Porque Gorbatchov é lembrado como um gigante no Ocidente e um pária em casa (análise)

CNN , Análise de Stephen Collinson
31 ago 2022, 13:00

A tragédia de Mikhail Gorbatchov é ter vivido mais tempo do que a aproximação amigável entre Moscovo e os EUA, depois da Guerra Fria, sendo aquele que fez mais do que qualquer um para consegui-la. 

O último líder da União Soviética morreu esta terça-feira aos 91 anos, com Washington e o Kremlin em lados opostos da guerra lançada pelo presidente Vladimir Putin na Ucrânia, em parte para vingar o colapso soviético precipitado pelo governo de Gorbatchov. 

É difícil resumir o que Gorbatchov significou para o público ocidental na década de 1980, após um dos períodos mais perigosos do impasse entre o Leste e o Ocidente. Após gerações de líderes severos, hostis, radicais e idosos no Kremlin, ele era um político jovem, moderno e revigorante - um visionário e um reformador. 

Gorbatchov gerou a repentina esperança de que o confronto nuclear que assombrou o mundo na segunda metade do Séc. XX não viria a destruir a civilização. O presidente dos EUA, Ronald Reagan, e a sua alma gémea britânica, Margaret Thatcher, foram os mais agressivos combatentes da Guerra Fria. Mas, com todo o mérito, realizaram um momento de promessa - como a primeira-ministra britânica disse sobre o líder soviético: “Podemos trabalhar juntos.” 

O antigo presidente Ronald Reagan, à esquerda, e o antigo presidente soviético Mikhail Gorbatchov ostentam chapéus de cowboy no Rancho del Cielo de Reagan, na Califórnia (AP Photo/Bob Galbraith, File)

Todos nos lembramos do dia em que Reagan foi a Berlim e, tendo como pano de fundo as Portas de Brandemburgo - desfiguradas pelo feio e desumano muro de cimento entre o Leste e o Ocidente - disse: “Senhor Gorbatchov, derrube este muro.” Foi um dos momentos mais emblemáticos da história moderna. Na altura, poucas pessoas achavam que seria possível. Na verdade, alguns assessores da Casa Branca consideraram os comentários excessivamente provocantes e tentaram convencer Reagan a não os fazer. Mas, no final de contas, num ato de grande humanidade, Gorbatchov derrubou efetivamente aquele muro. 

Após várias rondas inebriantes de conversações sobre o controlo do armamento nuclear e reuniões com líderes ocidentais, Gorbatchov tornou-se um herói no Ocidente. Mas foi a decisão que tomou de não intervir militarmente quando eclodiram as revoltas populares contra os regimes comunistas nas nações do Pacto de Varsóvia, em 1989, que levou à libertação da Europa de Leste, à queda da Cortina de Ferro, ao fim da Guerra Fria e à reunificação da Alemanha. 

Essa explosão de liberdade deixou como herança 30 anos de paz relativa na Europa. 

Celebrado no Ocidente, um pária em casa 

Embora fosse celebrado no Ocidente, Gorbatchov passou a ser visto como um pária no seu país. Agora, é muitas vezes esquecido que o objetivo dele não era necessariamente desmantelar a União Soviética comunista. De muitas formas, foi forçado a fazê-lo por décadas de ruína económica no sistema comunista e pelo impacto desgastante de uma corrida às armas nucleares com o Ocidente. 

Mas, ao tentar salvar o sistema, desencadeou as forças que o destruíram. Longe de anunciar o “fim da história” como era muitas vezes dito, na época, a influência dele gerou consequências que ainda podem ser sentidas no dia da sua morte, com Moscovo e o Ocidente novamente em desacordo, ao estilo da Guerra Fria. 

No seu país, Gorbatchov tinha duas ideias abrangentes, glasnost (abertura) e perestroika (reestruturação). O rápido colapso da União Soviética, que a perestroika fez desagregar, trouxe condições económicas extremas, distúrbios e um golpe no orgulho nacional. Tudo isso veio a somar-se às circunstâncias que, eventualmente, tornaram um homem forte como Putin atraente para muitos russos. 

Quando Gorbatchov se recusou a enviar o Exército Vermelho para a Europa de Leste para salvar o bloco comunista, Putin estava com o KGB na antiga República Democrática Alemã e sentiu a dor do abandono de Moscovo. Ele passou a ver o fim do Império Soviético como um desastre da história; e quando Putin assumiu o poder, começou a restaurar o ferido prestígio nacional russo. 

 

Putin (à direita) conversa com Gorbatchov (à esquerda) a 21 de dezembro de 2004 (REUTERS)

Agora o mundo enfrenta um líder no Kremlin, que, ao contrário de Gorbatchov, está disposto a refazer o mapa da Europa à força - mesmo que a restauração do Pacto de Varsóvia esteja além do seu alcance, com milhões de pessoas na Europa de Leste a viver no legado de Gorbatchov, em sociedades democráticas e livres. 

O governo de Gorbatchov não foi isento de manchas, de um ponto de vista ocidental. Enviou carros de combate para a Lituânia para esmagar as esperanças de independência nos estados bálticos, em 1991, meses antes de deixar o poder. E foi banido da Ucrânia durante cinco anos, depois de dizer que apoiava a anexação da Crimeia por Putin. 

Mas, até ao fim dos seus dias, Gorbatchov condenou os excessos de Putin e viajou pelo mundo a alertar sobre o perigo da deterioração das relações entre as duas maiores potências nucleares do mundo. O facto de ser lembrado como um gigante no Ocidente e um pária em casa é um testemunho do abismo na compreensão e na experiência que, mais uma vez, envenena as relações entre o Leste e o Ocidente. 

Gorbatchov nunca deixou de chorar a perda da sua amada esposa, Raisa, que morreu de leucemia em 1999. Agora, segue-a e aos seus contemporâneos num momento marcante da história - Reagan, Thatcher, o presidente George H.W. Bush, o chanceler alemão Helmut Kohl e o presidente francês François Mitterrand. 

Em todos os lugares, menos na Rússia, será lembrado como uma daquelas raras figuras da história que, devido ao seu carácter e visão, mudaram realmente o mundo. 

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