O presidente russo, Vladimir Putin, gosta de fazer ‘luta de sabres’ com questões nucleares: na véspera da invasão em larga escala da Ucrânia pela Rússia, em fevereiro de 2022, o líder do Kremlin presidiu o ensaio de um ataque nuclear e as suas não veladas ameaças nucleares têm, desde então, mantido as autoridades norte-americanas sob alerta.
Putin voltou recentemente a agitar o mundo do controlo de armas ao revelar mudanças à doutrina nuclear do seu país. Na reunião da quarta-feira passada do seu Conselho de Segurança, Putin disse que a Rússia iria rever a doutrina para potencialmente diminuir o nível de uso de armas nucleares, acrescentando que Moscovo considera um ataque de um estado não nuclear que envolvesse ou fosse apoiado por um estado nuclear como um "ataque conjunto contra a Federação Russa".
A retaliação nuclear, continuou Putin, poderia ser considerada “assim que recebermos informações confiáveis sobre um lançamento massivo de armas de ataque aéreo e espacial e a sua travessia da fronteira do nosso estado”. E quanto a estas armas, Putin referiu-se a “aeronaves estratégicas e tácticas, mísseis de cruzeiro, UAVs [veículos aéreos não tripulados], aeronaves hipersónicas e outras”.
Putin estava, então, a mandar um aviso a Washington e a outros apoiantes da Ucrânia. A revisão da doutrina vem numa altura em que a Ucrânia (um estado sem armas nucleares, já que desistiu de reivindicar armas nucleares após o colapso da URSS) pressiona os Estados Unidos para ter armas de longo alcance que permitiriam atacar mais profundamente dentro do território russo.
A reformulação doutrinária visa claramente fazer os formuladores de políticas ocidentais pensarem duas vezes, enquanto o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky apresenta o seu “plano de vitória” ao governo Biden. Ao brandir o grande bastão do arsenal nuclear da Rússia, Putin está a sugerir que os custos potenciais de fornecer à Ucrânia tal armamento podem ser demasiado altos para o Ocidente.
Assim sendo, a declaração de Putin move o chamado Doomsday Clock [Relógio do Juízo Final] para mais perto da meia-noite? O anúncio de quarta-feira desencadeou uma discussão robusta online, com especialistas em controlo de armas a tentar analisar a linguagem de Putin sobre os limites para retaliação nuclear.
Pavel Podvig, especialista em forças nucleares russas, escreveu na rede social X (antigo Twitter) que havia “ambiguidade deliberada” no anúncio, particularmente em torno do que a doutrina define como agressão contra a Rússia.
“Na versão atual da doutrina nuclear da Rússia, não há distinção entre uma agressão por um estado com armas nucleares e não nucleares”, lê-se na publicação. “Tudo o que [um país] precisa é de uma agressão que ameace a existência do estado.”
Podvig referiu ainda uma anterior garantia russa de que Moscovo não utilizaria armas nucleares contra estados sem armas nucleares, com uma exceção: quando esse estado agir “em associação ou aliança com um estado com armas nucleares”.
As novas linhas vermelhas da Rússia podem ser difíceis de perceber, mas isso pode não ser o ponto principal. “A linguagem é projetada para a situação muito específica em que estamos atualmente”, escreveu Podvig. “Sabemos o que são esses estados com armas nucleares e sem armas nucleares.”
Mariana Budjeryn, investigadora do Belfer Center da Harvard Kennedy School, sugeriu que as linhas vermelhas podem existir principalmente na mente do próprio Vladimir Putin.
“Há dois pontos de partida notáveis da doutrina militar russa anterior de 2020”, escreveu também na rede social X. “A doutrina de 2020 permitiu o uso de NW [armas nucleares] em resposta à agressão convencional que coloca em risco a própria existência do estado. Isso agora é levado para ameaças extremas à soberania do estado. O que é que isso significa? Quem define o que constitui essas ameaças? Provavelmente, o Sr. Putin. A agressão convencional é ainda mais específica para incluir um ataque massivo ao espaço aéreo. Quem define o que constitui 'massivo' ou massivo o suficiente? Provavelmente, o Sr. Putin”.
O resultado final para mudanças na doutrina militar, acrescentou Budjeryn, “é menor do que aparenta, mas fornece mais espaço interpretativo para a liderança russa definir as circunstâncias do uso nuclear”.
A atitude pública de Putin também mostra a natureza performática da dissuasão nuclear.
“O espetáculo aqui é a chave: o ato de comunicar [que] ‘a nossa doutrina está a mudar’ tem agora a atenção do mundo, com a mensagem implícita: [os países] deveriam estar preocupados”, escreveu na rede social X Kristin Ven Bruusgaard, diretora da Norwegian Intelligence School, cuja pesquisa académica se foca na estratégia nuclear russa. “O conteúdo do discurso de Putin é menos espetacular; uma série de questões recebe agora uma análise mais detalhada do que antes, mas a granularidade dos limites nucleares continua tão obscura quanto antes – como era pretendido”. Também não está claro como seria a doutrina revista, acrescentou Ven Bruusgaard.
“A questão-chave é: o que acontece agora? Veremos um documento e ele irá conter mais do que Putin declarou? Isso é um balão de ensaio ou é só conversa fiada? Se for, é curioso que as mudanças tenham sido tão pequenas se alguém fosse passar pelos movimentos de atualização da doutrina”.
Por fim, importa lembrar também que a Ucrânia já atacou profundamente o território russo, incluindo ataques de drones na capital russa e um ataque recente que atingiu um depósito de munições russas. E os resultados da visita de Zelensky aos EUA podem, em breve, dizer-nos se alguém em Washington está a ouvir a conversa nuclear de Putin.