"Pode ser um novo vírus". Portugal sem casos mas alerta para hepatite aguda de origem desconhecida em crianças

20 abr 2022, 18:00
Crianças

Diretor do Programa Nacional para as Hepatites Virais garante que autoridades portuguesas estão informadas e alerta para eventuais casos da hepatite aguda grave que já foi diagnosticada em quase uma centena de crianças a nível europeu. Origem da doença não foi identificada e os sintomas confundem-se facilmente com os de outras doenças

Ainda não foi detetado em Portugal nenhum caso de hepatite aguda de origem desconhecida em crianças, mas as autoridades estão atentas: "Estamos informados e em alerta", disse à CNN Portugal Rui Tato Marinho, o diretor do Programa Nacional para as Hepatites Virais da Direção-Geral da Saúde, depois de a Organização Mundial da Saúde e o Centro Europeu de Controlo de Doenças terem divulgado informações sobre dezenas de casos diagnosticados a nível europeu.

"Já comunicámos à rede de pediatria e às sociedades científicas para que estejam atentas", destacou o especialista, que admite não estar "completamente descansado" com as informações mais recentes sobre a doença. "Mas não podemos estar em alarme", desdramatiza Tato Marinho. 

A causa destas hepatites agudas é desconhecida. Sabe-se apenas que não são causadas pelos vírus que estão na origem das hepatites mais comuns. "Uma hepatite aguda é uma inflamação do fígado, quando um vírus entra pela primeira vez no ser humano e provoca alterações no fígado", explica o diretor do Programa Nacional para as Hepatites Virais. Nos casos agora notificados, sabe-se que as análises feitas às enzimas hepáticas mostravam valores muito alterados, mas os sintomas da doença são "inespecíficos" e muito parecidos com os de outras doenças.

"Se vir uma criança com os olhos amarelos, por exemplo, com icterícia, fico logo em alerta. Mas para ter a certeza de que se trata de uma hepatite têm de ser feitas análises", explica Tato Marinho. 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) foi notificada a 5 de abril para 10 casos de hepatite aguda de origem desconhecida na Escócia, em crianças com menos de dez anos. A 8 de abril já tinham sido identificados 74 casos no Reino Unido e as análises em laboratório indicavam que na origem da doença não estavam os vírus normalmente causadores das hepatites: "Os vírus das hepatites (A, B, C, E e D, quando aplicável) foram excluídos após testes laboratoriais e estão a ser realizadas investigações aprofundadas para compreender a etiologia destes casos", informava a OMS num comunicado de 15 de abril. 

Recorde-se que existem seis tipos diferentes de vírus da hepatite: A, B, C, D, E e G. A hepatite A e E resultam da ingestão de água ou alimentos contaminados, a B, C e D exigem contacto do sangue com outros fluídos, transmitindo-se através de relações sexuais, transfusões de sangue, partilha de seringas ou de mãe para filho na gravidez.

Já a hepatite A é frequente em Portugal e surge normalmente na infância ou juventude, mas não evolui para doença crónica ou cancro, ao contrário das hepatites B e C, e os sintomas são semelhantes aos de uma gripe, raramente exigindo tratamento hospitalar. 

"A grande maioria das pessoas teve hepatite A e não se apercebeu, nas crianças muitas vezes passa despercebida", revela à CNN Portugal o pediatra Caldas Afonso. "Por isso é que não temos vacinação universal para a hepatite A, só é recomendada para alguns países, como o Brasil, por exemplo". 

Possibilidade de ser um "vírus novo"

Depois das dezenas de casos de hepatite aguda notificados no Reino Unido no início do mês, a OMS revelou que foram apontados mais cinco casos suspeitos na Irlanda e três confirmados em Espanha, em crianças entre os 22 meses e os 13 anos. Dinamarca e Países Baixos também já notificaram situações de hepatite aguda em crianças. Fora da Europa, foram confirmados nove casos em crianças entre 1 e seis anos no estado norte-americano do Alabama. Estas crianças, além da hepatite aguda, testaram positivo para infeção por adenovírus, que causa habitualmente doenças respiratórias. A OMS revelou ainda que várias crianças com hepatite aguda também estavam infetadas com covid-19. mas o Centro Europeu de Controlo de Doenças (ECDC na sigla original) já garantiu que não há ligação da doença à vacina para o SARS-CoV-2, por exemplo. 

A grande maioria dos casos no Reino Unido são em crianças com menos de cinco anos, que nem sequer são vacinadas contra a covid-19", corrobora Alberto Caldas Afonso, o diretor do Centro Materno-Infantil do Norte, que admite que por trás dos problemas hepáticos agudos esteja uma causa infecciosa e não tóxica. 

Já Tato Marinho assinala que "tanto o adenovírus como o SARS-CoV-2 são vírus extremamente frequentes", acrescentando: "Neste momento, não há razão para dizer que sejam a causa da doença. Até pode ser um vírus novo", atira o especialista. "Da experiência que temos de outras doenças parecidas, como foi a sida, a covid-19 ou a dengue, às vezes demora algum tempo até se descobrir", refere o diretor do programa da DGS para as hepatites virais.

"Os laboratórios de referência a nível internacional já estão a investigar, pode ser uma questão de tempo, depois de sabermos o que se passa no terreno. Um pouco como a Polícia Judiciária", diz o especialista. "O que se passou com a covid-19, por exemplo, foi fantástico, em pouco tempo havia vacinas, todos os dias apareciam coisas novas", realça Tato Marinho.

Já o presidente da Sociedade Portuguesa de Gastroenterologia pediu aos pediatras, esta semana, que estejam atentos a "manifestações clínicas que não sejam tão visíveis" quando observam crianças doentes em consulta.

Em declarações à Lusa, Guilherme Macedo considerou que na origem desta doença do fígado pode estar uma situação infecciosa (geralmente vírica), tóxica, desencadeada por uma toxina súbita que não tenha sido identificada previamente na natureza ou em algum tipo de produto que esteja a ser consumido, ou uma razão imunológica.

“Também não é de todo disparatado ser considerada num contexto de uma pandemia que ainda está a ter contornos flutuantes, em que há algumas mutações ainda a surgir”, afirmou o gastroenterologista, sublinhando que nenhuma destas hipóteses pode, para já, ser excluída. Mas, apontou, o mais provável é tratar-se de uma infeção aguda por um vírus e, sendo assim, é preciso compreender o porquê de atingir predominantemente crianças abaixo dos 10 anos.

Hepatite aguda é "terramoto na criança"

Por não existirem certezas na causa destas hepatites agudas, não há ainda forma de as prevenir. O ECDC refere que a equipa do Reino Unido que acompanhou os casos colocou inicialmente a hipótese de se tratar de "um agente infeccioso ou uma possível exposição tóxica". Porém, a informação recolhida através de questionários sobre comida, bebida e hábitos pessoais não encontrou qualquer exposição ou traço que fosse comum entre os doentes. "As investigações toxicológicas estão a decorrer mas uma etiologia infecciosa é considerada mais provável, dado o quadro epidemiológico e as características clínicas dos casos", refere o ECDC.

A OMS, por seu lado, assinala que não estão recomendadas quaisquer restrições a viagens ou trocas comerciais com o Reino Unido e outros países onde foram identificados casos de hepatite aguda pediátrica, baseando-se na informação que está disponível nesta altura. 

Já no que ao tratamento diz respeito, e excluindo os casos - que são raros - onde a insuficiência hepática assume contornos graves e só pode ser resolvida com transplante, normalmente a hepatite aguda é uma doença "autolimitada com evolução favorável", aponta Caldas Afonso, acrescentando que os sintomas são "inespecíficos e comuns a outras doenças", nomeadamente dor abdominal, vómitos, diarreia, cansaço ou febre. 

"A doença é um terramoto na criança, desorganiza", diz Tato Marinho. As medidas para controlar a hepatite aguda passam pela hidratação e procurar monitorizar eventuais valores de análises alteradas. No fundo, "manter a criança viva até que passe a fase das complicações", refere. "Como não se sabe a causa, não existe um tratamento específico. Mesmo os medicamentos antivirais, só se aplicam nalguns casos, para algumas doenças", conclui. 

Para o diretor do Programa Nacional para as Hepatites Virais, o aumento de casos de hepatite aguda pode fazer com que se comece "a pensar um bocadinho mais no fígado", incluindo análises aos valores hepáticos nas análises de rotina. "Na criança não se pensa muito nisso, mas temos em Portugal pediatras dedicados às doenças do fígado, diferenciados", destaca, acrescentando: "Outro dia falava com um colega espanhol e em Espanha, que é quatro vezes maior do que Portugal, há 15 pediatras especialistas. Nós, em proporção, temos mais, serão sete ou oito", refere, pedindo aos pais tranquilidade na forma como encaram este problema de saúde. "O transplante é uma situação muito rara e faz-se sobretudo em casos de doença crónica ou cirroses. Em Portugal, faz-se à volta de um transplante hepático por mês em criança", garante. 

Dos casos de hepatite aguda diagnosticados até agora na Europa e Estados Unidos, seis precisaram de transplante hepático, refere a OMS. Nenhuma criança morreu. 

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