Paulo Rangel e Ana Gomes recordam resolução de 2016 a alertar para a propaganda russa feita pela fundação Russkiy Mir - que agora se descobriu ter ligações a várias associações que estão a acolher refugiados. Para o social-democrata a situação reflete "negligência e cumplicidade" do Estado português. Já a ex-candidata presidencial lembra que em causa estão ações de espionagem. Na altura, o documento de combate à desinformação da Rússia foi aprovado. O PCP votou contra
O Parlamento Europeu já tinha alertado os países da UE, incluindo Portugal, para as atividades de espionagem da Fundação Russkiy Mir Mir, criada por Vladimir Putin - a mesma que agora se descobriu ter ligações a várias associações portuguesas que têm trabalhado no acolhimento de refugiados de guerra.
"Estranho que as autoridades portuguesas não tenham feito nada, quando este problema já estava identificado desde 2016, quando foi aprovada pelo Parlamento Europeu uma resolução” para combater a propaganda contra a UE, adiantou à CNN Portugal o eurodeputado Paulo Rangel (EPP), explicando que esse documento europeu referia especificamente a Fundação Russkiy Mir, do presidente russo.
Em causa, está uma Resolução do Parlamento Europeu sobre a comunicação estratégica da União Europeia, aprovada em novembro de 2016, para a implementação de políticas de combate à desinformação e propaganda contra a UE, especificamente sobre ameaças vindas do Estado Islâmico e da Rússia. Quanto a este país, no texto final, é reconhecido que aquela fundação de Putin é um meio para apresentar o regime russo como “o único defensor dos valores cristãos tradicionais” e para “desafiar os valores democráticos, dividir a Europa, reunir apoio interno e criar a percepção de estados falidos na vizinhança oriental da UE”.
Na época, só o PSD e Ana Gomes votaram a favor deste documento, recorda Paulo Rangel. O PS absteve-se e os comunistas votaram contra. Agora, tanto Rangel como Ana Gomes, garantem que a situação é grave e avisam que as autoridades deviam ter agido, em especial quando começou a guerra na Ucrânia.
“O Parlamento Europeu tem informação credível sobre as ligações e as estratégias de desinformação levadas a cabo pela Russkiy Mir”, diz Paulo Rangel, sublinhando que esta fundação "contribui para os objetivos do Kremlin, porque é o braço longo do FSB (o herdeiro do KGB)". Segundo o eurodeputado, tudo "isso já está amplamente documentado".
"Que os dirigentes em Portugal não tenham reparado, em 2016, que existia esta estratégia do Kremlin não é grave, mas o Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP) devia de ter pegado nesta informação e ter informado o governo português", diz Rangel, acrescentando que, quando "a guerra começou, o Estado Português devia ter começado este trabalho de fiscalização das organizações que têm ligações à Russkyi Mir".
Já Ana Gomes acusa diretamente o Governo de não agir, acreditando que os serviços secretos tenham passado a informação. "No SIRP sabem, não são desatentos. Acredito que tenham informado quem é competente. Já as autoridades atuarem, é outra história".
Para a ex-eurodeputada Ana Gomes “não há justificação para as autoridades não perceberem daquilo que se trata”. Até porque porque os avisos se têm multiplicado.
Ainda recentemente no início da invasão da Rússia à Ucrânia, os eurodeputados receberam um documento para os ajudar a compreender a dimensão religiosa e ideológica desta operação militar. No documento intitulado "A Guerra da Rússia na Ucrânia: a dimensão religiosa" é descrito que a fundação Russkyi Mir pretende atribuir à Rússia “um papel quase messiânico de salvação da civilização cristã do Ocidente decadente, através da disseminação da língua, cultura e valores russos, voltando a dominar países anteriormente dentro da União Soviética e exercendo influência em todo o mundo ortodoxo e ocidental mais amplo”.
Notando que "só um país muito desatento é que pode não prestar atenção à evolução destas ligações ao Kremlin”, Ana Gomes afirma que "não há justificação para as autoridades não perceberem daquilo de que se trata”.
Já Rangel diz que este é "um caso de negligência e cumplicidade". E explica: "No caso da negligência, essa então, é indesculpável, pela informação que já tinha chegado aos organismos em 2016. Mas em janeiro, quando passou a existir o risco sério de que a invasão iria acontecer, é evidente que deveriam ter passado essas informações às autoridades para fiscalizarem as organizações que têm ligações à Russkiy Mir Mir".
Ligações que segundo a embaixadora ucraniana em Portugal existem em várias associações a operar em Portugal no acolhimento de refugiados ucranianos, colocando em risco a sua segurança e a dos seus familiares que ficaram a combater na guerra.
Segundo Ana Gomes, a fundação de Putin associa-se a organizações não governamentais porque “é uma particularmente airosa cobertura da atividade de espionagem". "Não estamos só a falar do lado da propaganda, estas fundações também armazenam dados sensíveis”, explica.
Relativamente ao caso das associações que em Portugal estão a acolher refugiados, tendo, no entanto, ligações a organismos do Putin - como sucedeu na Câmara de Setúbal - Rangel diz que é importante agir: "Não se trata de censurar estas associações pró-russas, trata-se de impedir que tenham um papel ativo na receção de refugiados ucranianos, porque, quando isso acontece, estamos a colocar os direitos fundamentais dessas pessoas em causa".
Comunista João Ferreira votou contra resolução
Tal como sucedeu agora na posição em relação à guerra, também na hora de aprovar estas medidas de combate à propaganda e desinformação russa, o PCP votou contra esta resolução que foi aprovada por maioria simples. O comunista João Ferreira, em representação do partido Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Nórdica Verde, justificou, na altura, por escrito o seu voto contra com o facto de ser “um elemento de aprofundamento do carácter reacionário e antidemocrático da União Europeia”.
Segundo João Ferreira, o documento do Parlamento Europeu transmite valores que “as políticas da UE contrariam e comprometem, do que é o mais crasso exemplo a crise humanitária dos migrantes e refugiados”. Assim, explica, “integra uma estratégia de vitimização, construindo um suposto contexto de ofensiva contra a UE, numa pretensa guerra de informação sem precedentes, uma poderosa ofensiva mediática”.
João Ferreira considera com este tipo de resolução o Parlamento Europeu quer “avançar para a limitação e mais controlo de meios de comunicação social, da internet, de programas escolares e até partidos políticos”. E acrescentou: “Absolutiza-se como verdadeira a informação da UE, distinguindo propaganda e crítica, balizando o que é a crítica aceitável. Abrem-se, assim, as portas da censura que tantas páginas negras escreveu em solo europeu. Práticas dignas de regimes autoritários e ditatoriais”, conclui.
Quanto ao PS, o presidente da Delegação Socialista Portuguesa no Parlamento Europeu Carlos Zorrinho escolheu abster-se, sustentando a sua decisão na crença de que “misturar o Estado e atores não estatais não é a melhor abordagem para uma resolução do Parlamento Europeu sobre esta matéria”.