Há uma tendência nacional para discutir o acessório em detrimento do essencial. Com a chegada de André Ventura à política portuguesa, essa tendência agravou-se e, hoje em dia, é praticamente impossível focarmos o debate nacional nos verdadeiros problemas do país. O Orçamento do Estado é só mais um exemplo. Ventura atira a atoarda dos Salazares para o ar, os outros partidos vão atrás, as televisões e as redes sociais fazem o resto.
Enquanto decorre esta novela da vida política, os problemas vão-se agravando. Veja-se o caso da saúde. O Orçamento para o próximo ano prevê um reforço que até é modesto - de 1,5% - de um bolo que ultrapassa já largamente os 17 mil milhões de euros. Ou seja, quase 10% da riqueza que produzimos vai para a saúde.
O salto até aqui é impressionante. Nos últimos 10 anos, os orçamentos da saúde cresceram 72%. Isso mesmo. Leu bem. Durante a última década, os governos de António Costa foram tentando convencer-nos de que os problemas na saúde se resolviam com dinheiro. Costa fazia, aliás, gala em ser o primeiro-ministro que mais tinha investido na saúde, usou esse trunfo nas várias campanhas eleitorais e não se pode dizer que se tenha dado mal com a estratégia.
A verdade é que o valor em si - 17 mil milhões de euros - diz pouco. O aumento da esperança média de vida, o aparecimento de novas terapias inovadoras, a pandemia… o que não faltam são motivos para Portugal, como muitos países na Europa, ser obrigado a investir mais na saúde. O problema é que, 10 anos e 8 mil milhões de euros depois, a resposta do Serviço Nacional de Saúde é manifestamente pior e a sua deterioração está em plano acelerado. O que significa que o aumento do investimento não se traduziu nem numa melhoria dos serviços prestados aos cidadãos, nem nas infraestruturas e muito menos numa maior atratividade para os profissionais de saúde.
O que está, então, o Governo a fazer com mais de 17 mil milhões de euros? Quase 45% deste valor é despesa com pessoal, uma rubrica que tem vindo a aumentar todos os anos, apesar da fuga cada vez maior de profissionais de saúde para o privado e para o estrangeiro. Quase 46% do orçamento são gastos na chamada aquisição de bens e serviços, onde se incluem medicamentos, equipamentos, consumíveis, etc. E apenas 3,5% estão destinados à construção, renovação e manutenção de hospitais e centros de saúde. O restante é gasto em transferências e subvenções, despesas de funcionamento, etc.
Se o Estado gasta quase 95% do orçamento da saúde em pessoal e aquisição de bens e serviços, o que explica que os profissionais de saúde não queiram trabalhar no SNS e que os serviços prestados aos utentes sejam cada vez piores? A resposta não pode ser dinheiro. Só pode ser incompetência da gestão.
À falta de melhor escrutínio político, a comunicação social, com todos os defeitos que se lhe possam apontar, tem cumprido o seu papel. Não pode haver boa gestão quando acontecem casos como o que a TVI revelou no Santa Maria, onde um dermatologista, sozinho, faturou 400 mil euros em 10 sábados de trabalho - e de forma legal, ou seja, seguindo as regras que o próprio Estado definiu. Não pode haver boa gestão quando o Ministério da Saúde lança concursos públicos para transporte aéreo do INEM tarde e a más horas, acaba a pagar milhões por ajuste direto e nem sequer garante que a empresa que contratou tem pilotos para fazer o serviço. Não pode haver boa gestão quando o Estado cria um sistema dos tarefeiros que se tornou contraproducente. E isto são apenas três exemplos, dos muitos que podia dar.
Claro que o dinheiro para a saúde nunca chega. Como pode chegar? O ano de 2025 ainda não tinha começado e já se previam mais de 270 milhões de euros de défice na saúde. Em agosto, esse valor já ultrapassava os 700 milhões. Agora imaginem como será no final do ano. Perante este quadro de horror, de contas descontroladas, urgências fechadas, uma fuga de profissionais e o disparar dos seguros privados de saúde, o debate do Orçamento do Estado para 2026 ficou marcado pelos… Salazares de André Ventura. Parabéns ao Governo e à oposição. Deram um excelente contributo para o progresso do país. José Luís Carneiro lá veio, 24 horas depois, reagir a uma notícia do Público - lá está, a comunicação social a cumprir o seu papel - que dava conta da ordem do Diretor Executivo da Saúde para cortar despesa.
A maioria dos partidos políticos e dos sindicatos gostam de repetir que o Serviço Nacional de Saúde foi das maiores conquistas que o país teve depois do 25 de Abril. E eu concordo. Mas, em nome dessa conquista, não pode valer tudo. E, sobretudo, não pode haver cheques em branco. Essa conquista só foi possível e só sobrevive com o dinheiro dos impostos dos portugueses. É preciso respeitar esse dinheiro e esse esforço dos contribuintes. O mínimo que os sindicatos podem fazer é não serem forças de bloqueio ao serviço dos partidos que os suportam. E o mínimo que o Estado pode fazer é gerir bem o dinheiro que não é dele. No caso do Governo atual, talvez pudesse começar por nomear um ministro da Saúde que soubesse o que está a fazer.