Impostos e propaganda a mais, apoios e reformas a menos: patrões acusam Costa, o Governo e o Estado de bloquearem aumentos salariais de 20%

23 jun 2022, 07:00
António Costa e Ana Mendes Godinho em reunião da Comissão Permanente de Concertação Social (Tiago Petinga/ Lusa)

O primeiro-ministro, António Costa, disse duas vezes no espaço de três semanas que é necessário aumentar em 20% o salário médio bruto mensal nos próximos quatro anos. Fomos ouvir os patrões e os sindicatos - e este é o resultado

“As empresas aumentam os salários em função da oferta e da procura e da capacidade que têm de repercutir os custos nos preços de venda dos produtos. Esse tipo de pressões é completamente inútil”, começa por dizer João Vieira Lopes, presidente da direção da Confederação do Comércio Português (CCP). “O primeiro-ministro exige neste enquadramento que as empresas façam esforços, o que já estão a fazer, mas em contrapartida o Estado está a crescer em número de trabalhadores mas o Governo diz que só pode aumentar os salários em 0,9%, o que significa que não está a conseguir melhorar a sua produtividade”, acrescenta.

António Saraiva, presidente da Confederação Empresarial de Portugal (CIP), também é crítico - não do aumento em si, mas do papel do Estado e do Governo. “Tal como o primeiro-ministro define os seus desafios para a legislatura, há um conjunto de desafios que o país tem de enfrentar - mas o país não é apenas o sector privado: veja o caos em termos de organização no SNS e nos aeroportos, isso vai tudo dar à competitividade e atratividade do país”, diz. “Não é apenas a parte privada que tem esse desafio - o Governo é a administração desta empresa que é Portugal e também tem os seus desafios, tem de fazer o seu papel.”

No espaço de 16 dias, António Costa passou duas vezes a mesma mensagem: é preciso aumentar em 20% o salário médio bruto até 2026 pois deve continuar-se o que diz ser a tendência crescente dos salários médios, algo que também o presidente do Banco de Portugal Mário Centeno destacou e que o próprio António Costa diz que tem vindo a repetir desde a apresentação do programa eleitoral.

João Vieira Lopes, presidente da direção da Confederação do Comércio Português (CCP), em reação a esta insistência do primeiro-ministro sobre o tema garante que “marcar planos de aumentos salariais por opção política, ainda por cima do privado, historicamente não se tem revelado positivo, pelo contrário”. “A economia não se desenvolve por decreto mas por atividade e resultado. As empresas têm manifestado junto do primeiro-ministro nos últimos anos, e insistemente, que não têm sido criadas as condições que permitam, de uma forma efetiva, promover o progresso económico e social. Só depois de haver progresso económico, criação de riqueza, é que poderá ser feita a distribuição dessa riqueza”, explica Eduardo Oliveira e Sousa, presidente da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP).

Nominal ou real? (e depois esse problema: os impostos)

Segundo o relatório O impacto da atual conjuntura internacional na atividade das empresas em Portugal, do INE e divulgado em maio, “as empresas apontam para um crescimento anual dos salários médios de 4,2% em 2021 e  perspetivam um aumento de 5,2% para 2022. Entre os motivos assinalados como muito relevantes para o aumento salarial em 2022 estão o aumento do salário mínimo e a necessidade de reter os trabalhadores (28% e 27%, respetivamente)”.

“O dr. António Costa autointitula-se 'otimista' e diria que num cenário otimista podemos ter essa ambição, sendo certo que a ambição deve ter por base ou na sua base um contexto que permita que se possa atingir essa ambição”, afirma Luís Miguel Ribeiro, presidente da Associação Empresarial de Portugal. “Qualquer empresário ficará tão ou mais satisfeito do que o primeiro-ministro de atingir esse aumento de 20%. Isso significa que temos uma melhoria dos custos de contexto - em questões de fiscalidade, como a conectividade e como a burocracia, significa que os serviços públicos estarão a funcionar melhor.”

Quando questionado sobre se o aumento traçado por António Costa é exequível, Ricardo Costa, da Associação Empresarial do Minho, diz que sim. “Se houver pacto entre empresas e governo acredito que é possível, estamos a falar em 5% ano a ano”. Eduardo Oliveira e Sousa, da Confederação de Agricultores Portugueses, vai mais longe: “Pode subir-se os salários até de uma forma mais ambiciosa - os empresários portugueses são os primeiros a desejar ter condições para aumentar salários” mas tal apenas é possível se o Estado “potenciar o desenvolvimento da economia”.

Também para João Vieira Lopes e Jorge Pisco, a subida do salário médio bruto tal como António Costa idealiza não é impossível de alcançar, mas há três fatores que podem condicionar a meta, sendo que dois deles, dizem, dependem diretamente das decisões governamentais. 

“Em primeiro lugar, o primeiro-ministro não explica se esse aumento que preconiza é em termos de salário real ou nominal. Se for em termos de salário nominal, com a inflação existente e que haverá nos próximos anos, até se pode aproximar disso, mas não haverá subida de poder de compra dos cidadãos. Se o crescimento salarial for em termos de salário real, é irrealista”, diz o presidente da direção da Confederação do Comércio Português, que considera que a tutela tem de ser mais clara com aquilo que pede. 

O segundo ponto diz respeito aos impostos como forma de apoio do Estado às empresas. O presidente da Confederação Portuguesa das Micro, Pequenas e Médias Empresas diz que é “fundamental a redução dos impostos - a situação é calamitosa para as empresas, tem de haver apoio nas questões fiscais, é necessário que os apoios existam para que as empresas tenham essa possibilidade de aumentar os salários”. João Vieira Lopes completa: “Aquilo que nos preocupa é a carga fiscal sobre as famílias e sobre as empresas”.

Segundo a Taxing Wages 2022, da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE), “em Portugal o trabalhador solteiro médio enfrentou uma taxa média líquida de imposto de 28,0% em 2021, em comparação com a média da OCDE de 24,6%”, lê-se no documento. E isso o que quer dizer? Que levou para casa 72% do seu salário bruto, “em comparação com a média da OCDE de 75,4%”, sendo que o Estado leva ainda uma parte das empresas. 

O terceiro ponto que pode comprometer a capacidade de as empresas aumentarem os salários é “o aumento dos custos de energia e matérias-primas importadas”, que se tem agravado com a invasão da Rússia à Ucrânia e que pode fazer com que as empresas “não estejam em condições de baixar as margens” a curto e médio prazo. 

“As empresas, para fazerem aumentos salariais significativos, têm de ou melhorar a sua produtividade ou baixar as suas margens. Neste momento a produtividade tem aumentado e por isso as empresas têm feito esse esforço”, explica João Vieira Lopes, que não hesita em dizer que “nem todas” as empresas conseguem baixar as suas margens e, por isso, nem todas conseguem levar a cabo aumentos salariais, embora este ano muitas o estejam a conseguir fazer. “Ao longo deste ano, os contratos coletivos que foram fechados entre as associações empresariais e sindicatos estão, na sua maioria, com aumentos em 2,5% e 3,5%, o que significa que as empresas estão a fazer um esforço.”

Os impostos outra vez

Na primeira vez que tocou no tema este mês, António Costa garantiu que “o Estado pode e deve ajudar com políticas públicas”, no sentido de “aumentar o rendimento disponível das famílias, e em particular dos jovens, enquanto as empresas fazem este esforço do aumento significativo dos salários que pagam”, passando a responsabilidade ao sector empresarial e patronal. Esta segunda-feira disse que “não há outro remédio” senão aumentar os salários médios brutos em 20%, pressionando as empresas para que em 2026 o rendimento bruto médio seja de cerca de 1.633 euros.

“Não sei dizer se coloca pressão, mas há uma tentativa de colocar uma ambição de desenvolvimento de um lado do sector”, diz Eduardo Oliveira e Sousa, da CAP - Confederação dos Agricultores de Portugal, que acrescenta que “o Estado tem de criar condições para que a economia possa progredir". "Enquanto o Estado for o centro da recolha dos proveitos das empresas - a carga fiscal paga ao Governo para manter uma máquina do Estado é completamente desajustada do tipo de economia que Portugal tem, da população que Portugal tem e da capacidade empresarial de Portugal -, a bola não pode ser atirada simplesmente para o setor privado."

Jorge Pisco, presidente da Confederação Portuguesa das Micro, Pequenas e Médias Empresas, diz também que o sector não acusa “essa pressão”, mas apressa-se igualmente em dizer que “são precisos apoios”, descartando que a responsabilidade esteja apenas do lado das empresas: “Não sentimos essa pressão, no caso concreto das micro e médias empresas, que representam 99,9% do tecido empresarial português. Sempre manifestámos que há necessidade do aumento do salário mínimo e que se reflita noutros salários, mas há outras confederações que são contra porque isso mexe com os lucros. Mas é importante que haja aumentos salariais, o aumento leva a um aumento de poder de compra da população, as pessoas podem gastar mais e consumir mais, mas é preciso dar apoio às empresas”, sob a pena de o objetivo de António Costa não ser cumprido.

“À boleia da pandemia e da guerra, não havendo por parte do governo apoio”, pode não ser exequível aumentar os salários para chegar à meta instada pelo primeiro-ministro. “Para que os aumentos se venham a verificar e que as empresas tenham condições para os fazer, são precisos apoios”, diz.

António Saraiva defende que “é claro que temos de subir os salários”, mas junta-se aos pedidos de apoio e responsabilização do Estado. “As empresas agradeciam que da parte do Governo houvesse a eliminação de um conjunto de custos de contextos para que houvesse esse sustentado aumento de salário que já estamos a produzir e que continuaremos a produzir. À medida que temos uma população mais qualificação é mais um desafio para o país, não apenas para as empresas privadas - a entidade pública que é o Estado tem a mesma função.”

O presidente da CIP defende que o Governo tem de “minorar custos contexto e desburocratizar para que o país possa melhorar a política salarial”, mas também diz que, mesmo sendo impossível fazer “futurologia”, o Estado deve ter em conta a conjuntura atual e que direta e indiretamente pode comprometer a capacidade de as empresas aumentarem os salários. “Prever a mais de dois meses é futurologia, as variáveis externas são tão imprevisíveis, não sei se vamos ter matérias-primas para trabalhar, não sei se os custos energéticos continuarem muito elevados se as empresas vão fechar porque não conseguem suportar. Mais do que política salarial é importante criar condições de sobrevivência,”

Ricardo Costa, presidente da Associação Empresarial do Minho, diz que “só na região do Minho faltam 40 mil pessoas qualificadas para as empresas". "Só com melhores salários conseguimos atrair e temos a certeza de que o Governo tem responsabilidades, tem de haver compromisso entre Estado e empresas. Estranhamos que o primeiro-ministro ponha toda a responsabilidade nas empresas e que o Estado não se veja como um dos principais responsáveis - pela carga fiscal, uma das maiores da OCDE, pelo Estado estar demasiado presente na economia, não estimulando no que lhe compete na competitividade da economia portuguesa face a outras geografias. Temos sido ultrapassado por outros países que entraram depois na União Europeia, estamos a ficar na cauda da Europa."

Costa ficou “surpreendido com a surpresa” que o apelo causou. Empresários acusam-no de “propaganda política”

O primeiro-ministro, António Costa, confessou-se “surpreendido com a surpresa” causada pelo seu apelo ao aumento dos salários em 20% nos próximos quatro anos, isto quando, disse, o salário médio subiu 22% nos últimos anos.

“Não sei se é mais uma manobra de propaganda do primeiro-ministro”, aponta Jorge Pisco, presidente da Confederação Portuguesa das Micro, Pequenas e Médias Empresas, relativamente às declarações feitas este mês e ao facto de se António Costa se dizer “surpreendido” com a reação da concertação social. Para o representante das PME, por muito que o Governo pressione as empresas e apele a um esforço conjunto, “é preciso apoio [do Estado] às empresas” para que seja exequível aumentar os salários de forma sustentada.

E quanto aos apoios, Jorge Pisco acusa a tutela de “bluff” e de “propaganda política” com as promessas de “milhões e milhões”. “Dos 700 milhões [prometidos em fundos de apoio], que só em setembro do ano passado é que veio a ser regulamentado, o valor final foi de 3,3% do previsto”, destaca o presidente da Confederação Portuguesa das Micro, Pequenas e Médias Empresas, deixando claro que os apoios foram parcos face “aos problemas gravíssimos nestes dois anos, em que muitos setores empresariais de micro empresários estiveram fechados”.

O presidente da Confederação dos Agricultores de Portugal acusa o primeiro-ministro de “querer desviar a atenção criando um ónus sobre o sector empresarial privado, dando a entender que se o sector não subiu já os salários ou se não sobe é por teimosia”. Eduardo Oliveira e Sousa considera que “isso é uma deturpação da mensagem que os empresários têm tentado fazer valer junto de António Costa". "Não nos parece que haja possibilidade de assegurar uma evolução dos salários dessa natureza apenas", refere. “O Estado tem de fazer o seu trabalho de casa, tem de encolher, conter custos e modernizar os seus serviços, melhorar o  sistema de justiça, diminuir a carga fiscal para atrair o investimento e nada disso conta nos sinais das mensagens que o primeiro-ministro anuncia. Acaba por ser uma tentativa de desviar a atenção quando no fundo a atenção deveria estar numa análise interna da própria máquina do Estado, a voraz máquina do Estado”, frisa o representante dos agricultores.

O relatório “Estado da Nação 2022”, divulgado esta terça-feira pela Fundação José Neves - instituição criada por José Neves, fundador da Farfetch -, revela que nos últimos dez anos o salário médio dos portugueses aumentou apenas para os trabalhadores com o ensino básico, com uma subida na ordem dos 5% e muito por força do aumento do salário mínimo.

Sobre este ponto, Luís Miguel Ribeiro, presidente da Associação Empresarial de Portugal, questiona a eficácia das contas do primeiro-ministro e que dão conta de que o salário médio aumentou 22% em seis anos. “O aumento de salários per si não resolve os problemas, o que resolve é criarmos condições favoráveis, os tais custos de contextos, é melhorar a produtividade das empresas e isso melhora-se também com a melhoria das qualificações das pessoas e a melhoria dos instrumentos para o investimento nas empresas. Se isso se verificar até podemos passar os 20% [ de aumento salarial], mas não é por ter o desejo que as coisas vão acontecer. A comparação com o passado demonstra que nós daqui a cinco ou seis anos podemos aumentar salários e estaremos cada vez mais na cauda da Europa.”

"Os empresários vêm com a ideia falsa de que para aumentar salários é preciso baixar impostos mas não, estão é mal distribuídos"

“Eu ficaria surpreendido se o doutor António Costa não insistisse naquilo que foi um compromisso no seu programa eleitoral e que agora faz parte do programa do governo. Congratulo-me que mantenha o compromisso que assumiu. Vemos com satisfação que mantenha uma promessa, é muito positivo”, diz Mário Mourão. O secretário-geral da UGT - União Geral de Trabalhadores, uma das duas confederações sindicais que fazem parte do Conselho Económico e Social, defende que “é preciso começar a iniciar esta discussão” e que nela, porém, não pode ficar esquecido o sector público, transferindo parte da ambição de António Costa para a administração do Estado. “O primeiro-ministro fala do sector privado mas não se pode esquecer que o sector público tem de ficar dentro da questão. O Estado é um dos maiores administradores do país, tem de dar o exemplo, esperamos que o Governo faça parte desta solução e que não se ponha de lado apenas como espectador.”

Isabel Camarinha, secretária-geral da CGTP-IN - Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses Intersindical, considera que "o Governo que tem a faca e o queijo na mão". "O que fez aos trabalhadores da administração pública e função pública foi aplicar 0,9% de aumento, que nem é um aumento, é uma pequena atualização, e quando aprovou agora o Orçamento do Estado, sabendo que a inflação  já estava nos 7%, manteve essa pequena atualização e não garantiu um aumento intercalar que desse poder de compra, mas deu o sinal ao sector privado para aumentar o salário aos trabalhadores."

Isabel Camarinha diz que António Costa “canalizou para o sector privado as necessidades do sector público”. “O Banco de Portugal mostrou dados de que a produtividade tem aumentado e de que os salários não têm acompanhado esse aumento de produtividade. Isso desequilibra a distribuição da riqueza. Não podemos querer ser o país certinho para a União Europeia, de contas certas, capaz de baixar o défice, de cumprir todas as imposições da União Europeia, isto à custa do empobrecimento e da degradação das condições de vida e de trabalho, da necessidade que os jovens têm de procurar nos outros países uma forma de se sustentarem e terem uma vida independente. Tudo isto são opções que o Governo toma”.

Mas a secretária-geral da CGTP não deixa de tecer críticas aos empresários. “As grandes despesas são com custos de contexto, não com salários dos trabalhadores. Os empresários vêm com a ideia falsa de que para aumentar salários é preciso baixar impostos mas não, estão é mal distribuídos, como a riqueza no nosso país” - e são as PME o elo mais fraco, diz. “As PME são todas vítimas da sede de lucro dos grande grupos económicos - que não é travada. Se for travada trará outras complicações para as PME.” 

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