Em Guerra e Paz, o escritor russo Lev Tolstoi escreveu que “O homem não tem poder sobre nada enquanto tem medo da morte. E quem não tem medo da morte possui tudo”.
Pinto da Costa possuiu tudo o que podia ou lhe consentiram possuir.
Conheci Pinto da Costa há mais de 45 anos e no meio de tantas conquistas, títulos europeus e mundiais, confesso que o que mais me impressionou não foi a vitória sobre a neve em Tóquio; não foi o calcanhar de Madjer em Viena, não foi sequer o pensamento estratégico de Pedroto e base do ideário de Pinto da Costa, não foram as exibições protagonizadas por alguns jogadores que vi brilhar com a camisola azul e branca, como foram os casos - sem nenhuma ordem especial - de Fernando Gomes, Cubillas, o já citado Madjer, João Pinto, Pepe, Falcão, Paulo Futre, Jaime Magalhães, Semedo, Frasco, Sousa, André, António Oliveira, Vítor Baía, Deco, Helton, Rui Barros, Jackson Martinez, Ricardo Carvalho, Fernando Couto, Jorge Costa, Aloísio, Juary, Branco, Hulk, Domingos Paciência, Lucho Gonzalez, Kostadinov, Jardel, Zahovic, entre tantas outras dezenas de atletas de eleição, e na memória tenho sempre alguns dos primeiros atletas do FC Porto que vi jogar como Américo, Gualter, Rolando, Atraca, Açucena, Bernardo da Velha, Nóbrega, Custódio Pinto, Seninho; o que mais me impressionou não foi no Verão Quente que deu início à liderança de Pinto da Costa e ao afastamento de Américo de Sá; não foram as idas as Antas, em clima quase sempre muito inflamado e já mais recentemente ao Dragão (onde fui muito bem recebido por Reinaldo Teles), não foi a descoberta da Formação do FC Porto e as conversas com Raul Peixoto (que também partiu há dias e não teve a homenagem que mereceria), José Carvalho, Feliciano e Costa Soares; nem foram os contactos com uma plêiade de grandes treinadores como foram Pedroto, José Mourinho, Artur Jorge, Ivic e Bobby Robson, entre tantos outros nomes relevantes na ´esfera do treino, do estudo e da competição, entre os quais não se pode ignorar o papel de André Villas-Boas.
O que mais me impressionou foi exactamente aquilo que Tolstoi escreveu em Guerra e Paz: “O homem não tem poder sobre nada enquanto tem medo da morte. E quem não tem medo da morte possui tudo”.
E deste pensamento retiro três palavras: poder, medo e morte.
De facto, Pinto da Costa mostrou nos últimos meses, de uma forma até porventura chocante, com a publicação do livro “Azul até ao Fim”, que não tinha, como não teve, medo da morte. Ora esse era o princípio, e citando de novo Tolstoi, para Pinto da Costa possuir tudo sem medo de nada.
Essa foi, talvez, a sua principal característica e deixou uma lição: não se pode ser poder sendo convencional. Não se pode ser poder sem conviver simultaneamente com o bem e com o mal. Não se pode ser poder sem pisar o mármore frio das igrejas, sem pisar a madeira quente dos cabarés.
Não se pode ser poder sem se ser dilemático.
Não se pode ser poder sem degustar o mel e não ter medo de engolir o fel e ser resistente aos venenos da vida.
Não se pode ser poder sem ser aconchegante para os amigos, trocista para com o louvaminheiros que dele se aproximaram por se ter transformado em Portugal, não no presidente dos presidentes, como agora todos dizem, mas no poder dos poderes; não se pode ser poder se não se utilizarem técnicas próprias utilizadas muito naturalmente como ter humor e saber contar umas piadas, utilizar a ironia também é uma característica de poder e olhar para o fado como algo que lhe completa o carisma das guitarradas.
Até acho que foi esse carisma, e só esse carisma, que aproximou por exemplo um homem da sisudez do general Ramalho Eanes, com os seus múltiplos rigores e amigo de uma ética que se acharia inconfundível com comportamentos socialmente censuráveis, de Pinto da Costa e das suas ambivalências.
O poder combina a produtividade do bem com a produtividade do mal. Da mesma maneira que Maquiavel baseava o seu poder político na produtividade do mal, também Pinto da Costa, sem nunca ter deixado de exercer a sua influência política, não tinha o menor problema em basear o seu poder futebolístico na produtividade do mal.
Foi por isso que o atual treinador do Manchester United, Ruben Amorim, afirmou que “Pinto da Costa passou muitos limites. E toda a gente sabe disso”.
Não vou repetir a sapiência googliana do enxame de opinadores que nas últimas horas se pronunciaram sobre Pinto da Costa.
Sobre “o presidente mais titulado do Mundo”, sobre as qualidades quase sempre acertadas nas trocas de favores e na captura dos poderes mais permeáveis, que veem num maior poder razão para enormes deslumbramentos ou num sorriso de circunstância ou de uma palavra mais simpática o motivo suficiente para passar a integrar o Clube privado dos mais poderosos.
A grandeza dos homens (ou a falta dela) mostra-se nestes momentos.
No momento da morte.
As misérias que ora se espelham nos rancores ora se espelham na lisonja.
Não me consigo rever na miséria dos rancores e tinha, talvez, motivos para o fazer, pelas mentiras e perseguições de que fui alvo, apenas e só porque nunca pactuei com manifestações de coação, falta de liberdade ou cancros do futebol plasmados nas negociatas das transferências ou do apoio às claques, amplamente fundamentadas nas investigações da Operação Pretoriano e da auditoria forense.
Não vou ignorar, como nunca o fiz, o mérito das vitórias, o reconhecimento da liderança e da ousadia, a verificação de que estamos perante o presidente e o dirigente mais relevante e intenso da história do futebol nacional, mas em nome da coerência de décadas e contra esta monumental e quase diletante hipocrisia político-comunicacional recuso-me a contribuir para a beatificação de Pinto da Costa. Simplesmente porque não merece e, mesmo com o respeito que a morte me inspira, não vou deixar de o dizer.
Porque o respeito também significa respeitar a D. Cecília Pedroto, também significa respeitar os portistas que pensam diferente, também significa respeitar a opção de respeitar a opção corajosa de ver André Villas-Boas tomar posição ao ver o FC Porto enfraquecer-se perante a ganância e métodos que colocaram em causa as liberdades e a génese da sociabilidade.
Não esqueço as vitórias e o que elas significaram para o engrandecimento de um grande clube como é o Futebol Clube do Porto, mas não esqueço o Apito Dourado, o controlo sobre os árbitros e os nomeadores a influência da guarda-pretoriana para que o poder dos poderes se tornasse efectiva e colocasse a sola da bota cardada inclusivamente sobre poderes fáticos que hoje parecem menos vulneráveis.
Não esqueço a comunhão e a defesa de pessoas que fazem e fizeram muito mal à cidade do Porto e ao FC Porto, à cidadania em geral e à urbanidade que nos deve unir nas diferenças.
Não me calo perante a memória de jornalistas dignos que já cá não estão e que foram agredidos e enxovalhados, sobretudo na década de 90. Devo-lhes esse tributo.
Andre Villas-Boas é um bom exemplo da grandeza dos homens. Não optou nem pela miséria humana dos rancores nem pela miséria humana das lisonjas. Acionou o direito de se propor na sua liberdade constitucional e associativa sem nunca ignorar o papel que Pinto da Costa terá para sempre na história do FC Porto.
O Benfica e o Sporting optaram pela miséria dos rancores. Não precisavam de fazer panegíricos à volta da figura de Pinto da Costa. Não precisavam de ser hipócritas. Seriam suficientes duas ou três linhas num comunicado institucional, no tempo certo.
Termino como comecei: ao não ter medo da morte e a forma como a enfrentou foi a melhor forma de exibir grandiosamente o seu poder. O poder dos poderes. Voltando a Tolstoi: “Quem não tem medo da morte possui tudo”. E Pinto da Costa possuiu tudo: na produtividade do bem e do mal.