Valas comuns, jardins, quintais. A Ucrânia em guerra não consegue enterrar os seus mortos nos cemitérios

15 mar 2022, 21:30
Funcionários municipais enterram cadáveres em vala comum em Mariupol, Ucrânia (Foto: AP/Evgeniy Maloletka)

Cidades ucranianas sob fogo cerrado dos russos recorrem a valas comuns para sepultar soldados e civis. Muitos são enrolados em tapetes ou sacos de plástico e não têm sequer identificação. Familiares enterram entes queridos nos jardins de casa

"O meu tio tem 92 anos e até ele comparou isto com a infância dele na guerra". A frase é de Mykhailyna Skoryk-Shkarivska, deputada na cidade de Bucha, às portas de Kiev, referindo-se à vala comum que foi aberta para sepultar as vítimas da invasão russa, entre soldados ucranianos e civis. A cova já conta com mais de 60 corpos, a maioria trazidos por médicos do hospital de Irpin, também nas proximidades da capital da Ucrânia.

Segundo a deputada, uma pequena cerimónia decorreu no hospital antes de os cadáveres serem enterrados. Nem todos estavam identificados e ninguém sabe exatamente onde estão os familiares. "Estamos a discutir com voluntários a criação de um sistema digital para identificar pessoas e localizar familiares desaparecidos", contou à BBC Skoryk-Shkarivska.

No sábado passado, as tropas russas capturaram o hospital de Irpin e mandaram os médicos sair. A cidade de Bucha e cerca de metade de Irpin estão agora sob domínio russo e o número de baixas não para de aumentar, assim como o choque dos ucranianos com o regresso das valas comuns, que trazem as más memórias da Segunda Guerra Mundial. "É importante para nós enterrar os nossos familiares de forma tradicional, de forma cristã, com oração", sublinha Skoryk-Shkarivska. "Até agora, em guerra, as pessoas pedem aos padres para o fazerem", contou a deputada à BBC. 

Mas é em Mariupol que os bombardeamentos mais intensos têm obrigado a enterrar dezenas de vítimas da guerra em valas comuns. A cidade portuária tem sido alvo constante dos russos e o número de baixas fez com que se abrissem várias covas improvisadas. Segundo o vice-presidente da câmara de Mariupol, Serhiy Orlov, que falou à BBC por telefone, já morreram nas últimas duas semanas - e até ao passado domingo - mais de 2.100 civis, com os ataques russos a impedirem a retirada dos locais através de corredores seguros.

Vítimas sem identificação

 "Não podemos fazer funerais em campas privadas porque ficam fora da cidade e o perímetro é controlado pelos russos", lamenta o autarca de Mariupol, que não consegue precisar o número de pessoas que já foram sepultadas em valas comuns, mas revela que em pelo menos um local foram enterradas 67 vítimas, algumas sem qualquer identificação. 

Orlov explicou ainda que muitos residentes de Mariupol estão escondidos em caves e, em alguns casos, enterram os familiares nos pátios, quintais ou jardins da própria casa. A grávida cuja imagem correu o mundo após o ataque à maternidade de Mariupol, que foi retirada de maca, ensanguentada e em estado grave, acabou por morrer no hospital e os médicos não conseguiram sequer saber o seu nome: o marido e o pai da mulher acorreram ao local e rapidamente levaram os corpos dela e do filho, para que estes não terminassem enrolados num saco e depositados numa vala comum, contou o médico que os assistiu. 

Pai e marido da grávida que não sobreviveu ao ataque em Mariupol recolheram o corpo de imediato para que não fosse levada para uma vala comum (Foto: AP/Evgeniy Maloletka)

Os corpos daqueles que sucubem aos ataques em Mariupol chegam a ser recolhidos nas ruas por uma equipa de funcionários municipais e a autarquia já teve mesmo de reativar um antigo cemitério que tinha sido encerrado. A Associated Press revela que neste cemitério, no coração da cidade, foi aberta uma cova com cerca de 25 metros de comprimento onde os trabalhadores depositam os cadáveres, alguns ainda embrulhados em tapetes, outros em sacos de plástico.

São enterradas vítimas da guerra, mas também aqueles que morrem de outras causas durante o conflito, nomeadamente doenças prolongadas ou causas naturais. Enquanto os funcionários vão fazendo o seu trabalho, não há familiares presentes para dizer um último adeus: o próprio cemitério foi bombardeado na semana passada, pelo que a tarefa deve ser executada de forma rápida, evitando maiores perigos para os vivos. 

Valas na floresta e sepulturas junto a prédios

Também em Chernihiv, onde os russos já mataram cerca de 200 civis, segundo a estimativa do secretário da autarquia Oleksandr Lomako, o maior cemitério ficou inacessível, obrigando as autoridades a improvisar.  Oleksandra Matviichuk, ativista e dirigente do Centro para as Liberdades Civis da Ucrânia, mostrou há dias no Twitter uma imagem dos caixões a serem enterrados numa vala comum na floresta, já que o cemitério local de Yatsevo está sob bombardeamento constante. 

 

Mas há quem fique enterrado junto do prédio em que vivia. Foi o caso, por exemplo, de Marina e Ivan, cujo caso foi revelado pela jornalista ucraniana Olga Rudenko. Numa partilha no Twitter, Rudenko mostrou uma fotografia de Marina com o filho tirada em Kiev numa noite de verão. Ao lado, colocou uma imagem da sepultura dos dois, no pátio junto do edifício onde moravam em Irpin, sinalizada com tábuas de madeira e uma cruz.

 

Com as morgues sem capacidade para recolherem mais corpos, as cidades ucranianas mais afetadas pelos ataques russos tentam dar um final digno aos seus cidadãos, mesmo que para isso os sobreviventes coloquem as próprias vidas em risco, procurando homenagear de alguma forma os que morrem às mãos dos russos.

O vice-presidente da câmara de Mariupol confessou à CNN que, apesar das estimativas do número de mortes, é impossível apurar o número real das vítimas dos bombardeamentos e artilharia russas na cidade com cerca de 430 mil habitantes. "Não sabemos quantas, porque não conseguimos recolher todos os corpos e não conseguimos contar", admite. 

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