"Nem sequer fui à tropa": o português Fernando Alves vai lutar pela Ucrânia e é um dos exemplos de bravura civil desta guerra

1 mar 2022, 23:32
Um cidadão ucraniano prepara-se para usar um cocktail molotov contra uma parede durante uma campanha de treino, perto de Kiev, Ucrânia. "Não entre em pânico! Prepare-se!", disseram-lhe os militares. (AP Photo/Efrem Lukatsky)

O exército ucraniano tem 219 mil soldados no ativo, a Rússia tem 840 mil: para atenuar o desequilíbrio de forças, os civis ucranianos fazem filas para se alistarem no Exército, produzem cocktails molotov, lubrificam balas com banha de porco e até confrontam o exército russo cara a cara. “O povo ucraniano nunca me surpreendeu. A Ucrânia hoje mostra ao mundo que é corajosa, que tem carácter, que tem força”, conta à CNN Portugal Fernando Alves, ele que mora em Rivne e que se diz tão ucraniano como português. Agora vai lutar pelo país que o acolheu: “Eu luto, ninguém me mete a mão em cima”

Ele está mentalmente preparado para ir à luta: “Eu nem sequer nunca estive na tropa mas tenho de me defender”. Fernando Alves, 52 anos, reside na Ucrânia há quase 20 e quer lutar pelo país que o acolheu, juntando-se aos seus vizinhos, à “comunidade da qual diz fazer parte”. “Eu não sou emigrante, a Ucrânia é a minha terra. Se correr mal [a reunião entre Vladimir Putin e Volodymyr Zelensky], vou à fronteira e deixo lá os meus miúdos. Mas estou cá até ao fim.”

Ao telefone com a CNN Portugal, o empresário português garante que a postura do povo ucraniano é apenas uma novidade para quem não conhece o país. “O povo ucraniano é teimoso”, elogia (sim, é um elogio), relatando que “nos últimos sete, oito anos” a relação do país com a Rússia deteriorou-se. “Começou a sentir-se que os ucranianos não querem ver mais russos, viver do domínio de russos.” E a invasão fez unir o povo - que quer lutar.

Ainda antes das investidas da Rússia na Ucrânia, crianças, jovens e adultos iam-se preparando para um eventual conflito com armas de madeira, formando a Força de Defesa Territorial da Ucrânia. Nos arredores de Kiev, os civis esperam pelos russos com armas nas mãos, um “exército popular” e inesperado, tal como a CNN Portugal já relatou, e que aos poucos começou a ser preparado. Aquilo que parecia uma formação básica serve agora de base para milhares de ucranianos que vão para a linha da frente, mesmo sem nunca terem pegado numa arma verdadeira. Noutras zonas já invadidas pela Rússia param os tanques russos com as mãos, uma bravura que é noticiada além fronteiras. 

“O povo ucraniano nunca me surpreendeu. A Ucrânia hoje mostra ao mundo que é corajosa, que tem carácter, que tem força”, diz Fernando Alves, que, à semelhança de outros não ucranianos descritos pelos The Wall Street Journal, querem lutar por esta nação.

Não tem dúvidas de que é na Ucrânia que pode fazer falta e até a diferença. “Se voltar para trás depois de deixar os meus filhos na fronteira, estou a declarar também guerra à Rússia, nem que seja a ajudar com feridos. Mas em último recurso tenho de pegar numa arma.”

A bravura

O exército ucraniano tem 219 mil soldados no ativo, o russo tem 840 mil. Estes números evidenciam a desigualdade de forças mas há outros: no que diz respeito a aviões de combate e helicópteros de ataque, a Ucrânia tem 170 de cada, enquanto a Rússia soma 1212 e 997, respetivamente; quanto aos tanques de guerra, que tanto se têm visto pelas ruas de algumas cidades ucranianas, a Rússia tem o dobro dos da Ucrânia - 3601 e 1302, respetivamente. O exército russo dispõe ainda de 5631 armas antiaéreas, enquanto a Ucrânia tem 2555.

Esta discrepância de armamento levou o povo ucraniano a juntar-se à linha da frente de combate, alguns à boleia da lei marcial, outros porque sentem que têm o dever de lutar pelo seu país, seja de nascimento ou não, tal como Fernando Alves. “Eu luto, ninguém me mete a mão em cima”, assegura o português.

O presidente Volodymyr Zelensky deu o primeiro passo, apelando a todos os que se sentem aptos para se juntarem à luta. E no Twitter tem-se mostrado junto dos militares, na linha da frente do combate. Um milhão de populares, homens e mulheres, têm armas nas mãos e estão dispostos a ajudar os militares a combater os russos. Esta informação foi recolhida junto de fontes locais por Pedro Mourinho, enviado especial da CNN Portugal a Kiev, capital da Ucrânia. 

Yarina Arieva e Svyatoslav Fursinb decidiram-se juntar à luta no dia seguinte ao casamento. (AP Photo/Mikhail Palinchak)

Fernando Alves não tem ainda armas consigo, nem equipamento de proteção. É um dos muitos que estão à espera de armamento, algo que ficou rapidamente escasso face ao elevado e inesperado número de cidadãos que se quiseram alistar. “Quando [a Ucrânia] pediu às pessoas para se alistaram, as pessoas entraram em massa, não estavam à espera. Chegou aqui a um ponto em que está tanta a gente a alistar-se que mete pena, raparigas com 18 anos, artistas de música, doutores, bailarinas”, relata Fernando Alves, mas apressa-se a dizer que não faltam alternativas - mais uma vez vindas da “muita entreajuda” que há no país. “As pessoas estão com armas de caça, os vendedores disponibilizaram-nas.”

Os cidadãos da Ucrânia estão também a produzir cocktails molotov (e há até garrafas de vinho português à mistura), após um apelo feito pelo próprio Ministério da Defesa da Ucrânia.

Cidadãos ucranianos prepararam cocktails molotov em Kiev (AP Photo/Efrem Lukatsky)

E esta luta não escolhe idades. Kateryna Yushchenko, antiga primeira-dama da Ucrânia (de 2005 a 2010), publicou no Twitter a imagem de um cidadão ucraniano com 80 anos que quer lutar pelo seu país. “Apareceu para se alistar no exército, carregando consigo uma pequena mala com 2 camisolas, umas calças-extra, uma escova de dentes e algumas sandes para o almoço. Ele disse que estava a fazer isto pelos seus netos.”

Com uma AK-47 nas mãos, uma mulher de 79 anos apareceu pronta para defender o seu país da Rússia, fazendo parte dos treinos que são dados aos civis por alguns elementos do exército ucraniano. É mais um exemplo de bravura civil.

Jovem mulher a segurar uma arma durante um treino da Guarda Nacional Ucraniana, ainda antes da invasão da Rússia. (AP Photo/Vadim Ghirda)

Mas não é só de armas que se faz a guerra, pelo menos esta guerra. A união dos ucranianos tem sido um dos principais escudos-protetores, estando os cidadãos a atuar e a ajudar nas mais variadas tarefas, desde distribuir bens alimentares e roupa (que vão chegando não só da parte dos próprios ucranianos mas também de várias parte do mundo através de doações feitas) a “levar água aos militares”, como conta Fernando Alves. Há gente a doar sangue, a cavar e a preparar bunkers ou a fazer pontos de proteção com troncos de madeira e sacos de areia, como relata o The New York Times.

É nas redes sociais que se multiplicam os vídeos e relatos de civis que atuam de forma destemida, seja em patrulhas pelas ruas ou como este homem que remove uma mina que estava debaixo de uma ponte:

Outro exemplo: este cidadão faz frente a um tanque russo com as suas próprias mãos.

“O exercício russo achava que chegava aqui e ia içar as bandeiras em 24 horas, mas os russos enganaram-se, há resistência, até crianças lutam, ninguém quer esta repressão da Rússia - isso já a Ucrânia deu a entender em todo o mundo. A Ucrânia quer viver livre. Os russos podem tomar Kiev mas a Ucrânia não se vai vergar”, frisa Fernando Alves, que se diz pronto para tudo.

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