A manta não estica: os “grandes” exercícios militares no Leste da Rússia com 13 aliados, afinal, não são assim tão grandes

1 set 2022, 05:02
Militares chineses nos exercícios militares Vostok 2022

Moscovo anunciou que o exercício Vostok, que decorre entre hoje e dia 7 na Rússia Oriental, envolverão 50 mil militares de vários países, incluindo a China. É uma enorme redução face à última vez que estes exercícios aconteceram. Com o esforço de guerra na Ucrânia, a “manta” das forças russas não estica

A Rússia tinha garantido que os exercícios Vostok, que começam hoje no Leste do país, iriam provar que a capacidade e disponibilidade das suas forças militares não está minimamente afetada pela “operação militar especial” (leia-se: invasão) que o país está a levar a cabo na Ucrânia. Mas a realidade, mais uma vez, teima em desmentir a propaganda do Kremlin. Segundo os dados das próprias autoridades russas, a semana de manobras militares com diversos países amigos vai envolver, no total, acima de 50 mil homens e mais de cinco mil peças de armamento. Parece muito? Não é. Em 2018, na última vez que a Rússia fez um exercício Vostok, só o lado russo mobilizou 300 mil soldados.

Apesar da propaganda do regime de Putin, tudo indica que a escala dos exercícios militares que estão a ser desenvolvidos em vários pontos do extremo oriente do país, na fronteira com a China, e também no Mar do Japão, se está a ressentir da mobilização de milhares de soldados para o conflito na Ucrânia, na frente ocidental da Rússia.

Apesar de a guerra estar a acontecer no extremo oposto do país, o esforço exigido pelos combates na Ucrânia tem obrigado as Forças Armadas russas a movimentar tropas dos seus territórios mais orientais - são esses recursos que deveriam entrar agora em ação para os exercícios Vostok, mas não estão disponíveis. 

"Este vai ser o menor exercício de nível estratégico em anos, porque todo o potencial das forças terrestres está envolvido em operações na Ucrânia. Portanto, o exercício terá de ser muito pequeno", disse à agência Reuters Konrad Muzyka, diretor da consultora militar Rochan, sediada na Polónia. 

“A Rússia a fingir que está tudo bem”

De acordo com este especialista nas Forças Armadas da Rússia, cerca de 70% a 80% das unidades do distrito militar oriental da Rússia terão sido destacadas para a Ucrânia, tornando "impossível" a Moscovo fazer algo parecido com os grandes exercícios que desenvolveu naquela região, também com militares chineses e de outros países, há quatro anos.

Apesar da incerteza sobre as baixas já sofridas pelos russos na Ucrânia, todas as estimativas, mesmo as mais conservadoras, apontam para valores muito altos de mortos e feridos - e para uma grande dificuldade da Rússia para substituir e refrescar as suas forças na frente de combate.

"É apenas a Rússia a fingir que tudo está bem e que ainda têm a capacidade de lançar um exercício militar em grande escala com a China. Mas, na realidade, penso que o alcance deste exercício, especialmente numa perspectiva de força terrestre, vai ser muito, muito limitado", disse Muzyka.

A informação divulgada no início da semana pelas autoridades militares de Moscovo era pouco clara, e de início dava a entender que a Rússia envolveria 50 mil soldados nestes exercícios, a que se juntariam os participantes de outros países. “Impossível”, comentou o especialista ouvido pela Reuters, estimando que um número mais plausível seria entre 10 mil e 15 mil soldados russos.

140 aviões… vs. mil aviões

Contas que batem certo com a informação entretanto divulgada pelo Ministério da Defesa russo. "As manobras estratégicas reunirão mais de 50 mil soldados e mais de 5 mil peças de armamento e material militar, em particular, 140 aviões, 60 navios de combate, canhoneiras e navios de apoio", detalharam as autoridades de Moscovo, em comunicado citado pela agência de notícias estatal, TASS. Para além das forças russas, o Vostok 2022 irá envolver tropas da China, Índia, Laos, Mongólia, Nicarágua, Síria e vários antigos estados-membro da União Soviética. No total, estarão ao lado dos russos forças de 13 outros países. 

A mobilização de meios também fica bastante abaixo daquilo que aconteceu em 2018. Segundo os dados oficiais divulgados há quatro anos, os exercícios então realizados envolveram mil aviões e mais de 30 mil tanques e veículos blindados. 

Analistas de Defesa ocidentais admitem que os números divulgados pelo Kremlin pecassem, então, por excesso, para passar a imagem de um poderio militar russo que não correspondia à realidade. Em todo o caso, a diferença em relação aos números de 2022 é abissal.

Contra esta evidência, os responsáveis russos dizem que o que está a acontecer na Ucrânia não afetou estes exercícios. Perante os números finais de forças envolvidas, o vice-ministro da Defesa russo, Yunus-Bek Yevkurov, limitou-se a dizer que "o âmbito dos exercícios, a composição dos Estados participantes, o número de pessoal, armas e equipamento militar especial envolvido, sublinham o papel crescente e a importância da formação".

China quer mais cooperação militar com a Rússia

Na quarta-feira, as tropas encenaram uma cerimónia de abertura dos exercícios na região de Primorsky. As manobras deviam ter começado na terça-feira, mas na véspera a data de início foi adiada em dois dias - é incomum a alteração de datas de exercícios militares em cima da hora, mas o Ministério da Defesa russo não deu qualquer explicação sobre esse facto.

O contingente militar russo nos exercícios envolverá centros de comando militar e tropas do Distrito Militar Oriental, unidades da Força Aérea, aviões de longo alcance e de transporte militar, disse o Ministério da Defesa russo. "Os exercícios destinam-se a dominar as capacidades dos comandantes e dos quartéis-generais no exercício do comando e controlo das forças combinadas de armamento e coligação para repelir atos de agressão na direção oriental e na zona marítima do Extremo Oriente, aumentar a compatibilidade e a interoperabilidade das forças de coligação no cumprimento conjunto dos objetivos de manter a paz, proteger interesses e garantir a segurança militar na região oriental", afirmou o ministério.

O distrito militar oriental, onde se realiza parte dos exercícios do Vostok 2022, inclui parte da Sibéria e tem o seu quartel-general em Khabarovsk, perto da fronteira chinesa. A participação da China nestes e noutros exercícios militares com a Rússia não é novidade, mas esta é a primeira vez que tal acontece após a invasão da Ucrânia. Pequim insiste que estas manobras não têm qualquer “relação com a atual situação internacional e regional”, mas a participação da China mostra que a invasão da Ucrânia nada mudou na cooperação entre os dois países, que têm em comum o desejo de fazer frente aos EUA e aos seus aliados.

“A cooperação militar e de segurança China-Rússia serve interesses centrais mútuos, não visa terceiros, e é favorável à paz, estabilidade e desenvolvimento regional”, defende o embaixador chinês em Moscovo, Zhang Hanhui, numa entrevista publicada esta quinta-feira pelo Global Times, jornal em língua inglesa do Partido Comunista Chinês. Segundo o diplomata, “a China valoriza muito a cooperação militar e de segurança com a Rússia e trabalhará em conjunto com a Rússia para levar a cooperação militar e de segurança bilateral a um nível mais elevado, e para cobrir uma gama mais vasta de áreas”.

As manobras sino-russas vão incluir patrulhas estratégicas conjuntas, e o destacamento recíproco de tropas numa série de exercícios militares, entre outros, “com o objetivo de aprofundar as trocas de defesa e segurança, combater o terrorismo regional, e salvaguardar a soberania e a integridade territorial”, escreve o Global Times. 

Nas ações militares bilaterais incluem-se, também, operações no Mar do Japão, o que tem motivado grande apreensão e desconfiança por parte de Tóquio. Haverá manobras em Etorofu e Kunashiri, duas das Ilhas Curilhas, que são território russo sobre o qual o Japão reclama soberania há décadas - este conjunto de ilhas e ilhotas, a Norte do Japão, é referido pelos nipónicos como Territórios do Norte, e até ao início da invasão da Ucrânia decorriam conversações entre Tóquio e Moscovo para a resolução desse conflito. Segundo responsáveis da Defesa do Japão, o treino em redor destas ilhas é "inaceitável".

A participação da China nestes exercícios faz agravar as preocupações de Tóquio, pois Pequim também tem assediado os mares do Japão no extremo sul do arquipélago, onde fica outro conjunto de ilhas que é alvo de disputa internacional - navios chineses têm feito aproximações às Ilhas Senkaku, que são do Japão, mas a China reivindica como suas (e Taiwan também).

Índia joga nos dois tabuleiros

Outra presença que tem chamado as atenções dos EUA, do Japão e outras democracias aliadas é a da Índia. Não é novidade a proximidade de Nova Deli a Moscovo, que vem desde a independência da Índia e se reforçou sob as lideranças de Vladimir Putin e Narendra Modi, dois líderes de perfil nacionalista. Apesar dos esforços dos EUA para afastarem Nova Deli de Moscovo, a Rússia continua a ser o principal fornecedor de material militar à Índia - e as trocas comerciais entre os dois países aumentaram desde o início da guerra na Ucrânia, com as importações de petróleo russo por parte da Índia a disparar (a Rússia ultrapassou a Arábia Saudita como maior fornecedor de petróleo para a Índia). 

Agora, a participação de Nova Deli nestes exercícios passa uma mensagem de “business as usual”. Modi não só não nunca condenou a invasão da Ucrânia como alinha agora as suas tropas com as de Putin. Pouco se sabe sobre qual o grau de participação da Índia nos exercícios, mas Modi teve o cuidado de não permitir o envio das suas forças para o Mar do Japão, para não melindrar Tóquio. 

Recorde-se que a Índia e o Japão são dois dos membros da Quad, uma organização de segurança que junta as quatro maiores democracias do Indo-Pacífico e que inclui também os EUA e a Austrália. Ainda em maio, Tóquio recebeu uma cimeira que juntou os chefes de Estado e de governo dos quatro países. A Índia tem relações tensas com a China - e a participação na Quad permite-lhe fazer frente à cada vez maior assertividade de Pequim face aos seus vizinhos - mas nunca permitiu que as suas relações com os EUA ou outras democracias do Indo-Pacífico beliscassem o elo especial que mantém com Moscovo desde os tempos da Guerra Fria.

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