Já é mais do que a guerra na Ucrânia

8 mar 2022, 20:19

A novidade do dia chama-se petróleo e gás. Os Estados Unidos anunciaram que deixam de comprar petróleo à Rússia (que representa, atualmente, em torno de 8% das importações americanas), tendo a indústria petrolífera do país anunciado que aguenta o impacto.

A União Europeia, por seu turno, declarou que os países que a integram vão reduzir em 2/3 as importações de gás – da Rússia, evidentemente. Se a dependência anda à volta de 40%, em contas simples, vai baixar para 13 e pico por cento. Estas decisões são capitais se a intenção for a de atingir a Rússia na jugular, considerando que, por exemplo, esta é ainda o terceiro produtor mundial de petróleo, só atrás de Arábia Saudita e Estados Unidos. E depende ela própria, brutalmente, das exportações que faça para o continente europeu.

É natural que estas contramedidas, como aliás tem sido declarado ao longo do dia, constituam uma resposta à invasão da Ucrânia, ao facto simples de uma violação grosseira e sistemática do direito internacional e de uma das suas normas mais fundamentais, se não a mais fundamental – que protege a integridade territorial e a independência política de qualquer Estado, seja ele grande, médio, pequeno ou muito pequeno. É, no entanto, já muito mais do que uma resposta à agressão russa: é um golpe terrível, que parece ter em vista dois objetivos suplementares. O primeiro, é o de enfraquecer de vez, ou pelo menos de forma perene, a ameaça russa, qualquer que seja o regime que nela se instale (Putin, diria, é já de alguma forma um presente-passado). O segundo, consequência parcial do primeiro, mas com autonomia em relação àquele, é o de limitar a zero ou próximo do zero a dependência energética relativamente à Rússia.

Para isso, a União Europeia, principalmente esta, vai ter que aguentar repercussões que é ainda, suponho difícil de antecipar na cascata agora desencadeada. Por exemplo, na União o precisar da Rússia varia na proporção inversa à da proximidade geográfica. As importações europeias de petróleo e produtos petrolíferos da Rússia podem, por isso, variar (consoante o País) de perto de 80% do total para menos de 5%.

A Rússia, quase que literalmente, fecharia portas se, de repente, União Europeia e Reino Unido deixassem de importar-lhe o tal petróleo e os tais produtos petrolíferos. Fecharia as portas, mas alguns dos países europeus mais importantes ficariam mais entalados do que, na lenda, o pobre e heroico do Martim Moniz nas portas de Lisboa que os Mouros tentaram fechar. A Alemanha, por exemplo, foi a primeira a dizer um “alto, vamos lá a ter calma”, invocando interesses essenciais para estabelecer (ainda que por enquanto) este limite. Dos quais o menos importante não será que, sangrando a Rússia, sem as devidas precauções podemos nós ficar também com mazelas difíceis de tratar.

É, saímos ou estamos ainda a sair de uma pandemia. Ora, as decisões de romper com dependências, de acabar com aquilo que ainda alimenta a máquina do agressor, têm uma “medida de coragem”: são tanto mais corajosas quanto maior for o impacto, direto ou indireto, na economia de cada um. Por isso, se eu tiver 1000 e prescindir de 50, não sou herói coisa nenhuma. Sou é corajoso se, tendo 100, prescindir também de 50. É uma imagem fracota, mas suponho que todos concordarão que, nestas decisões assentes em valores e na defesa do Direito, vai haver os que sofrem muito mais do que outros; vai haver os que vão continuar a não depender; e aqueles que vão, tão-só, com mais ou menos sacrifícios, reconstituir de forma laboriosa novas dependências. É a vida, ninguém disse que as relações internacionais se desenvolviam no Céu.

A Rússia, por seu turno, enfrenta um destino sombrio, que, repito, a vai perseguir muito depois de Vladimir Putin ter deixado o poder, quando e como isso acontecer.

Estas decisões que estamos a tomar, mostra-o uma série de precedentes, não são fáceis de travar ou reverter uma vez postas em marcha. E os seus efeitos projetam-se, aliás, para muito depois de terem sido interrompidas.

São, nesse sentido, um rolo compressor, tanto mais esmagador quanto, comparando com as contramedidas que, por exemplo, foram tomadas contra o Iraque e fizeram este País recuar décadas, são muito mais intensas e corrosivas (sem comparação possível) e aplicam-se num mundo em que tudo é instantâneo e não conhece fronteiras (para esse efeito). Logo, sem defesa possível no curto prazo.

Em fase de coisas antigas, lembrei-me hoje, a propósito da Rússia, de uma das canções cantadas por Edith Piaf, neste caso com os “Compagnons de la chanson”. A canção tem por nome “Os três sinos” (“Les trois cloches”, e conta a história simples de Jean François Nicot).

Os sinos tocaram na pequena aldeia, quando nasceu. Tocaram, uma segunda vez, quando casou com a doce Élise. E (já adivinharam) uma terceira vez quando morreu. Na tal pequena aldeia.

É mais ou menos evidente que vai acontecer uma recomposição de poder dramática no leste europeu e não só, com ganhos muito importantes, pelo menos, de Alemanha, Polónia e Ucrânia (sim, Ucrânia). Oxalá a Rússia nunca venha a ter, do ponto de vista da sua relevância internacional (e simbolicamente, como é óbvio) o destino de Jean François Nicot quando os sinos da aldeia tocaram pela terceira vez.

Para ouvir “Les Trois cloches”, com Edith Piaf e os “Compagnons de la Chanson”:

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