo apaixona-se por Margaret, 14 anos mais velha, a braços com uma separação e um ex-marido alcoólico. Assim resumido, parece um enredo novelesco. Nada mais errado. Isto é só o ponto de partida.
"Intermezzo" é um livro atravessado pelo luto. Isso não é imediatamente claro ao início, ainda que o livro comece com o funeral do pai. A primeira fase do luto é a negação e é isso que estes irmãos fazem, tentam continuar com a sua vida como se nada tivesse acontecido. É preciso passar pela raiva e pela depressão, antes de se chegar à aceitação, dizem os especialistas; e a raiva e a depressão ocupam grande parte das mais de 400 páginas de "Intermezzo". Peter e Ivan têm uma relação complicada, que se degrada ainda mais depois da morte do pai. As pessoas raivosas costumam dizer e fazer coisas de que mais tarde se arrependem. E "Intermezzo" é também um livro sobre esta relação primordial que existe entre irmãos que são os melhores amigos e, ao mesmo tempo, têm tantos problemas de comunicação. Algo que é tão comum nas famílias: deixar palavras por dizer, jogar os problemas para debaixo do tapete, tentar viver de acordo com as expectativas dos outros, acabar a magoar aqueles de quem mais se gosta. Existe um conflito enorme entre o que Peter e Ivan sentem e o que são capazes de dizer ao outro. Nisso são muito parecidos.
E depois existem as relações sentimentais. "O erótico é um grande motor nas histórias de todos os meus livros", admitiu Sally Rooney ao The Guardian. "Isso não significa que as personagens estão sempre prestes a ir para a cama juntas, mas que o condutor de muitos relacionamentos é a tensão erótica ou o desejo." O grande tema da obra de Rooney é o amor, em particular o amor romântico e erótico, e "Intermezzo" não é exceção. As relações sexuais (e os pensamentos sexuais) são descritas ao pormenor. Rooney consegue ser sexualmente explícita sem ser obscena nem ridícula, proeza nada fácil de alcançar, como tão bem sabemos. Como escritora do "amor moderno", a autora sente que seria "um pouco cobarde não escrever sobre nada disso, dizer: ‘Só terão de imaginar na vossa cabeça.'" Não quer fazer como nos filmes onde se passa dos beijos à porta de casa diretamente para a manhã seguinte quando os namorados acordam na cama. Quase todos os adultos são seres sexuais e, portanto, explica, se quer que as suas personagens sejam ricas e verdadeiras e se quer que os leitores se envolvam realmente com elas, não pode simplesmente ignorar uma parte tão importante das suas vidas.
Em "Intermezzo", Sally Rooney vai-nos colocando, a cada capítulo, dentro da cabeça de uma das personagens: Peter, Ivan, Margaret e Sylvia (só Naomi nos é dada sempre de uma perspetiva exterior). Em frases curtas e sem adornos, Rooney integra a catadupa de pensamentos, memórias e sensações com mensagens de telemóvel, conversas e ações reais. Estamos permanentemente a confrontar aquilo que eles pensam e sentem com aquilo que é efetivamente dito e feito. É nesse "entremeio" que tudo acontece.
Quem é, afinal, Sally Rooney?
Sally Rooney tem 33 anos e cresceu em Castlebar, no condado de Mayo, na Irlanda, onde o pai trabalhava como técnico de uma empresa de telecomunicações e a mãe dirigia um centro artístico local (à semelhança da personagem Margaret, de "Intermezzo"). Desde pequenos, ela e os seus dois irmãos habituaram-se a discutir política e literatura à mesa do jantar: o slogan de Marx "de cada um de acordo com as suas capacidades, a cada um de acordo com as suas necessidades" era uma máxima na casa dos Rooney. Aos 15 anos, Sally juntou-se a um grupo de escritores locais. As primeiras tentativas para escrever um romance por esta altura resultaram, nas suas palavras, “num lixo absoluto” - mas conseguiu publicar dois poemas na revista literária irlandesa The Stinging Fly quando ainda estava na escola secundária.
Em 2009 foi para Dublin para estudar inglês na Trinity College e deu por si num ambiente social muito diferente. "Não estava preparada para conviver com a classe de pessoas que governa o país", disse à New Yorker. "Por um lado, estava em choque, mas, por outro, queria provar o meu valor às pessoas, provar que era tão boa como elas", recordou. Tornou-se a estrela do clube de debates da Trinity (tal como Peter, um dos protagonistas de "Intermezzo") e participou em competições na Irlanda e noutros países. No ensaio "Even If You Beat Me", publicado em 2015, Rooney explica como se sentiu inicialmente atraída pelas regras "claras e definidas" do debate competitivo. Um debate representava uma "fantasia de invulnerabilidade, de controlo total", onde podia apresentar argumentos sem que ninguém ficasse "chateado ou zangado".
O texto chamou a atenção de Tracy Bohan, uma agente literária que a incentivou a publicar ficção. Em resposta, ela enviou-lhe o manuscrito de "Conversations With Friends" ("Conversas Entre Amigos"), cujo primeiro rascunho foi escrito em três meses, na mesa da cozinha ou na cama, numa série de apartamentos alugados, pagos por uma bolsa do Arts Council of Ireland enquanto a autora fazia o mestrado em literatura americana. Quando Bohan o enviou às editoras, houve uma "guerra" entre elas, com sete licitações, que acabou por ser ganha pela Faber.
Publicado em 2017, quando Sally Rooney tinha 26 anos, o livro tem como protagonistas duas jovens de Dublin que se tornam amigas de um casal mais velho (e tudo o que acontece a seguir entre eles) e tornou-se rapidamente um sucesso. O Times considerou-o um dos livros essenciais para entender a geração "millenial", "um romance para colocar ao lado da série de televisão Girls, de Lena Dunham, e da sitcom Fleabag, de Phoebe Waller-Bridge". A escritora Zadie Smith chamou-lhe uma "estreia que não se consegue acreditar que foi uma estreia”. Um editor da Faber descreveu a autora como "Salinger para a geração Snapchat", uma frase depois repetida por muitos jornalistas e influenciadores quando se queriam referir a ela.
Logo a seguir, em 2018, foi publicado "Normal People" ("Pessoas Normais"), com a história de Connell eMarianne, colegas de turma da mesma cidade com origens de classe muito diferentes, que, quando ambos vão estudar para a Trinity, entram e saem da vida um do outro, ora amando-se ora magoando-se mutuamente. O romance foi selecionado para a lista longa do Booker Prize, o que fez de Rooney a mais jovem das autoras incluídas na lista desse ano; e embora não tenha entrado na seleção final, Rooney tornou-se depois a autora mais jovem a ganhar o Costa Novel Award.
O peso do sucesso (e de ser a voz de uma geração)
Mas o verdadeiro sucesso global só chegou quando a série "Normal People" foi lançada nas plataformas de streaming em abril de 2020, pouco depois de decretado o confinamento devido à pandemia de covid-19. Sally Rooney foi produtora-executiva e trabalhou nos guiões dos primeiros seis dos 12 episódios, ao lado da escritora e dramaturga Alice Birch (de "Succession"). "Foi uma tradução quase perfeita para o ecrã do estilo de escrita discreto de Rooney (...), captando a dor e a intensidade do primeiro amor numa altura em que estávamos coletivamente famintos de intimidade", escreveu o Independent.
Nesse ano, "Normal People" foi o programa mais popular do BBC iPlayer, tendo sido transmitido mais de 62 milhões de vezes. Os atores Paul Mescal e Daisy Edgar-Jones, até aí praticamente desconhecidos, tornaram-se estrelas requisitadas por talk-shows e seguidas por fãs, quer nas redes sociais quer na sua vida real. Em vários países, o livro passou ou voltou a figurar nas listas de bestsellers. Novos leitores, na sua maioria raparigas jovens, foram também ler "Conversas Entre Amigos" e confirmaram que Sally Rooney conseguia, como nenhum outro escritor, colocar em palavras as suas ansiedades e os seus sentimentos.
Depois, também "Conversations With Friends" foi adaptado para uma minissérie, embora Rooney não estivesse tão envolvida porque estava a escrever o seu romance seguinte, “Beautiful World, Where Are You", lançado em 2021, e do qual, avisou, não vai autorizar qualquer adaptação televisiva: "Senti que era importante dar um tempo para o livro ser apenas o que é", explicou em entrevista ao The New York Times. “A experiência [de trabalhar em ‘Normal People’] foi, de muitas maneiras, incrível - sobretudo por causa da equipa envolvida. Mas também deu muito trabalho”, acrescentou. No entanto, quando a série foi exibida, as reações foram de tal forma intensas que a autora sentiu se sentiu assoberbada.”Senti que não pertencia àquele mundo”, explicou. “Percebi que pertenço aos meus livros e isso é tudo o que quero fazer."
"Nunca tive o sonho de ser argumentista e certamente não o tenho agora", disse noutra entrevista. “Sou uma romancista. Só quero escrever romances", afirmou.
É disso também que fala "Beautiful World, Where Are You" ("Mundo Belo Onde Estás"). As expectativas para este livro eram altíssimas e foi montado todo um circo promocional, espalhando a marca "Rooney" pelo Instagram e pelo TikTok. Paradoxalmente, uma das personagens do livro é Alice, uma jovem escritora que está a recuperar de um esgotamento após o sucesso dos seus primeiros livros. Ela detesta "o sistema de produção literária", que diz aos escritores que eles são especiais, retirando-os da vida comum. O livro não foi tão bem recebido quanto os anteriores, mas, apesar disso, no final de 2021, o Financial Times elegeu-a como uma das mulheres mais influentes do ano, ao lado da artista portuguesa Paula Rego, da política norte-americana Nancy Pelosi ou da atriz Scarlett Johansson. Como pergunta Alice no romance: "Nunca se cansam de me dar prémios, pois não?".
Desde "Beautiful World", Sally Rooney tem tentado manter-se mais afastada da rede mediática, dá poucas entrevistas, não é ativa nas redes sociais e quase não promoveu diretamente o seu novo livro, "Intermezzo" - o que também não é necessário, uma vez que o seu nome já não precisa de apresentações, "Não tenho interesse em comercializar os meus livros", disse ao The Sunday Times. "Não respondo a entrevistas com a intenção de vender o meu livro. Mas sempre que publico um romance, sinto-me obrigada a responder perguntas sobre ele, como se fosse falta de educação não o fazer. (...) Não diria que gosto de publicar livros. Gosto de escrevê-los. Sei que tenho sorte em estar numa posição em que os meus livros são publicados e me permitem ganhar a vida. Sei que sou abençoada por poder passar anos a trabalhar num único livro sem que ninguém me chateie para saber quando estará terminado. Mas o período de publicação é uma fonte de stress para mim."
A autora reconhece agora que não estava nada preparada para tamanho sucesso. "Parecia que toda gente na Grã-Bretanha e na Irlanda estava a falar sobre a série [Normal People]", recordou ao The Guardian. "Não quero ser o centro das atenções assim nunca mais." E também já fez saber que não quer ser "a voz de uma geração" nem está disposta a carregar esse peso nos ombros. "Na verdade, eu não queria ser ‘a jovem romancista’; eu só queria ser boa", disse. Mas não tem sido fácil escapar a este rótulo.
Sentimentos, sim, mas não só: quem somos e o que queremos?
Depois de dez anos na cidade de Dublin e de uma temporada em Nova Iorque, Sally Rooney estabeleceu-se com o marido, John Prasifka, no campo, a apenas 15 minutos de carro da pequena cidade de Castlebar, onde ela cresceu. Conheceu Prasifka, agora professor de matemática, no seu último ano na Trinity College e casaram-se durante o confinamento. Sally Rooney procura levar uma vida discreta e raramente fala da sua vida pessoal, mas na entrevista ao The Guardian agradece ao marido por tornar a sua escrita possível. "Ter tido essa experiência de me apaixonar quando era muito jovem por alguém que transformou completamente a minha vida, e a transforma todos os dias, permite-me escrever histórias sobre pessoas cujas vidas são transformadas pelo amor", explicou. "Sem isso, não acho que o meu trabalho fosse reconhecível. Só a presença dele na minha vida tornou possível que eu escrevesse tudo o que escrevi."
As relações amorosas, e as suas dificuldades, acabaram por se tornar centrais nos seus livros. "Estou interessada em relacionamentos intensos, nos quais as personagens se importam de facto uma com a outra", disse à The New Statesman. "Esses são os únicos relacionamentos sobre os quais gosto de escrever. Mas para serem interessantes e funcionarem num romance, precisam ser caracterizados por algum tipo de desequilíbrio que os impulsione. Se se tem um casal que é perfeitamente compatível e os amigos acham que eles são ótimos um para o outro, não se vai conseguir escrever 600 páginas."
Todos os elementos habituais de Rooney estão presentes em "Intermezzo": relacionamentos intensos, de alguma forma desiguais devido à idade ou à classe social; a importância da amizade, pais ausentes, deambulações pela cidade de Dublin, as implicações do capitalismo na vida quotidiana, questionamentos feministas.
Há também algumas novidades: desde logo porque os dois protagonistas são homens e porque a maioria das personagens já não está na casa dos 20, um pouco como se as personagens de Sally Rooney fossem amadurecendo com ela. “Sinto que quanto mais velha fico, mais liberdade tenho para escrever sobre uma gama maior de experiências de vida”, disse a autora, explicando que escrever sobretudo da perspetiva masculina acabou por não ser um desafio tão grande quanto se poderia imaginar: “Estou ciente de que as pessoas acham que o meu trabalho é fortemente autobiográfico, e, na verdade, não é. Parecia que eles eram apenas personagens fictícias, como todas as outras personagens fictícias, e eu estava intrigada com eles. Então a questão do género foi muito secundária." A escritora gosta de deixar claro, em todas as suas intervenções, que apesar de se inspirar obviamente no mundo que conhece, isso não significa que os seus romances sejam baseados nas suas próprias experiências ou que as personagens femininas sejam todas ela.
Dizer que os livros de Sally Rooney são apenas sobre amor e sentimentos é demasiado redutor. O que torna os seus livros tão entusiasmantes para tanta gente é a sua capacidade de retratar a complexidade e as contradições das vidas comuns. Uma das personagens de "Intermezzo", Margaret, tem de lidar com os preconceitos sobre mulheres que namoram com homens mais novos e a pressão de quem vive numa pequena comunidade. Sylvia, por seu lado, vive com a frustração de não conseguir consumar uma relação sexual. Naomi desafia as fantasias masculinas e os limites do que pode ou não ser socialmente aceitável com a sua conta de Onlyfans. Peter descobre que aquilo a que todos chamam sucesso pode não ser sinónimo de felicidade. Ivan sente no corpo todas as dores do crescimento. Em "Intermezzo", além do luto (esse buranco fundo que se abre perante nós quando perdemos um progenitor), Rooney aborda questões ligadas à dependência, do álcool e dos comprimidos, enfrenta a depressão e os pensamentos suicidas, atreve-se pela complexidade das relações poliamorosas. A vida destas pessoas é atravessada pela crise habitacional, pela precariedade laboral, pela luta de classes, pela procura de um sentido para isto tudo e por essa pergunta, nem sempre verbalizada: o que é isso de ser normal?
Usar a metáfora do xadrez seria demasiado óbvio. Sim, a vida é como um jogo de xadrez e, na verdade, estamos todos só tentando jogar as nossas peças, aproveitando os erros dos adversários e protegendo a vida do rei (e teríamos muito a ganhar se estudássemos um pouco mais a teoria das aberturas). Mas, se alguma coisa, diria que este livro é acima de tudo sobre a dificuldade de desafiarmos as convenções e "o que é que os outros vão pensar?" e vivermos de acordo com aquilo que realmente somos - isto se chegarmos algum dia a perceber quem realmente somos.