A televisão russa já mostra o que se passa na guerra. Mas a culpa é sempre dos ucranianos

CNN , Análise de Jill Dougherty
4 abr 2022, 19:00
Agentes da polícia detêm um manifestante no centro de Moscovo a 13 de março - mas nenhuma oposição à guerra é mostrada na televisão estatal russa. Foto: AFP via Getty Images

Análise às reportagens que são mostradas na Rússia mostram outra maneira de ver o conflito

O vídeo comovente parece-se mesmo as imagens que os telespetadores ocidentais estão a receber da guerra na Ucrânia: uma avó, embrulhada num casaco grosso contra o frio, chora em frente à sua casa de madeira, agora fumegante depois de um rocket ter atingido a sua aldeia. “Eles destruíram tudo!” chora ela. “Não sobrou nada.”

Mas este é o canal de televisão Rossiya24, controlado pelo governo russo e, nesta reportagem, os soldados que atacaram a aldeia são ucranianos, não russos. O correspondente russo apelida-os de “nacionalistas”. Outras reportagens do canal usam os termos “neonazis”, “fascistas” ou “viciados em drogas” que usam os civis como “escudos humanos”.

Quase todos os relatos do conflito são da região separatista de Donbass, no leste da Ucrânia, especificamente das duas autoproclamadas “repúblicas populares” de Donetsk e Luhansk, entidades maioritariamente de língua russa que a Rússia reconheceu como estados independentes a 21 de fevereiro.

Foi esse o gatilho para a invasão da Ucrânia pela Rússia, fornecendo a Moscovo o pretexto para invadir, alegando que não tinha escolha a não ser “protegê-los” de um ataque iminente da Ucrânia, uma alegação que a Ucrânia nega veementemente. Como disse uma reportagem: “A desnazificação só foi possível com uma operação militar.”

Nas transmissões televisivas russas, a guerra na restante Ucrânia, a guerra que a maioria das pessoas de todo o mundo está a testemunhar, é amplamente ignorada - os destroços de Mariupol após o bombardeamento russo; as ruínas carbonizadas de casas e edifícios em Kharkiv, Chernihiv, Kherson, Zhytomyr e outras cidades dizimadas pelos ataques aéreos russos; os bairros residenciais na capital Kiev, juntamente com os seus moradores em estado de choque, sangrando e fugindo dos bombardeamentos russos - quase nada disso é mostrado na televisão russa. Quando é mostrado, é claro que a culpa é das forças ucranianas. Também não há uma cobertura precisa dos recentes reveses militares sofridos pelos militares russos.

As reportagens são emotivas, muitas vezes cheias de acusações e ameaças iradas. Num dos talk shows mais populares da Rússia, o apresentador Vladimir Solovyov, critica a Europa e os Estados Unidos, a certa altura fazendo troça dos relatos mediáticos norte-americanos de que o presidente russo Vladimir Putin, alegadamente, não está a ser informado pelos seus assessores sobre o que realmente está a acontecer na Ucrânia.

“Ainda não sabem que respostas estamos a preparar para vocês, não sabem o rumo disto e, na verdade, não vão gostar nada, camaradas americanos!”

Também Putin tem usado uma linguagem mais crua e emocional quando aparece na televisão em reuniões virtuais ao estilo Zoom com o seu Conselho de Segurança, ou em pessoa, com um membro do seu governo sentado na extremidade oposta de uma mesa ridiculamente longa, para evitar qualquer possibilidade de ser infetado com covid.

O Ocidente tem um objetivo, disse ele num discurso: “a destruição da Rússia.”

“Mas qualquer povo, e especialmente o povo russo”, ele garantiu aos telespetadores, “será sempre capaz de distinguir os verdadeiros patriotas da escória e dos traidores, e irá simplesmente cuspi-los, como um mosquito que por acidente voa para dentro da sua boca.”

No mundo fechado da propaganda russa, no entanto, o elevado nível de emoção nem sempre pode compensar a falta de consistência lógica. Putin afirma que a Ucrânia não é realmente um país, mas sim uma região histórica da Rússia. Os ucranianos e os russos, como ele descreveu num tratado desconexo que publicou no verão passado, são um só povo. E, no entanto, na guerra que ele mesmo ordenou, os russos estão a matar os seus “irmãos” ucranianos.

Espalhados pelos boletins de notícias estão pequenos videoclipes destinados a angariar apoio para o ataque à Ucrânia: jovens ansiosos correndo para uma formação que, de cima, soletra a letra "Z", o símbolo não oficial da ofensiva da Rússia contra a Ucrânia, pintada em quase todos os tanques e veículos blindados na zona de guerra - e ocasionalmente, na Rússia, pintados com spray nas portas dos russos que expressam qualquer oposição à invasão.

Noutro vídeo de propaganda com citações curtas de pessoas que parecem russos comuns, um homem diz: “Eu apoio o nosso presidente!” Outro proclama: “Apoio totalmente as políticas do nosso presidente para proteger nosso povo!” Outro ainda diz de forma sombria: “Não queremos que a NATO se aproxime de nós.” O último orador implora: “Vamos unir-nos!”

Num toque Orwelliano, o conflito na Ucrânia pode ser apenas apelidado de “operação militar especial”. Segundo uma lei aprovada a 4 de março, é ilegal chamar “guerra” à guerra ou descrevê-la como “ataque” ou “invasão”. Os infratores podem ser punidos com até 15 anos de prisão, o mesmo acontecendo às agências noticiosas que divulguem qualquer coisa considerada “notícia falsa” sobre a “operação” ou os militares russos.

Muito simplesmente, não há uma visão contrária da guerra que possa ser vista ou ouvida nos média da Rússia. As manifestações contra a guerra que eclodiram em toda a Rússia nas primeiras semanas dos combates, durante as quais mais de 15 000 pessoas foram detidas ou presas, nunca são exibidas na televisão estatal.

Bloqueio de informações

Há anos que o governo de Putin tem vindo a eliminar metodicamente os média livres da Rússia e, quando a guerra começou, os dois meios de comunicação independentes que restavam, a TV-Dozhd (TV-Rain) e a Echo Moscow Radio, fecharam após a nova lei “não dizer guerra” ter sido aprovada. Agora, todos os meios de comunicação televisivos são controlados pelo governo, diretamente ou através de proprietários amigos do Kremlin, e a maioria dos russos, com a notável exceção dos jovens, obtém as suas notícias e informações pela televisão.

Fontes de informação online, como o Facebook, o Twitter, o Instagram e outras redes sociais estrangeiras foram bloqueadas. Assim como os meios de comunicação internacionais que transmitem no idioma russo, como a BBC e a Radio Free Europe/Radio Liberty.

Este bloqueio de informações parece estar a ter algum êxito em convencer os russos de que a guerra do presidente é justificada. Submetidos a uma propaganda cheia de mentiras de que a Ucrânia é governada por nazis, de que os compatriotas russos do Donbas são vítimas de “genocídio”, de que a própria Rússia está em perigo mortal de um ataque da NATO, pode ser compreensível que muitos russos apoiem a guerra.

Uma sondagem realizada em março pelo Levada Center, um instituto de pesquisa independente, sugeriu de facto que os índices de aprovação de Putin subiram desde o início da guerra, com 83% dos entrevistados a dizer que aprovavam o presidente russo, contra os 69% que o faziam em janeiro. Mas a verdade é que as sondagens não são necessariamente fiáveis num país onde as pessoas estão sujeitas a um fluxo de propaganda e onde a dissidência não é tolerada.

Os ucranianos sofrerão durante anos com a destruição desencadeada por esta guerra desnecessária. Mas os russos também sofrerão os efeitos desta viciosa guerra de informações travada pelo seu próprio governo.

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