Desde o início da invasão russa da Ucrânia que vários protagonistas do Kremlin têm deixado avisos públicos ao Governo português. O último fala em "medidas de retaliação", mas ao longo destes dois anos a porta-voz da diplomacia russa tem sublinhado que as relações entre Portugal e a Rússia enfrentam uma "crise profundíssima"
Promessas de retaliação, hostilidade e até um plano para unir Lisboa a Vladivostok. A ameaça feita esta sexta-feira pelo Kremlin contra Portugal devido ao envio de material militar para Kiev está longe de ser a única que o governo de Putin lançou contra o Governo português desde o início da invasão da Ucrânia.
O primeiro incidente ocorreu em abril de 2022, meros dois meses depois do início da guerra em larga escala. Nessa data, o ex-presidente da Rússia Dmitry Medvedev, agora vice-presidente do Conselho de Segurança de Putin, utilizou o Telegram para lançar uma ameaça velada a Portugal: o objetivo final da invasão russa, escreveu, seria “Uma Eurásia unida, de Lisboa a Vladivostok”.
A ideia de uma grande Eurásia, como apontou na altura a investigadora Maria Raquel Freire, especialista em assuntos relacionados com o espaço pós-Soviético e Rússia, não é nova: “Vem de trás, quando [Sergey] Karaganov [antigo conselheiro do Kremlin] anunciou em 2015, no painel de especialistas da OSCE [Organização para a Segurança e Cooperação na Europa], a criação da Grande Comunidade Euroasiática. É, no fundo, uma reinvenção da OSCE, mas na qual a Rússia desempenha um papel mais importante.”
No entanto, foram muitos os especialistas em assuntos internacionais que entenderam as palavras de Medvedev como um aviso. “Estamos perante uma retórica aguerrida. Estão a jogar com as perceções e com o medo da população do reerguer de uma ‘Grande Rússia”, afirmou Helena Ferro Gouveia.
Depois dessa advertência latente de Medvedev, foi a vez da porta-voz da diplomacia russa, Maria Zakharova, dizer com todas as letras que as relações entre Lisboa e Moscovo estão a viver “a crise mais profunda de toda a sua história". Nesse discurso, que aconteceu em maio deste ano, acrescentou que o Executivo de Montenegro tem uma “posição hostil” para com a Rússia.
"A guerra híbrida desencadeada pelo Ocidente global contra a Rússia influenciou destrutivamente todo o complexo de relações da Rússia com Portugal. E porquê? Pela posição hostil assumida por Portugal desde o início da operação especial militar. Lisboa enquadrou-se desde logo na política e retórica antirrussa", disse a representante do Ministério dos Negócios Estrangeiros russo.
Zakharova comentava a posição hostil de Portugal, numa altura em que a Rússia estava a firmar acordos de cooperação militar com as ex-colónias portuguesas. Primeiro com São Tomé e Príncipe e depois com a Guiné-Bissau. Essas parcerias fizeram tremer ainda mais as relações com Moscovo, levando mesmo ministro dos Negócios Estrangeiros Paulo Rangel a manifestar “estranheza, apreensão e perplexidade perante este acordo".
Seria Zakharova novamente a protagonista de outros dois avisos sobre as relações entre Portugal e a Rússia. O primeiro deles surgiu na ressaca da eleição para o Parlamento Europeu, tendo a porta-voz da diplomacia russa voltado a sublinhar a "crise profundíssima" que se vive entre Lisboa e Moscovo, pedindo mesmo ao Governo português que faça "uma avaliação real dos acontecimentos".
"As relações luso-russas estão numa crise profundíssima em virtude da posição tomada pelas autoridades portuguesas. Desde há anos que não estavam tão deterioradas como desde o início da operação militar especial [a expressão que as autoridades russas usam para se referir à guerra]”, lamentou Maria Zakharova por vídeoconferência em resposta a uma pergunta da agência Lusa.
O segundo alerta surgiu esta sexta-feira na sequência do envio para a Ucrânia de seis helicópteros médios Kamov Ka-32A11B portugueses para apoiar Kiev na luta contra a invasão russa, iniciada em fevereiro de 2022. Sobre isto, a diplomata russa fez uma ameaça concreta: haverá "medidas de retaliação". “Já anunciámos que encaramos a entrega de [helicópteros] Kamov à Ucrânia como uma medida hostil em relação ao nosso país, medida que faz parte da caminhada dócil e inconsciente de Portugal e de outros países da União Europeia pela trajetória desenhada por Washington", ameaçou a porta-voz russa.
Anteriormente, no seu discurso no IV Fórum Eurosiático de Mulheres, Zakharova já tinha assumido que essas “medidas de retaliação serão estudadas em sigilo" e que "toda a gente" ficará a saber quando a Rússia começar a aplicá-las. Mais tarde, tentou desinsuflar o teor das ameaças, referindo que o Kremlin “não é vingativo”, apenas “tem boa memória”.