Há um precedente perigoso na Ucrânia

Lumena Raposo
24 fev 2022, 07:00
Vladimir Putin (Alexei Nikolsky, AP)

Os separatismos não existem apenas na antiga União Soviética, existem no Oriente, e existem na Europa

A decisão do Presidente russo de reconhecer a independência das repúblicas separatistas da Ucrânia – República Popular de Donestk (RPD) e a República Popular de Lugansk (RPL) – na região do Donbass não constituiu propriamente uma surpresa mas fez soar campainhas um pouco por todo o mundo. E não só, ou nem tanto, pela Ucrânia ou pelas repúblicas em causa mas porque a decisão de Vladimir Putin abre um precedente perigoso que não pode ser deixado sem resposta.

As regiões de Donetsk e Lugansk, no sul e sudeste da Ucrânia, eram independentes “de facto” desde 2014, com uma constituição do tempo de Estaline, que prevê a pena de morte para uma série de crimes, onde era exigido aos seus habitantes um certificado de residência do tempo soviético. De acordo com vários analistas, está-se perante um regime tipo Coreia do Norte, com todo o cortejo de violação dos direitos humanos, de violência sobre todos aqueles que não se identificavam com os líderes pró-russos nem com as suas formas de gerir a região que, com o apoio de Moscovo, ocuparam à Ucrânia.

A degradação económica de uma das zonas mais ricas da Ucrânia, com as suas minas de carvão e minério de ferro, começou a fazer-se sentir, apesar dos negócios que ainda faziam com Kiev – em 2014/15 foram as repúblicas que venderam carvão à Ucrânia ou “metade dela gelaria” – e do apoio económico de Moscovo.

Independentes “de facto”, faltava-lhes serem-no “de jure”, ou seja, o reconhecimento de uma potência que oficializasse as suas independências face a Kiev. E a Rússia não hesitou em fazê-lo.

Putin não é um neófito nestas decisões. Em agosto de 2008, quando começavam os Jogos Olímpicos de Pequim, já fez o mesmo com a Ossétia do Sul e a Abcásia, as duas repúblicas separatistas pró-russas que ajudou a subtrair à Geórgia. Agora, talvez para não desagradar à China, esperou pelo fim dos Jogos Olímpicos de Inverno em Pequim, para reconhecer a independência das duas repúblicas do sul e sudeste da Ucrânia.

Poderia pensar-se que a próxima na lista do senhor do Kremlin seria a Transnistria, mas Putin, enquanto os seus interesses assim o ditarem, prefere alimentar o conflito desta república rebelde da Moldova a dar-lhe luz verde para a independência.

O Ocidente reagiu - e a União Europeia numa unanimidade surpreendente - contra a atitude da Rússia. A “integralidade” do território da Ucrânia esteve na boca de todos, assim como a necessidade de defender a sua inviolabilidade. Quase se ouvia a frase “Somos todos ucranianos”. E as sanções contra Moscovo aí estão…

Mimetismo

Mesmo que não o verbalizem, os responsáveis ocidentais – e não só -, ao reagir à decisão de Vladimir Putin devem ter tido em mente o perigo do mimetismo ao precedente criado pelo ex-agente do KGB ao reconhecer a independência das repúblicas rebeldes; um precedente que não pode ficar sem uma resposta musculada (não armada, entenda-se) que sirva de dissuasor para outras potências ou Estados. É que os separatismos não existem apenas na antiga União Soviética, existem no Oriente, e existem no Velho Continente.

Questões étnicas, políticas, religiosas, culturais e até económicas estão, ou podem estar, na base dos separatismos que, a prazo, acabam por levar a autonomias ou a independências. E poucos são os países que se podem gabar de não ter qualquer sinal de separatismo.

A China, por exemplo, é confrontada com vários movimentos separatistas. É o caso do Nepal, Mongólia interior, Tibete. Para referir apenas alguns. Há ainda o mediático caso de Taiwan, cujo território Pequim continua a afirmar como seu. E Hong Kong, que depois de ter vivido em democracia e liberdade se vê sufocado pelo regime de Pequim?

Não surpreende, portanto, que o Executivo chinês tenha feito parte dos governos que condenaram a decisão russa, apesar das estreitas relações entre Pequim e Moscovo. Wang Yi, diplomata chinês presente na Conferência de Munique sobre a Segurança, foi o porta-voz da posição de Pequim: “A soberania, independência e integridade territorial de qualquer país devem ser respeitadas e salvaguardas. A Ucrânia não é exceção”.

Deixe-se a Ásia, onde existem muitos outros movimentos separatistas e passemos para o Médio Oriente.

Criados a partir de uma divisão feita a régua e esquadro pelas potências europeias, vencedoras dos conflitos mundiais, a região do Médio Oriente não só não está imune ao separatismo como contém em si um exemplo único: o Curdistão. Comum ao Iraque, Síria, Turquia e Irão, o Curdistão é considerado por muitos analistas como “um grande país” enquanto região unificada, no entanto, nenhum dos países quer abdicar do “seu” Curdistão, cujo movimento separatista é duramente reprimido em resposta à sua capacidade reivindicativa. Por exemplo, Ancara mantém preso, há mais de 20 anos, Abdullah Ocalan, um dos líderes do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK).

E o Velho Continente? Também a Europa vive preocupada com separatismos, até porque são poucos os países que se podem gabar de viverem uma unidade a toda a prova.

O Reino Unido foi um dos países, a par dos Estados Unidos, que se mostrou mais determinado na crítica a Moscovo e na opção por sanções passíveis de penalizar Putin e os seus aliados na Rússia e nas repúblicas independentistas.  Para o Executivo de Londres nem se coloca a hipótese de não ser assim. Opinião contrária pode ter, por exemplo, a Escócia, o País de Gales e a Irlanda do Norte, para referir algumas das regiões do Reino Unido que têm movimentos independentistas.

Londres não se tem poupado a esforços para evitar a vitória dos seus movimentos separatistas. O Exército Republicano Irlandês (IRA), que luta pela independência da Irlanda do Norte, é o movimento mais mediático do separatismo irlandês e o que mais dores de cabeça provocou a Londres. Na sua luta pela independência, os católicos irlandeses conseguiram apoios em muitos países, em especial nos Estados Unidos. Isso não impediu Londres de ser particularmente duro com os militantes do IRA:  em 1981, Bobby Sands, líder do IRA, morreu aos 27 anos na prisão de Maze após 66 dias de greve de fome, nove outros detidos perderiam a vida da mesma forma. Exigiam ser considerados presos políticos mas o governo de Margaret Thatcher não cedeu, o que lhe valeu duras críticas a nível internacional. Nada que preocupasse a Dama de Ferro.

Os Acordos de Sexta-Feira Santa, assinados em 1998 entre Londres e Belfast puseram fim à violência entre católicos e protestantes na Irlanda do Norte e garantiam uma série de direitos e deveres entre as duas irlandas, membros de uma unidade mais ampla denominada União Europeia (UE). A decisão de Londres de abandonar a UE (Brexit) fragilizou os Acordos de Sexta-feira Santa e, de alguma forma, pode pôr em causa a estabilidade e a paz entre Londres e Dublin.

A Itália tem também no seu ativo uma série de movimentos separatistas - serão mais de duas dezenas em 12 regiões – que pretendem separar-se de Roma porque ela não tem coragem de “pôr ordem no Sul”, que “não trabalha, não paga impostos, vive à conta do Norte”. A Liga Norte, por exemplo, foi criada precisamente com a ideia de levar à independência da Padânia.

A Córsega, conquistada pela França no século XVIII (1768), tem sido, de forma intermitente, uma dor de cabeça para Paris. No fim da II Guerra Mundial, a França lançou um movimento de propaganda anti-italiano para evitar que a ilha mediterrânica se unisse a Itália. Tal não aconteceu, mas também não houve uma aproximação da Córsega a Paris, pelo contrário, o que surgiu e se mantém é uma vontade de conseguir a independência.

E que dizer da vizinha Espanha, a braços com os movimentos independentistas na Catalunha e no País Basco que já provocaram tanto derramamento de sangue? E Portugal? O mais velhinho país da Europa não escapa. A prová-lo, o movimento separatista dos Açores.

A vitória de um só movimento separatista, principalmente na Velha Europa, provocaria um efeito de dominó nas fronteiras com consequências difíceis de prever

Há uns anos, o ex-vice-chanceler alemão Joschka Fischer, escreveu que “seria absurdo, do ponto de vista histórico, entrar numa fase de secessão e desintegração no século XX”. Mas o absurdo pode acontecer.

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