A guerra pode impulsionar um agravamento da covid-19 nos países que acolhem os refugiados. Muitos dos países vizinhos da Ucrânia apresentam uma taxa de vacinação reduzida e o esforço de contenção deve ser coletivo, apelou a Organização Mundial da Saúde. Em Portugal, o Ministério da Saúde garante estar pronto para vacinar os refugiados. Os especialistas lembram que eles são, neste cenário, os mais debilitados e fragilizados e os que correm maior risco
Antes da invasão da Rússia, a Ucrânia já tinha dificuldades em lutar contra um outro invasor: o SARS-CoV-2. O país tem uma das taxas de vacinação contra a covid-19 mais baixas da Europa e semanas antes da invasão enfrentava um pico de infeções. A guerra pode ser um trampolim para que a doença se intensifique no território europeu, que já estava a ser palco de uma subida considerável de novos casos à boleia da maior transmissibilidade da variante Ómicron.
Para Filipe Froes, pneumologista e coordenador do gabinete de crise para a covid-19 da Ordem dos Médicos, a “crise humanitária” que assola a Ucrânia não deve ser ignorada, nem mesmo no que diz respeito à covid-19. “Não nos podemos esquecer que essas pessoas não têm as vacinas em dia e podem criar condições de favorecimento de surtos”, alerta, frisando que é preciso apostar na proteção de todos: dos refugiados e de quem acolhe.
Aos países que fazem fronteira com a Ucrânia, são muitas as pessoas que chegam sem máscara, sem qualquer possibilidade de distanciamento social, sem se conseguirem proteger ou sequer higienizar as mãos. A Polónia tem absorvido o maior número de refugiados, quase dois milhões em menos de um mês. Passam a fronteira sem apresentar certificado de vacinação ou comprovativo de teste negativo, algo expectável face à emergência da situação, à escassez de condições e à necessidade de sair o quanto antes de um país em guerra. Entre aqueles que não saíram da Ucrânia, há ainda quem esteja em bunkers sem ventilação e sem possibilidade de proteção ou dos cuidados de saúde necessários para conter a propagação do SARS-CoV-2.
Este leque de situações pode aumentar a disseminação do vírus e até dar origem a novas variantes, como já alertou a Organização Mundial da Saúde (OMS), citada pela Euronews. A própria OMS disse estar a trabalhar com os europeus “para fortalecer a capacidade do sistema de saúde para acomodar um grande número de refugiados e garantir o acesso a serviços essenciais de saúde”, entre os quais a vacina da covid-19.
Entre a guerra e a pandemia, os refugiados são o elo mais fraco
A taxa de vacinação dos países vizinhos também pode ser um fator de preocupação e de intensificação da propagação do SARS-CoV-2, como diz Carlos Palos, intensivista e coordenador da Comissão de Prevenção, Controlo de Infeção e Resistência aos Antimicrobianos do Grupo Luz Saude.
“Para essas pessoas [refugiados de guerra], a covid será a última preocupação. Nas imagens vemos as pessoas, de um modo geral, sem máscara. E há outros fatores associados. Os países de leste, nomeadamente a Ucrânia e a Polónia, são países com taxa de vacinação baixa. Aqueles nichos de pessoas não vacinadas, que funcionam como reservatórios, poderão ter migrado para zonas onde o vírus estava contido”.
Celso Cunha, virologista do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, da Universidade NOVA de Lisboa, deixa ainda um outro alerta. “A vacina utilizada na Rússia já demonstrou que não tem uma eficácia comparável com as de RNA, é mais baixa.” A Sputnik V, vacina desenvolvida pelos russos, está licenciada em 70 países mas não é administrada na Ucrânia e não foi aprovada pela Agência Europeia do Medicamento.
O pneumologista e dirigente da Fundação Portuguesa do Pulmão Luís Rocha considera igualmente que a baixa taxa de vacinação da população ucraniana e de alguns países da Europa pode ser um motivo de preocupação, sobretudo se não for feito o devido despiste com testagem e proteção dos refugiados.
“Se espalharmos pela população pessoas com a infeção, se tivermos uma variante diferente a circular, podemos ter um aumento do número de casos”, explica, aprontado-se a dizer que, para já, esse não é o cenário, e que os fugitivos da guerra não apresentam um “perigo” para a população. O maior perigo está neles próprios, mais debilitados e desprotegidos.
Uma crise sanitária que vai para além da covid-19
Segundo um relatório de situação da OMS, publicado no domingo e citado pela CNN Internacional, houve um total de 791.021 novos casos de infeção por SARS-CoV-2 e 8.012 mortes por Covid-18 na Ucrânia e nos países vizinhos entre 3 e 9 de março. E estes números, pela dificuldade de testagem, podem não espelhar a realidade, que se estima mais gravosa.
Sem água e saneamento adequados, com acesso limitado a comida e a condições de higiene, “os casos de doenças diarreicas certamente aumentarão”, lê-se num artigo publicado na revista científica Nature, que alerta ainda para o facto de o risco de surtos de poliomielite e sarampo ser “alto”. “E à medida que as instalações de saúde e as estradas são reduzidas a escombros, o acesso a serviços de diagnóstico e a tratamentos para tuberculose e VIH/SIDA está a ser interrompido, o que aumentará a sua carga , que já é muito alta”, continua a publicação.
“Sei por informação de colegas meus [que estão no terreno] que as pessoas estão muito fragilizadas, há muito quadros de diarreia e infecções virais, há um conjunto de condições que oferecem um agravamento de doenças infeciosas e isso pode originar um crescimento da atividade pandémica”, garante Filipe Froes.
Europa e mundo já em estado de alerta… e antes de a guerra ter começado
“Estamos a assistir em todos os países da União Europeia ao aumento do número de casos, que resulta da conjugação de três fatores: a nova sublinhagem da BA.2, o alívio das medidas de controlo e prevenção da infeção e a diminuição da imunidade via infeção ou vacinal”, alerta Filipe Froes, pneumologista e coordenador do gabinete de crise para a covid-19 da Ordem dos Médicos, a propósito da aproximação de uma sexta vaga em Portugal.
Ainda antes da invasão russa à Ucrânia, que começou a 24 de fevereiro, alguns países da Europa começavam a dar sinais de que a covid-19 está longe de desaparecer. Atualmente, há países europeus a enfrentar uma subida exponencial de novos casos e a fazer novamente soar os alertas, como Espanha e a Alemanha. Segundo o Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças (ECDC), a incidência de novos casos em 14 dias voltou a subir na Europa, tendo-se verificado um aumento na ordem dos 4,6% e a incidência atingiu os 1.565 casos por 100.000 habitantes. E isso traz um caráter mais imprevisível à sexta vaga em Portugal. A incerteza deve ser sempre tida em conta, sobretudo numa altura como esta, em que milhões de pessoas saem da Ucrânia rumo à Europa ocidental para fugir da guerra.
Mas não é só na Europa que a covid-19 está a fazer soar novamente os alarmes. Na China, estão atualmente 37 milhões de pessoas em confinamento devido à covid-19. Em Hong Kong, conta a BBC, apenas no último mês morreram mais de 3.500 pessoas e registaram-se para lá de 700 mil casos. Na Coreia do Sul o cenário não é mais animador: à boleia da Ómicron, o país registou em apenas sete dias mais de dois milhões de infeções, sendo que 621 mil casos foram relatados num só dia, na terça-feira. Também o Vietname confirmou mais de um milhão de infeções numa semana, segundo a France 24.
“No hemisfério sul, onde vai ser inverno daqui a pouco, o vírus continua a circular com mais intensidade, e é provável que surjam mais variantes. Não sabemos o que vai surgir, mas a ideia é sempre a mesma. Continuar a monitorizar o que acontece em várias partes do mundo e vacinar”, assegura Celso Cunha.
Monitorizar e vacinar, uma fórmula conhecida
“Esta questão da guerra veio introduzir um elemento não desprezível e de preocupação”, considera o médico Carlos Palos, que defende que os países que acolherem os refugiados devem fazer o esforço de “disponibilizar vacinas gratuitas”. Mas defende que é na monitorização que está o segredo da proteção, não só dos residentes, como dos próprios refugiados.
Apesar de reconhecerem o risco de novos surtos e até de novas variantes, os especialistas entrevistados pela CNN Portugal deixam claro que as principais preocupações devem centrar-se nos refugiados, que não estando vacinados são o elo mais fraco, pois correm um maior risco de desenvolver doença grave após a infeção. E é por isso que defendem a vacinação de quem chega a um novo país, mantendo o reforço que cada país já vai fazendo.
Este sábado, a Direção-Geral de Saúde (DGS) publicou uma norma que define as estratégias de vacinação de cidadãos estrangeiros que se encontrem em Portugal em situações de acolhimento. A DGS definiu como prioritárias as vacinas contra o sarampo e a poliomielite e recomenda também a cobertura vacinal contra a turberculose, a covid-19 e a gripe sazonal.
O ministério da Saúde garantiu à CNN Portugal, por escrito, que “existe um dispositivo de vacinação contra a COVID-19 montado que consegue facilmente integrar a população acolhida em Portugal no âmbito da crise na Ucrânia”.
A inclusão dos cidadãos ucranianos no plano de vacinação contra a covid-19 acontecerá numa altura em que Portugal está a desativar os centros de vacinação e a passar a administração das vacinas para os centros de saúde, uma vez que mais de oito milhões de portugueses elegíveis já têm a vacinação completa.
O médico Carlos Palos, do Grupo Luz Saude, vai mais longe e considera que as pessoas que vêm devem ser rastreadas e até ficarem “num regime de confinamento de sete dias porque poderão ser portadoras e contribuir para a reintrodução viral em zonas em que a situação já estava mais contida”. Segundo o especialista em medicina Interna e Inventiva, “seria uma medida para proteção delas e de todos”.
“Se esses países que acolhem os refugiados tiverem critérios como testar, pedir o certificado da vacina e monitorizar sintomas, aí teremos um controlo”, garante Luís Rocha, pneumologista e dirigente da Fundação Portuguesa do Pulmão.
Para evitar a circulação do vírus entre países, o envio de máscaras de proteção, álcool gel para higienização e testes para as fronteiras podem ajudar num primeiro despiste e num cuidado de saúde mais célere. E há instituições e portugueses por conta própria que já o estão a fazer.