Como uma troca de tecnologias entre russos e iranianos ameaça diretamente a Ucrânia e indiretamente Israel (e não só). E como é ainda reveladora das várias ordens mundiais - das existentes e de uma nova "em formação"
A Rússia voltou a atingir a Kiev com drones kamikaze de origem iraniana que o Irão nega ter cedido. Trata-se do modelo Shahed-136, de fabrico iraniano e têm capacidade de transportar explosivos a distâncias de quase 2.500 quilómetros. Mas o Irão já veio negar mais uma vez que tenha fornecido armamento a qualquer um dos lados em conflito, ainda que responsáveis ucranianos no terreno garantam que entre os destroços surge armamento iraniano que só pode ter sido fornecido a Moscovo.
Segundo o Major-General Agostinho Costa, estes drones não eram desconhecidos e os iranianos têm-nos utilizado sobretudo no Iraque. "São puramente iranianos", constata o especialista em Assuntos de Segurança, detalhando que é possível identificá-los seja pelo próprio formato do drone ou até mesmo pelas marcas. "Aliás, há registo de que todos os dias chegam aviões do Irão a Moscovo."
Agostinho Costa explica ainda que o Irão tem contrapartidas, visto que terá havido um acordo entre o governo iraniano e Moscovo para a Rússia facultar o acesso a caças Sukhoi 35 - o avião topo de gama produzido pelos russos. Prova disso são os relatos de que há aeronaves russas que deveriam ter seguido para o Egito e que lhes foi mudada a caracterização para serem entregues ao Irão, refere o especialista. "Os iranianos ainda têm aviões do tempo do chá da Pérsia", como os F-14, que "são muito bons mas muito antigos", sublinha Agostinho Costa.
Por outro lado, a Rússia deixou-se ultrapassar em termos de drones, refere o major-general. "Isso é sabido, até porque os russos perderam muita tecnologia: têm um drone kamikaze - que até é eficiente - mas não têm drones com uma grande capacidade de penetração ao nível de reconhecimento. Os iranianos sim. Os iranianos desenvolveram essa capacidade porque têm como objetivo atacar Israel", afirma o major-general.
Nesse sentido, há vantagem para o Irão de testar a tecnologia do seus drones Shahed-136 noutro campo de batalha, para depois obter vantagens nos conflitos em que participa diretamente.
Mas há mais: a verdade é que a ligação do Irão à Rússia neste momento é muito grande e, em termos de contrapartidas, a Rússia está a apoiar a edificação de uma central nuclear em território iraniano, indica Agostinho Costa. "Quem é que apoia em termos de tecnologia nuclear? A Rússia."
Paralelamente, há também uma vertente de negócio. "É como uma publicidade para o exterior: os drones têm eficácia comprovada em combate". Mas não são só os iranianos que fazem isso, aponta Agostinho Costa. "São os turcos e os americanos, por exemplo. Tal e qual como os Bayraktar TB2 foram uma publicidade enorme para a Turquia", acrescenta. "Os franceses também mandaram os seus Caesar para provar que são muito eficazes", indica, exemplificando: "O pior que pode acontecer é dizer-se que o equipamento que os Estados Unidos cederam à Ucrânia é neutralizado."
Além disso, há outro fator diferenciador: o custo - enquanto um míssil calibre custa seis milhões e meio, um Shahed 136 custa cerca de 20 mil euros, indica Agostinho Costa. "É um negócio de guerra e estamos também perante a promoção de um produto."
A quarta ordem mundial
O politólogo José Filipe Pinto lembra que esta guerra é "uma luta entre ordens": Vladimir Putin lidera a ordem euroasiática, a Ocidente os Estados Unidos lideram a ordem liberal e "há mais duas ordens que estão muito presentes no conflito" - a China, que se abstém sistematicamente nas votações e simultaneamente procura apelar ao diálogo mas nunca condena diretamente a invasão; o Irão.
"A quarta ordem mundial é a ordem Islâmica - e está em formação", refere o politólogo, explicando que o mundo islâmico está dividido entre a maioria (que é sunita e que tem a sua condução na Arábia Saudita) e a parte xiita (que é liderada pelo Irão). "E o que é que o Irão está fazer? O Irão por norma ficaria sempre do lado onde não estivessem os Estados Unidos" - por uma questão histórica mas mais do que isso: "É uma tentativa de afirmação de liderar esta ordem Islâmica".
E, nesse sentido, começa a observar-se a adoção de uma posição em tudo semelhante à da China, aponta o politólogo: o Irão fornece, recebe o dinheiro, estabelece uma correlação com uma ordem que sabe que não o vai confrontar no imediato - nem a médio prazo - e tenta afirmar-se como líder desta ordem.
Aliás, a Arábia Saudita disse na semana passada que iria fazer uma também doação, "o que significa marcar também terreno". "Esta é a Arábia Saudita a quem Donald Trump vendeu imensas armas, sabendo que este é um país que financia o terrorismo e que provavelmente essas mesmas armas vão ser depois utilizadas no terreno contra os Estados Unidos. O mundo é muito complexo e cada uma das ordens procura isso."
Então o que ganha o Irão com a venda de drones para a Rússia? "Marcar uma tentativa de protagonismo", diz José Filipe Pinto, destacando, contudo, que "não vai ser fácil porque os sunitas são muito maiores do que os xiitas". "Mas há a possibilidade de este Irão conseguir liderar por antecipação a ordem Islâmica. Só falta sabermos qual será a posição da Índia. Esta estratégia do Irão - e é mesmo uma estratégia definida - tem duas finalidades: afrontar os Estados Unidos e afirmar-se no mundo islâmico."
Quando é que terá novos desenvolvimentos? "Num primeiro momento, nenhuns", diz José Filipe Pinto. "A política internacional não é mundo de anjos, é um mundo de homens - o que significa que o mundo assiste a uma política quase paralela, de falta de autenticidade." E essa posição manifesta-se quando um país participa num conflito sem o assumir. "E isso para quê? Para depois o Irão se vitimizar quando os Estados Unidos tentarem retaliar."