Passadas 72 horas desde o início da ofensiva ucraniana em Kursk, os especialistas partilham da mesma leitura: esta foi uma ação militar "muito bem coordenada" e que apanhou a Rússia de surpresa. "A Ucrânia sabia exatamente que naquela região o dispositivo militar russo era praticamente inexistente"
De Moscovo garantiram que eram "apenas" 300 soldados com 31 veículos blindados e que praticamente todos os inimigos tinham sido neutralizados rapidamente após uma aparente incursão na região de Kursk. Mas a manhã de quarta-feira trouxe uma realidade diferente: ainda não se sabe quantos são, mas não serão "apenas" 300, e estão bem longe de ter sido neutralizados.
Assim que começaram a surgir as primeiras imagens do campo de batalha foi possível reconhecer algumas das unidades militares que a Ucrânia empregou nesta operação e a conclusão foi óbvia: no terreno estavam mais do que 300 soldados e 31 veículos blindados, contrariamente àquilo que garantiu inicialmente o Kremlin. Além disso, a dificuldade com que a Rússia está a lidar com a situação, tendo já declarado estado de emergência federal naquela região.
A Ucrânia surpreendeu todos
O major-general Agostinho Costa, especialista em assuntos militares, explica à CNN Portugal que os primeiros dados avançados "davam conta da presença em combate da 22.ª brigada mecanizada ucraniana" e que, com o passar das horas, novos dados revelaram que a presença ucraniana em Kursk era significativa. "A Rússia estava convencida de que se tratavam apenas de unidades de reconhecimento", afirma o especialista.
O militar classifica ainda a ofensiva ucraniana como "muito bem coordenada" e atribui parte do seu sucesso ao facto de ter beneficiado do factor surpresa, já que "este ataque apanhou os russos completamente desprevenidos".
Sabe-se também que a Ucrânia mobilizou uma quantidade significativa de recursos de defesa antiaérea, nomeadamente uma brigada antiaérea e várias unidades de drones - uma delas atingiu uma base aérea na região de Lipetsk, onde também foi declarado estado de emergência. Pelo menos um avião de combate e dois helicópteros russos foram destruídos enquanto tentavam atacar tropas ucranianas na região de Kursk.
🚁Підбитий кацапський Ка-52 припусково на Курщині
🖼 За світлину без вотермарок вдячні @war_monitor_ua pic.twitter.com/VHmEQWbFN4
— DeepState UA (@Deepstate_UA) August 6, 2024
"A Ucrânia fez o trabalho de casa", afirma à CNN Portugal o major-general Isidro de Morais Pereira, também especialista em assuntos militares, sublinhando que Kiev "sabia exatamente que naquela região [Kursk] o dispositivo militar russo era praticamente inexistente", pelo que "os russos foram apanhados de calças na mão".
A informação oficial é escassa e, em muitos casos, contraditória. Mas, através da geolocalização das imagens que aparecem no terreno, é possível ter uma ideia um pouco mais clara de onde estão a operar os dois exércitos.
O major-general Isidro de Morais Pereira partilha que a informação divulgada pelas entidades russas nas últimas horas "é pouco credível". E em relação ao número de militares ucranianos envolvidos acrescenta: "Eu sempre pensei, na minha análise, que teriam de ser mais do que 300 homens".
Segundo noticia a BBC, a Rússia já confirmou terem sido cerca de mil os militares ucranianos, acompanhados de veículos blindados, que invadiram Kursk na passada terça-feira.
Também com base no método de análise das imagens divulgadas é possível perceber que a penetração das forças ucranianas é significativa.
"Passadas 72 horas, mais ou menos, não há combate sério, porque a Rússia não tem na região uma força capaz de dar combate às forças ucranianas", avança o militar, numa altura em que o o exército ucraniano, de acordo com o Financial Times, já controla cerca de 350 quilómetros quadrados do território russo na região de Kursk, onde penetrou perto de 35 quilómetros, segundo uma análise do Instituto para o Estudo da Guerra.
Conforme noticiado pelo Kyiv Independent, Apti Alaudinov, o comandante da unidade militar chechena Akhmat - que Putin destacou para a região de Kursk -, já veio admitir, num vídeo publicado pela agência independente russa Agentstvo no Telegram, a existência de baixas no lado russo.
"Sim, morreram militares russos, isso é um facto. O inimigo entrou em várias povoações", disse Alaudinov.
Também Jason Jay Smart, correspondente no Kyiv Post, publicou na rede social X um vídeo onde alegados soldados russos, supostamente pertencentes à 225º brigada de assalto do exército de Putin, foram capturados e feitos prisioneiros de guerra pelos militares ucranianos no decurso da ofensiva militar em Kursk.
⚡️⚡️⚡️ Russia’s 225th Assault Brigade has been taken Prisoner of War, inside of Russia, by Ukraine 🇺🇦! pic.twitter.com/Go55j0uEU5
— Jason Jay Smart (@officejjsmart) August 7, 2024
As centrais nucleares
Kiev tem adotado uma postura de contenção e, até ao momento, muito pouco tem avançado sobre a ofensiva militar em Kursk. Mas Volodymyr Zelensky, esta quarta-feira, já declarou ser "importante continuar a destruir o inimigo" e que quanta mais pressão se exercer sobre a Rússia "mais perto estaremos da paz", deixando, assim, por esclarecer quais os verdadeiros motivos da recente incursão militar em território russo.
O Major-general Agostinho Costa coloca a hipótese da recente incursão militar ucraniana se repetir "na zona de Zaporizhzhia, com o objetivo de reaver a central nuclear daquela região", conquistada pelos russos em 2022, "mas a mim parece-me um pouco difícil", acrescenta.
Já o Major-general Isidro de Morais Pereira diz que os ucranianos, cada vez mais próximos de Kurchatov, uma cidade em Kursk perto do local onde está instalada a central nuclear daquela região, poderão ter como objetivo a conquista destas instalações. O especialista militar entende que essa poderá ser uma das principais pretensões do exército ucraniano "para servir de moeda de troca e dizer aos russos: agora esta [central nuclear de Kursk] é nossa, entreguem-nos a de Zaporizhzhia".
"Putin neste momento está perante um dilema"
Os últimos três dias, de acordo com os analistas, representam um dos maiores embaraços - desde o início da guerra na Ucrânia-, para o regime de Vladimir Putin. E internamente, tanto por parte dos apoiantes do regime como da população residente na região invadida pelos ucranianos, são várias as críticas e acusações de negligência dirigidas ao exército e Estado russo.
Esta situação, que Putin classificou como uma “provocação em grande escala”, deixou o líder russo num dilema..."o dilema que a própria Ucrânia lhe colocou", afirma o Major-general Isidro de Morais Pereira.
O especialista em assuntos de defesa salienta que não se criam novas brigadas militares num "estalar de dedos" e que "a Rússia não tem forças capazes de combater [em Kursk]". O que nos leva ao "dilema de Putin": decidir se retira parte das forças destacadas na região de Donetsk para combater os ucranianos na nova frente de guerra; ou se mantém o contigente no leste da Ucrânia e permitir o avanço das tropas de Kiev em Kursk.
"A Rússia vai ter mesmo de retirar forças da região leste para poder acudir à situação que se está a passar em Kursk...não estou a ver outra solução", conclui o militar.