A China é dos poucos aliados de peso com que Putin conta na cena internacional. Uma parceria renovada, que preocupa a Europa e os EUA, e pode ter consequências na Ásia: o que acontecer na Ucrânia pode ser um guia para uma ação militar chinesa contra Taiwan
Depois da ação militar que desencadeou contra a Ucrânia, sob uma narrativa de "manutenção de paz", Vladimir Putin terá poucos aliados de peso na cena internacional. Mas um - a China - tem uma relevância diplomática, militar e económica que vale por muitos. O primeiro momento para aferir a solidez dessa ligação é a reunião de emergência do Conselho de Segurança da ONU. A renovada parceria entre Moscovo e Pequim dá conforto ao presidente russo, preocupa europeus e norte-americanos, e pode ter consequências que se estendem da Europa até à Ásia. O que acontecer na Ucrânia pode ser um guia para uma ação militar chinesa contra Taiwan.
Os olhos do mundo estão postos na Ucrânia, e um dos olhares mais atentos está do outro lado do mundo. Não foi um acaso que a China tenha sido o destino da última viagem internacional de Vladimir Putin antes de agudizar a crise entre a Rússia e a Ucrânia. O acaso ajudou - o pretexto foi o arranque dos Jogos Olímpicos de Inverno, no início de fevereiro, em Pequim - mas na alta diplomacia global raramente há acasos. O aperto de mão entre Putin e Xi Jinping, bem como o comunicado conjunto entre os dois países, celebrando uma “amizade sem limites”, foi mais do que um episódio de bromance entre dois líderes autoritários à procura de afirmar o seu poder no teatro global - foi a afirmação de uma aliança de conveniência à beira de um conflito militar que pode ter um impacto mundial.
“Outros estão a observar, outros estão a olhar para todos nós, para ver como respondemos”, avisou Anthony Blinken, o secretário de Estado norte-americano, há pouco mais de uma semana. Com a Europa de Leste no centro das atenções, Blinken estava na Austrália, uma geografia improvável face ao risco de uma invasão militar no continente europeu como não se vê desde a II Guerra Mundial. Mas era ali, no Pacífico, que o chefe da diplomacia norte-americana queria estar, porque uma eventual invasão russa da Ucrânia pode ter aí consequências sérias e duradouras. Blinken tinha acabado de se reunir com os chefes da diplomacia da Austrália, do Japão e da Índia, e não precisou de dizer quem eram os “outros” a que se referia. Todos perceberam que era a China.
Em Washington, ganha força a perceção de que o que acontecer na Ucrânia poderá ter consequências do outro lado do planeta. Segundo uma notícia publicada na semana passada pela Bloomberg, citando três altos responsáveis da diplomacia americana, a administração Biden acredita que a China está a encarar a resposta dos EUA e da NATO à crise ucraniana como um ensaio do que poderá acontecer se Pequim tomar ações agressivas em relação a Taiwan. O racional é simples de entender: se o “Ocidente” se mobilizar, de forma coesa, contra a invasão da Ucrânia, retaliando de forma enérgica e eficaz contra Moscovo, o sinal será um; se os norte-americanos e os seus aliados forem incapazes de se alinhar e tomar medidas robustas, o sinal será outro. Na segunda hipótese, Pequim poderá interpretar a falta de músculo do Ocidente como uma via verde para passar das palavras aos atos e invadir Taiwan ou, pelo menos, por o pé em algumas ilhas.
“De certeza Xi vai tomar Taiwan”
Foi esse o aviso que Blinken quis deixar na Austrália, mesmo sem nomear a China e Xi Jinping. O receio de Blinken é partilhado pela oposição republicana nos EUA - aliás, a China é, por estes dias, um dos poucos assuntos sobre os quais democratas e republicanos são capazes de se por de acordo. O congressista Michael McCaul, o principal representante republicano na Comissão de Assuntos Estrangeiros, avisou recentemente que “Xi [Jinping] está a ver o que se passa, e os nossos adversários estão a observar. Se Putin puder entrar na Ucrânia sem resistência, de certeza que Xi vai tomar Taiwan. Ele sempre quis isso, assim como o Mar do Sul da China.”
Ao contrário de Moscovo, que desde o início negou intenções belicistas que os seus atos tornavam evidentes, Pequim nunca escondeu a sua motivação em relação a Taiwan, a ilha de 23 milhões de habitantes que a China reclama como território chinês, mas que desde 1949 é uma democracia com governo próprio, contando com uma ligação intensa - militar, diplomática e económica - aos Estados Unidos e dos seus aliados na região.
Em dezembro, o antigo primeiro-ministro do Japão, Shinzo Abe, que é ainda uma figura central na política japonesa, fez um aviso precoce sobre o que poderia vir aí. Por essa altura, a concentração de tropas russas nas fronteiras com a Ucrânia ainda não fazia manchetes, mas a leitura política de Abe foi imediata: poderia estar ali um “guia” para as aspirações da China em relação a Taiwan. “Se a comunidade internacional não for capaz de impedir uma invasão russa, imagine-se o que a China irá pensar”, alertou Abe.
“Não terão um bom fim”, avisa Xi
Na quarta-feira passada, o general Kenneth Wilsbach, comandante da Força Aérea dos EUA no Pacífico, admitiu numa conferência de imprensa que está preocupado com a hipótese de a China tentar "aproveitar" as tensões em relação à Ucrânia. “Não me surpreenderia se eles tentassem algo que talvez seja provocativo, para verem como a comunidade internacional reage”, disse Wilsbach.
Há mais de setenta anos que Taiwan é uma espinha cravada na garganta da China, que por duas vezes, no tempo de Mao Tse-Tung, tentou invasões militares, travadas graças ao envolvimento dos EUA. Após mais de sete décadas a desafiar o poder político da China continental, Taiwan tem visto o cerco do continente apertar-se. Xi tem dado sinais claros de que não enjeitaria a oportunidade de colocar o seu nome na história ao retomar o controlo de Taiwan, fazendo aquilo que nem Mao, o “pai da pátria”, conseguiu fazer.
Em outubro, Xi reafirmou o desejo de reunificar o país por meios pacíficos, embora tenha alertado que quem “esquece sua herança, trai a sua pátria e procura dividir o país não terá um bom fim".
A ameaça coincide com um período em que a China intensificou a intimidação militar sobre Taiwan. No ano passado, aviões de guerra chineses fizeram cerca de 960 incursões na zona de identificação de defesa aérea de Taiwan, uma cifra que compara com 380 incursões no ano anterior, de acordo com cálculos da Bloomberg, baseados em dados do Ministério da Defesa Nacional em Taipei. E tudo indica que a pressão será ainda maior em 2022: apenas em janeiro, a China fez mais de 140 voos no espaço aéreo controlado por Taiwan. Num único dia de janeiro foram registadas 39 incursões da força aérea chinesa. E tudo isto quando o mundo focava a atenção no Leste da Europa.
A atitude beligerante da China expressa-se também - e cada vez mais - por mar. A presença da marinha de guerra chinesa no Estreito de Taiwan é mais ostensiva do que alguma vez no passado. As patrulhas navais chinesas, algumas envolvendo uma dúzia de navios de guerra e mais de 50 aeronaves de combate, navegam no Estreito de Taiwan quase diariamente e simulam ataques a alvos taiwaneses e norte-americanos.
Se há potência que pode fazer esta exibição de força é a China: pela primeira vez, a sua marinha de guerra ultrapassou em dimensão a dos Estados Unidos. Segundo o Pentágono, em 2020 a China já tinha “a maior Marinha do mundo, com uma força de batalha global de cerca de 350 navios e submarinos, incluindo mais de 130 grandes navios combatentes de superfície”.
PC chinês pressiona reunificação
Segundo este texto da revista Foreign Affairs, da edição de março/abril, “autoridades chinesas disseram a analistas ocidentais que os pedidos de invasão de Taiwan estão a crescer dentro do Partido Comunista Chinês”. Fontes do Pentágono, ouvidas pela mesma publicação, dizem temer que tal ataque possa estar iminente.
Nem tanto assim, respondem as autoridades de Taiwan. A preocupação tem crescido nos últimos anos, em particular desde o início da pandemia, período em que Pequim deu mais mostras de força, seja perante países vizinhos com interesses conflituantes no Mar do Sul da China, seja na repressão sobre os muçulmanos uigur de Xinjiang, seja no território de Hong Kong, onde o governo central suprimiu toda a oposição, acabando com qualquer resquício de democracia. Mas o governo de Taipé acredita que uma ação militar contra a ilha não estará para breve.
Segundo uma notícia desta semana do Japan Times, neste momento o governo de Taiwan avalia como sendo baixo o risco de um ataque chinês, mesmo que os EUA estejam focados no palco europeu. Fontes governamentais que pediram para não ser identificadas pelo diário nipónico deram duas razões principais para esta conclusão: por um lado, Xi Jinping está a preparar o congresso do Partido Comunista Chinês (PCC), no segundo semestre deste ano, no qual espera receber luz verde para um inédito terceiro mandato à frente do partido. Por outro lado, as autoridades de Taipei acreditam que o Exército de Libertação Popular ainda não tem asseguradas as capacidades necessárias para garantir o sucesso de um ataque à ilha. Mesmo que haja uma fraca resposta ocidental a uma invasão da Ucrânia, o risco de uma ação imediata será demasiado para a China, acreditam os responsáveis de defesa de Taiwan citados pelo JT.
Taiwan “em alerta máximo”
Xi Jinping já garantiu para si, dentro do PCC, um estatuto equiparado com o de Mao Tse-Tung e Deng Xiaoping, os dois “líderes supremos” da história do partido. O seu pensamento já faz parte do património do PCC, cujo Comité Central abriu caminho, no ano passado, para que Xi se mantenha no poder por tempo indeterminado. A história do próximo congresso parece já estar escrita, mas os dirigentes comunistas têm dado prioridade à estabilidade interna antes de um conclave que ocorre apenas duas vezes por década. A aposta de Taipei é que Xi não correrá riscos que possam comprometer o momento da sua prevista consagração.
Por outro lado, outros observadores consideram que a proximidade do congresso do PCC poderia ser a motivação que falta para Xi Jinping forçar a reanexação de Taiwan, apresentando-se no conclave do partido como o líder incontestado que concretizou na prática a máxima de “uma China”.
Neste clima de incerteza, a presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen, nomeou uma task force para acompanhar a situação da Ucrânia e avaliar seu potencial impacto na segurança da ilha. "Estaremos em alerta máximo e atentos a quem queira usar esta oportunidade para criar problemas", disse o porta-voz do Governo. "Taiwan sempre esteve em alerta elevado, mas será especialmente assim quando a situação em outras nações for grave.”
A república que era soviética e a ilha que era China
Quão semelhantes são as situações de Taiwan e da Ucrânia? Ambos são territórios relativamente pequenos e frágeis, em comparação com dois vizinhos gigantescos, com enorme poderio militar e acesso a armas nucleares. Mais: esses vizinhos - a Rússia e a China - têm ambições em relação às suas zonas de influência e querem travar o ascendente dos Estados Unidos em territórios que já controlaram. A Ucrânia fez parte da União Soviética, e mesmo depois da fragmentação desse país, a disputa de alguns territórios persistiu até ao presente, e foi a justificação para a invasão da Crimeia em 2014. Taiwan foi território chinês até 1949, quando a parte derrotada na guerra civil chinesa se refugiou neste arquipélago, separando-o da China continental comunista, dirigida por Mao. O seu estatuto é problemático, mas a ilha continua a ser considerada por Pequim como território chinês, sob a máxima da “China una”.
Tanto a Ucrânia como Taiwan são democracias liberais, e têm procurado junto de outras democracias de modelo ocidental a proteção em relação à ameaça dos regimes autocratas de Moscovo e Pequim. A Ucrânia, junto da União Europeia e da NATO; Taiwan, junto dos EUA e dos seus vários aliados no Pacífico, como Japão, Coreia do Sul ou Austrália. Mas, enquanto todos aceitam que a Ucrânia é um país independente, nem os Estados Unidos, o principal aliado taiwanês, contrariam o princípio de “uma China”.
Porém, da parte dos EUA, há uma enorme diferença de atitude em relação aos dois casos: Joe Biden tentou dissuadir Putin e fazer frente a uma eventual invasão da Ucrânia com sanções económicas, e não colocou sobre a mesa uma resposta militar em larga escala. Apesar de querer integrar a NATO, a Ucrânia ainda não é membro da organização, e os EUA não se mostram dispostos a envolver-se numa guerra plena para defender um país que não está protegido pelo artigo 5º da Aliança Atlântica.
Já sobre Taiwan, a conversa é outra: apesar de não haver qualquer compromisso assumido de envolvimento militar no terreno caso haja um ataque chinês, Biden tem garantido que a ilha poderá contar com a ajuda dos EUA nessa circunstância. O território de Taiwan está fortemente armado, graças ao material de guerra norte-americano, e as forças navais norte-americanas estacionadas no Pacífico têm uma presença bem visível, tanto em exercícios militares como nas patrulhas de rotina.
Os governantes de Taipé confiam que a importância estratégica de Taiwan para os EUA é incomparavelmente superior à da Ucrânia - e assim é, tendo em conta a localização estratégica da ilha, a relevância da indústria de chips (Taiwan é o principal produtor mundial), e a centralidade da China enquanto principal ameaça para os EUA sob todos os pontos de vista: é uma ameaça de segurança e defesa, representa o maior desafio diplomático aos Estados Unidos, vai ultrapassar os norte-americanos no plano económico e está bem posicionado para o fazer na frente tecnológica, e é um dos faróis globais da nova tendência autoritária, em contraponto às democracias liberais.
China & Rússia, um casamento de conveniência
Sendo os EUA o adversário comum da Rússia e da China, não surpreende o casamento de conveniência forjado entre Vladimir Putin e Xi Jinping. O momento recente de maior visibilidade desta aproximação foi no início do mês, quando os dois líderes posaram lado a lado, em Pequim, reafirmando uma amizade e aliança que historicamente teve mais baixos do que altos. Que o tenham feito ao mesmo tempo que os militares russos se concentravam na fronteira da Ucrânia não foi acaso. Que a declaração conjunta desse encontro parecesse um libelo contra a supremacia dos EUA na geopolítica global, também não.
O comunicado conjunto de Pequim anunciava uma “nova era” em lugar da ordem mundial liderada pelos EUA – uma era na qual a cooperação entre a China e a Rússia “não teria limites”. “A humanidade está a entrar numa nova era” de “multipolaridade” , em alternativa a “alguns atores” que “defendem abordagens unilaterais” e “interferem nos assuntos internos de outros estados” - a referência aos EUA, sem os mencionar, era clara.
A cereja no topo do bolo foram as declarações cruzadas visando a situação de Taiwan e da Ucrânia. Putin declarou-se contra “qualquer forma de independência de Taiwan”; Xi, declarou-se contra o alargamento da NATO para o Leste, englobando as democracias pró-ocidentais que faziam parte da antiga União Soviética. Mas Pequim não foi ao ponto de dar luz verde às pretensões territoriais de Moscovo sobre o país vizinho. Aliás, a China tem-se mantido fiel ao princípio de intangibilidade das fronteiras - já havia sido assim em 2008, quando a Rússia atacou a Geórgia, e voltou a ser em 2014, na Crimeia. Mas o momento é de vincar alinhamentos entre os dois países, e de diminuir desconfianças ou interesses conflituantes no futuro.
Da mesma forma que, nos EUA, democratas e republicanos superam as suas divergências quando toca a fazer frente à China, o “rival sistémico”, Putin e Xi também limam as arestas dos interesses dos dois países para fazer frente aos EUA. Segundo a ministra britânica dos Negócios Estrangeiros, Liz Truss, China e Rússia estão alinhados e “ousados de uma forma que não víamos desde a guerra fria”.
Para além do apoio diplomático, a China oferece à Rússia suporte financeiro que poderá ser precioso em caso de sanções económicas ocidentais em grande escala. O New York Times descrevia há poucos dias como Putin se está a preparar, desde a anexação da Crimeia, em 2014, para o embate de novas sanções económicas do Ocidente. Tem engordado as reservas de divisas estrangeiras (será a quarta maior do mundo), tem aplicado um ambicioso plano de substituição de importações por produção russa, e tem diversificado as parcerias económicas, nomeadamente a oriente. A China é uma peça essencial nesse plano. Uma parte das reservas de dólares foi substituída pelos renminbi chineses - e pode ser Pequim o grande financiador de uma Rússia sob stress financeiro. A China está a receber uma parte significativa das exportações de gás e petróleo russo (embora esteja longe de ser um cliente tão importante como a Europa). A parceria comercial e a cooperação económica entre os dois países vai seguramente intensificar-se. E, na frente militar, a atual lua de mel entre os dois países permite a Putin desguarnecer a segurança na fronteira comum, concentrado as forças militares russas na frente ucraniana.
Há 50 anos, era Nixon quem aterrava na China
Nem sempre foi assim. Durante a guerra fria, as duas maiores potências comunistas tinham uma relação tensa, com escaramuças várias na fronteira comum. Mao considerava insuportável a atitude de superioridade e arrogância com que era tratado por Estaline (Moscovo havia apoiado outra fação comunista durante a revolução chinesa). A rutura entre os dois países acabou por se consumar no tempo de Khrushchev, que se demarcou de Mao após a segunda tentativa de invasão de Taiwan.
Nos anos 70, Henry Kissinger e Richard Nixon viram a oportunidade e concretizaram a máxima de que o inimigo do meu inimigo meu amigo é: Nixon reescreveu a História no dia em que aterrou em Pequim e apertou a mão a Mao. Até se escreveu uma ópera sobre isso. Por esses dias, o inimigo comum estava em Moscovo. Passaram 50 anos nesta segunda-feira, precisamente o dia em que Putin deu o passo de enviar tropas para território da Ucrânia. Neste meio século, o mundo mudou. As relações no triângulo Washington-Moscovo-Pequim também.