Zelensky pressiona Biden a reconhecer Rússia como Estado terrorista. O que muda com esta decisão? (que seria sempre mais difícil na UE)

5 ago 2022, 09:00
Tropas russas na Ucrânia (AP Images)

Classificar um Estado como terrorista ou patrocinador de terrorismo não só tem implicações político-diplomáticas, como também ao nível económico e jurídico, explicam os especialistas contactados pela CNN Portugal

O presidente norte-americano, Joe Biden, está a ser pressionado pelo Congresso dos EUA e pela Ucrânia (na voz do presidente Volodymyr Zelensky) a reconhecer formalmente a Rússia como um Estado patrocinador de terrorismo, uma classificação atualmente reservada à Coreia do Norte, Síria, Cuba e Irão. A questão também foi levantada em Portugal por uma associação de ucranianos que vai pedir à Assembleia da República que reconheça a Rússia como um Estado terrorista.

Nos Estados Unidos (EUA), apesar dos apelos nesse sentido, o secretário de Estado, Antony Blinken, não se mostrou muito convencido com a medida, argumentando que as sanções implementadas contra Moscovo já têm os mesmos efeitos. "Os custos que foram impostos à Rússia, tanto por nós como por outros países, estão absolutamente em linha com as consequências que resultariam da designação de patrocinador do terrorismo. Portanto, os efeitos práticos são os mesmos", afirmou aos jornalistas. Será mesmo assim? 

Classificar um Estado como terrorista ou patrocinador de terrorismo não só tem implicações político-diplomáticas, como também ao nível económico e jurídico, explicam os especialistas contactados pela CNN Portugal. 

"Tem um significado político-diplomático e um significado jurídico, na medida em que pessoas singulares, coletivas (como sociedades comerciais ou outro tipo de empresas) e os próprios EUA não podem manter relações económico-comerciais", explica o advogado Paulo Saragoça da Matta.

Um passo "mais fácil" nos EUA e "utópico" na UE

O advogado considera que uma medida destas seria "mais fácil" de tomar nos EUA do que na União Europeia (UE), cujos países "mantêm relações comerciais e até as desejam e delas necessitam", desde logo na compra de energia e gás russo. Por essa razão, Saragoça da Matta diz que uma decisão num país europeu como Portugal, seria "uma coisa absolutamente utópica". 

"A partir do momento em que se considera que aquele Estado [a Rússia] deveria ser assimilado a uma organização terrorista, o Estado português estaria inibido de formalizar contratos com esse Estado, tal como as empresas portuguesas deixavam de poder negociar com ele", problematiza.

Helena Ferro Gouveia, especialista em relações internacionais, salienta que este passo por parte dos EUA significaria um "endurecimento ainda maior" das sanções aplicadas a Moscovo. Por exemplo, os países ficaram impossibilitados de estabelecer acordos de venda de armamento e, além das sanções ao país classificado como terrorista, seriam também aplicadas sanções a "Estados amigos" desse país.

Do ponto de vista diplomático, prossegue a investigadora, esta decisão pode resultar na "expulsão de todos os diplomatas norte-americanos que estão na Rússia". Apesar da guerra na Ucrânia, os corredores diplomáticos entre os Estados Unidos e a Rússia continuam a funcionar para negociar outros acordos, nomeadamente em relação ao Irão, pelo que cortar as relações diplomáticas com a Rússia colocaria em causa o restabelecimento do programa nuclear do Irão, que deixou de funcionar desde Donald Trump o abandonou em 2018.

"A hesitação norte-americana [com esta classificação] prende-se precisamente com o facto de poder vir a bloquear outros processos diplomáticos, que continuam a ser negociados", sustenta.

Uma medida com "pouco impacto" para a Ucrânia

Contudo, e apesar da insistência da Ucrânia para que os países reconheçam a Rússia como um Estado terrorista, as especialistas consideram que esta classificação não terá quaisquer efeitos práticos no decurso do conflito. "Efeitos práticos no decorrer desta guerra serão nulos ou praticamente nulos, uma vez que já foram aplicados sete pacotes de sanções sem precedentes e com uma dureza muito grande. Será difícil avançar com mais sanções, porque estão a ter não só um impacto brutal na economia russa, como também no Ocidente", explica Helena Ferro Gouveia. 

É certo que "a Rússia tem comportamentos que pouco diferem de Estados como o autoproclamado Estado Islâmico", acrescenta a especialista, desde logo "no desrespeito pelos direitos humanos, no uso de armamento proibido, na prática de tortura, crimes de guerra e violações", rompendo assim com as regras do direito internacional. Todavia, "no terreno, pouco impacto terá" classificar a Rússia como Estado terrorista, sustenta.

Também Diana Soller, investigadora em relações internacionais, acredita que uma decisão dessas "não vai ter efeitos práticos" na guerra: "Já vimos que a Rússia não está a ser isolada internacionalmente da forma que o Ocidente gostaria, apesar de todas as acusações de que é alvo".

A especialista considera, aliás, que esta classificação "até pode ser contraproducente": "Com tantas classificações e tantos processos abertos, às tantas tudo isto dá mão livre à Rússia para cometer todo o tipo de crimes que quiser, porque, na verdade, já está manchada de uma forma tão indelével que não é por cometer mais crimes ou menos crimes que vai ter uma maior repercussão quer na sua imagem e no seu prestígio internacional, quer eventualmente em julgamentos de guerra."

Embora possa não vir a ter grandes efeitos no terreno, as investigadoras consideram que esta é uma forma de "não deixar morrer este conflito ao nível da comunicação social internacional", tal como acontece com todas as outras guerras que estão em curso em todo o mundo. "Isso é importante para a Ucrânia, porque precisa de continuar a receber apoio do Ocidente", explica Diana Soller.

"O que a Ucrânia não quer é que o conflito seja esquecido", diz Helena Ferro Gouveia, salientando que as guerras "tendem a ser esquecidas quando desaparecem das televisões". Nesse sentido, acrescenta, a Ucrânia "vai tentar fazer tudo para o manter presente" na comunicação social. 

O que significa para a Rússia?

Confrontada com as iniciativas do Congresso norte-americano, a Rússia ameaçou com o corte de relações diplomáticas caso a administração Biden avance nesse sentido. "Qualquer ação provoca uma reação, e o resultado lógico desse passo irresponsável pode ser a rutura das relações diplomáticas", frisou a porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros russo, Maria Zakharova, em conferência de imprensa esta terça-feira.

Helena Ferro Gouveia não tem dúvidas de que um passo destes por parte dos Estados Unidos, "a principal economia mundial", seria mais uma "mácula" para a imagem de Moscovo no contexto internacional. "A Rússia é um país com uma cultura extraordinária - da qual também nós, europeus, bebemos -, é o maior país do mundo do ponto de vista geográfico, e, neste momento, é uma sombra daquilo que foi. Para um país que é orgulhoso de si próprio, da sua cultura e história, o estar isolado e ser mal visto internacionalmente também vai pesar internamente. Porque os russos também sofrem com isto", resume.

As duas investigadoras chamam a atenção para as consequências de classificar a Rússia como um Estado terrorista num momento de grande "tensão" na esfera internacional, sobretudo com a visita de Nancy Pelosi, a líder da Câmara dos Representantes dos EUA, a Taiwan, à rebelia de Pequim. "Com esta visita de Nancy Pelosi, com o aumento das tensões na zona do Indo-Pacífico, com tudo isto, talvez não seja o momento mais adequado para se avançar com este tipo de classificação, o que não impede de criticar e censurar a Rússia, e apoiar a Ucrânia, como, aliás, está a ser feito", argumenta a investigadora.

Também Diana Soller defende que "não convém de todo exaltar mais os ânimos" na diplomacia e nas relações internacionais: "Chegámos ao momento em que, olhando para o sistema internacional como um todo, estamos numa fase de grande tensão, e o que interessa neste momento é baixar a tensão e não aumentá-la."

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