REPORTAGEM|| No primeiro dia do julgamento em que está acusado de aceder e divulgar centenas de documentos secretos do Benfica, Rui Pinto manteve-se em silêncio. Já os advogados do clube foram os únicos assistentes a usar da palavra para garantir que o pirata informático não é um denunciante, mas um "assaltante de domicílios digitais" com fins de "natureza clubística"
Discretamente, de calças de ganga e camisola cinzenta, Rui Pinto levantou-se do banco dos réus e anunciou que não queria prestar declarações no primeiro dia do julgamento em que surge acusado de 242 crimes de violação de correspondência e acesso indevido. Explicou à juíza que a sua morada é reservada por estar inserido num programa de proteção de testemunhas. A sua profissão? “Desempregado.” E antes disso? “Na Hungria tinha um negócio de compra e venda de livros antigos.”
Além da idade, da sua terra natal - Mafamude - e do nome dos pais, nada mais saiu da boca do pirata informático responsável por divulgar centenas de documentos secretos de clubes, sociedades de advogados e organismos públicos que acabaram em investigações de alto perfil hoje conhecidas como Football Leaks ou Luanda Leaks. Como ele, também o Ministério Público prescindiu de fazer qualquer declaração neste primeiro dia.
Mas o silêncio e as negas dadas à juíza foram rapidamente interrompidas pelos três advogados que representam o grupo Benfica, que acusa Rui Pinto de aceder ilegalmente a várias caixas de e-mails e contratos secretos do clube que acabaram por ser divulgados num blogue chamado “Mercado do Benfica” e onde foram publicados documentos da investigação E-Toupeira sobre como os encarnados conseguiram corromper um oficial de justiça.
Rui Patrício, advogado do clube, começou por sublinhar que Rui Pinto não é um denunciante ou um whistleblower - e, “mesmo se fosse, isso não autorizaria as condutas pelas quais vem pronunciado”. “O principal é que o arguido é um pirata informático e os fins que diz terem motivado a sua conduta não foram o de investigação e interesse público, mas sim fins de natureza clubística, de natureza pessoal, mediática e especulativa”, afirmou, acrescentando que Rui Pinto apenas “começou a colaborar com as autoridades quando foi apanhado”.
Como assistentes do processo, garante o advogado, o Benfica “não se propõe a demonstrar nada”, mas apenas a “dar uma ajudinha na solidificação” de que Rui Pinto “acedeu a credenciais, configurou caixas de e-mail, exfiltrou e divulgou - não às autoridades mas “a terceiros”, incluindo dirigentes do FC Porto - “até ao momento em que foi apanhado”. “A tese do romântico Robin dos Bosques não é uma tese que se enquadra com os factos”, referiu ainda, acrescentando que o hacker “não foi nem mais nem menos do que um assaltante de domicílios informáticos”.
Defesa do pirata informático preocupada com "ameaças"
“Qualquer colaboração posterior e tentativas de santificação não teriam efeito retroativo, essa linha defensiva não pode contribuir para afastar a responsabilidade do arguido”, defendeu o representante do Benfica, enquanto o pirata informático mantinha o olhar nas mãos entrelaçadas.
O clube encarnado é um dos quatro assistentes no processo, mas foi o único neste dia de julgamento a exercer o direito à palavra - algo que a defesa de Rui Pinto garante ser apenas uma estratégia de “vingança”.
Francisco Teixeira da Mota, o representante do hacker, só chegou ao julgamento muito depois de o advogado dos encarnados ter começado as suas exposições iniciais, mas aquilo que ouviu permitiu chegar imediatamente a uma conclusão. “O Benfica foi alguém que, como pessoa coletiva, teve uma estratégia de assegurar maior influência junto da sociedade portuguesa, nomeadamente através de magistrados, corrompendo algumas figuras da justiça criando uma situação em que a sua moralidade é posta em causa”, afirmou.
Sobre o hacker, afirma o advogado, “ninguém diz que é um herói ou santo”, mas “acho graça que o Benfica seja moralista e tente passar uma imagem de bom samaritano”. O Benfica, continuou, é o “principal motor deste processo num espírito de vingança”. Francisco Teixeira da Mota referiu ainda que o hacker “mostrou de forma inequívoca que as consultoras e os grandes escritórios de advogados são arquitetos de corrupção” e usou como exemplo a Operação Influencer, que levou à demissão de António Costa. “Há casos onde são esses escritórios que preparam legislação”. “A grande corrupção nacional baseia-se nestas operações que utilizam o sigilo profissional a seu favor.”
Sublinhando que o processo que o pirata informático enfrenta é “um absurdo”, já que contempla o mesmo período de tempo do julgamento do Football Leaks - em que Rui Pinto foi condenado a quatro anos de prisão em pena suspensa -, o advogado destacou ao tribunal que o hacker “não é hoje a mesma pessoa que era”, já que, argumenta, as revelações que fez tiveram em conta o bem público e não o bem dele. “O Rui Pinto, quando começa a fazer as revelações, tem uma evolução de personalidade e isso tem de ser tomado em conta.” Mais: “Hoje em dia é capaz de dizer que os fins não justificam os meios”.
Voltando depois as atenções para o Ministério Público, o advogado criticou a “salamização” dos processos contra Rui Pinto - que continua ainda a ser investigado pelas autoridades - e refere que existiu “da parte da acusação pública uma grande pressão para que várias entidades apresentassem queixa contra ele”. Já fora do tribunal, Francisco Teixeira da Mota viria a incidir sobre este ponto, garantindo que isto põe em causa a segurança do hacker. “O MP está a manter Rui Pinto sob os holofotes da opinião pública e, portanto, haverá uma pressão e uma tendência para que as ameaças sejam mais reais.”