Moscovo bloqueou os portos ucranianos no Mar Negro, mas o embaixador russo na ONU diz que é a Ucrânia que está a impedir a exportação dos seus cereais por via marítima. Entre outras realidades alternativas, também acusou a Ucrânia de ter colocado minas nessas rotas marítimas
Ao fim de quase três meses a jurar que não há uma guerra na Ucrânia, e a garantir que está a “libertar” o povo ucraniano; depois de ter dito que os ucranianos se estavam a bombardear a si próprios, e de ter acusado a Ucrânia de ser responsável pelo massacre de Bucha (ou pela “encenação” de Bucha, conforme as versões), a Rússia voltou esta quinta-feira a apostar forte em virar os factos do avesso. De acordo com a realidade alternativa propagada pelos representantes russos, é a Ucrânia que está a impedir que saiam dos seus portos do Mar Negro cargueiros com cereais ucranianos.
A insólita tese, que contraria todas as evidências e até as reivindicações de superioridade militar naval propagadas pelo Kremlin, foi defendida ontem pelo embaixador russo nas Nações Unidas, Vasily Nebenzya.
O representante permanente da Rússia na ONU tem sido um dos grandes propagandistas dos “factos alternativos” do Kremlin, e ontem voltou a fazê-lo, durante um debate sobre as consequências - para a Ucrânia, mas também para povos de todo o mundo - do bloqueio naval que a Armada russa impôs nos portos ucranianos do Mar Negro. Toneladas de cereais que a Ucrânia deveria exportar para diversas partes do mundo estão retidas, colocando em risco a alimentação de milhões de pessoas, conforme voltou a alertar o secretário-geral da ONU, António Guterres.
Porém, na versão do representante de Vladimir Putin, a culpa, mais uma vez, é da Ucrânia. "A verdade é que a Ucrânia, não a Rússia, continua a bloquear 75 navios estrangeiros de 17 países nos portos de Mykolayiv, Kherson, Mariupol, Ochakov, Odessa e Yuzhnoye, e foi a Ucrânia que minou o Mar Negro", disse o enviado russo.
Esta alegação contraria os factos mais básicos, confirmados pela ONU, por observadores internacionais e mesmo pelas autoridades de Moscovo: a Armada russa tem uma grande superioridade no Mar Negro e tem bloqueado os portos ucranianos - tanto aqueles sobre os quais ganhou controlo terrestre, como Mariupol, como outros a que não chegou por terra, mas aos quais impede o acesso por mar, como acontece com Odessa.
Por outro lado, a Rússia tem sido condenada pelos países ocidentais e por observadores independentes por ter procedido a uma operação de minagem em larga escala das águas do Mar Negro - de tal forma que se teme que essas minas possam acabar por chegar ao Mediterrâneo e possam deixar em perigo, por muito tempo, a navegação no Mar Negro.
A realidade alternativa do embaixador russo foi ao ponto de alegar que as Forças Armadas do seu país abrem diariamente um corredor humanitário para a passagem de navios, e que é Kiev que evita a cooperação com representantes de armadores estrangeiros. O alegado “corredor humanitário” marítimo diário nunca aconteceu.
Moscovo impõe condições para levantar o bloqueio
As alegações do embaixador russo surgiram em resposta à condenação generalizada do seu país pelas responsabilidades numa previsível crise alimentar global. Do secretário-geral da ONU ao secretário de Estado norte-americano, vários protagonistas de alto nível responsabilizaram a Rússia por um bloqueio aos portos ucranianos que pode causar uma crise humanitária devastadora.
O representante de Moscovo não mostrou qualquer abertura aos pedidos para que o seu país levante o bloqueio no Mar Negro, não se mostrou disponível a negociar o carregamento de cereais, nem reconheceu o papel da Rússia na interrupção da exportação a partir da Ucrânia, que é um dos maiores fornecedores mundiais de trigo.
Apesar de Nebenzya ter jurado que é a Ucrânia que retém os cargueiros com cereais, o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia acabou por assumir o óbvio - que é Moscovo quem controla esses portos - ao emitir um comunicado colocando uma condição para acabar com o bloqueio: para isso, teriam de ser levantadas as sanções ocidentais à Rússia.
Alheio a estas contradições na narrativa russa, Nebenzya considerou que o aumento do custo dos cereais já vinha de antes da “operação militar espacial” da Rússia na Ucrânia, assim como os problemas nas cadeias de abastecimento alimentar, por causa da pandemia de covid-19. Também culpou o clima, as guerras comerciais, a especulação dos investidores ocidentais, e sobretudo o efeito das sanções contra a Rússia.
"A tendência mais evidente na evolução da cultura política nos Estados ocidentais tem sido o esforço de culpar a Rússia por tudo", disse. "Não podemos fazer nada quanto ao seu esforço maníaco de disparar um tiro no pé ou mesmo em ambos os pés", alegou o diplomata.
Rússia “transformou comida em armas”
Os “factos alternativos” do representante do Kremlin foram contrariados pelos representantes de diversos países, mas sobretudo pelo chefe da diplomacia norte-americana, Antony Blinken, que participou na sessão.
“A Federação Russa alega falsamente que as sanções da comunidade internacional são responsáveis pelo agravamento da crise alimentar mundial. As sanções não estão a bloquear os portos do Mar Negro, a prender navios cheios de alimentos, e a destruir estradas e caminhos-de-ferro ucranianos; a Rússia sim. As sanções não estão a esvaziar silos de cereais ucranianos e a roubar equipamento agrícola ucraniano; a Rússia é que está.”
“A decisão de transformar a comida num arma é de Moscovo e só de Moscovo”, acusou Blinken. E recordou as palavras recentes de Dmitri Medvedev, antigo presidente russo e um dos pontas de lança da propaganda do Kremlin, que disse que para a Rússia os produtos agrícolas são "uma arma silenciosa", “mas ameaçadora".
Não há sanções sobre alimentos ou fertilizantes
Durante a sessão, o embaixador russo propôs que os países ocidentais levantem o bloqueio aos fornecimentos de produtos agrícolas e fertilizantes da Rússia e da Bielorrússia. "Temos uma colheita recorde de trigo este ano. Podemos oferecer-nos para exportar 25 milhões de toneladas de cereais através do porto de Novorossiysk, de 1 de Agosto até ao final do ano. Podemos discutir outras compras, em particular, tendo em conta que de Junho a Dezembro, o potencial de exportação de fertilizantes será de pelo menos 22 milhões de toneladas", disse o enviado russo.
Porém, esta “oferta” parte de um pressuposto falso: não há qualquer embargo dos EUA ou dos seus aliados a produtos agrícolas ou fertilizantes russos e bielorrussos. “As sanções não estão a impedir a Rússia de exportar alimentos e fertilizantes; as sanções impostas pelos Estados Unidos e por muitos outros países incluem deliberadamente exceções para alimentos, fertilizantes e sementes da Rússia, e estamos a trabalhar diariamente com os países para garantir que compreendam que as sanções não impedem o fluxo destes artigos”, declarou o chefe da diplomacia norte-americana.
Também o embaixador francês na ONU frisou que os países ocidentais não lançaram “qualquer sanção sobre o setor alimentar”. “A Rússia é a única responsável”, acusou.