O patrão fez a última visita às suas empresas: “O senhor Rui merece todas as lágrimas”

Wilson Ledo , em Campo Maior
20 mar 2023, 13:20

Rui Nabeiro saía todos os dias de casa e passava pelas várias empresas do grupo. Na morte, não quis fazer diferente. E, como sempre, os trabalhadores estavam lá para recebê-lo. Desta vez, não lhe puderam pedir nada. Mas, no silêncio da despedida, Campo Maior deseja que, lá para onde o “senhor Rui” for, olhe pela terra. E oriente quem lhe ficou com o império

Falta quase duas horas para o início do cortejo fúnebre. Mas há muito que Campo Maior acordou para se despedir do seu mais ilustre. A vila raiana vestiu-se de faixas. “Obrigado, Sr. Rui”, lê-se nelas. Na simplicidade das letras negras sobre o branco. 

É de negro que se faz a caminhada. Os funcionários deslocam-se para os quatro pontos por onde a urna de Rui Nabeiro vai passar. Quatro empresas de um império nascido humilde. Seguem em bandos. Alguns de farda, outros envergando gravata. 

À volta da igreja matriz pintam-se as casas das ruas em volta. E, no jardim municipal, a estátua do comendador encheu-se de flores e de velas. Na Camelo, uma fotografia de Rui Nabeiro ergue-se por cima da porta. A preto e branco. “É a vida”, desabafam os funcionários, que já não viam o patrão por estas bandas há algum tempo. Agora não vão ver-lhe o rosto, o sorriso rasgado, mas sabem que ele cumpriu a rotina mesmo depois da morte. 

É que Rui Nabeiro tinha o hábito de, após confirmar o preço da matéria-prima, o café, de ir passando pelas várias empresas de que era dono. Para saber como corria o trabalho. Mas também para ouvir os muitos que, sabendo da sua passagem, nelas se juntavam à porta para pedir trabalho. E ele, contam, respondia sempre. Se não fosse logo, seria depois. Mas havia de se arranjar trabalho. 

Na avenida onde morou, com vista para os escritórios centrais, o dispositivo de segurança começa a montar-se. Os vizinhos comentam, entre eles, a derradeira ronda do “senhor Rui”. “De certeza que é só de passagem. Não há cá sentimentos nem nada.” Os passeios começam a fazer-se pequenos. 

Fotografia de Rui Nabeiro ergue-se na Camelo, uma das marcas do grupo (foto Wilson Ledo)

Foi ele 

Maria do Carmo Vaz segue apressada. Tem de ir para a sede da Delta prestar homenagem ao antigo patrão. Mas autoriza-se a parar para conversar com as amigas. “Olhe, eu até nas caçadas servia. Eram centenas de pessoas.” Leva um lenço na mão porque já sabe que é de lágrima fácil. “Nunca me ofendeu. Abraçava-me sempre.” Mas havia dias em que o patrão, quando via que as coisas não iam pelo melhor, também mostrava o seu mau feitio. 

Ela empacotou café durante vários anos. Oito a nove paletes por dia. Falam dos medos de que muito do trabalho passe para Lisboa com a liderança do neto. “Aqui não há mais nada, só a fábrica de borrachas. Isto morreu de estralo em Campo Maior.” Porque Maria do Carmo sabe que o espírito de ajuda de Rui Nabeiro dificilmente se repetirá. Ela leva no corpo a bondade do patrão. Bate com os dedos nos dentes. “Isto, aqui, foi ele”. 

As amigas vão ouvindo, lembrando que há dois tipos de funerais. Os dos pobres, sempre mais rápidos. E os dos ricos, sempre com mais pompa e circunstância. “A rainha de Inglaterra também foi de roda.” Cada terra tem a sua realeza, o seu escolhido por Deus. 

Maria do Carmo Vaz era “empacotadeira” na Delta. Nabeiro ofereceu-lhe o sorriso (foto Wilson Ledo)

Como se a morte não existisse

Distribuem-se lenços de papel em cima da hora. Os aplausos marcam a chegada. Os corpos erguem-se, em sinal de respeito. Na Tecnidelta, apesar do luto, veste-se amarelo e vermelho. É assim a farda de sempre. Porque nestas as cores está o legado que Rui Nabeiro deixa a todo o país. 

O cortejo fúnebre passa rápido. Nos carros, os familiares do fundador da Delta não seguem com os rostos molhados de lágrimas. Abanam ligeiramente a cabeça durante a passagem, agradecendo a todos os que se juntaram para esta homenagem. 

Maria Jacinta Mourato não é da família mas não consegue evitar as lágrimas. “O senhor Rui merecia todas as lágrimas de Campo Maior.” Saiu de casa, a poucos metros daqui. Veio apoiada na bengala. Em casa é que não podia ficar. Ela começou a trabalhar com o “senhor Rui” ainda a Delta não existia. Tinha 13 anos, na Camelo Torrefações. “Ele era o que é hoje”, diz, como se o antigo patrão continuasse tão vivo como quando ela o conheceu.  

Entretanto, Maria Jacinta foi para Moçambique e, ao voltar, Rui Nabeiro voltou a dar-lhe emprego. A quem pedia, ele procurava dar. “Ele nunca dava má esperança.” E isso, numa terra onde Portugal acaba, dada a esquecimentos de quem manda, fazia toda a diferença. 

Minutos antes de o velório abrir à população quase não era possível circular na rua que leva à igreja matriz (foto Wilson Ledo)

O povo vai descendo dos escritórios centrais da Delta rumo ao jardim municipal. Alguns ficam por aqui. Não há espaço para todos junto da igreja matriz. Às 11 em ponto, o “senhor Rui”, que sempre foi dado à pontualidade, chega ao largo. 

A família abraça-se. Homens feitos, como o antigo autarca de Portalegre e secretário de Estado Ricardo Pinheiro, desfazem-se em lágrimas. Na lapela, o símbolo da Delta a rasgar o luto. A urna ergue-se no ar, amparada pelas palmas. A rua que leva à igreja vestida de preto. Falta uma hora para começar a última visita ao “senhor Rui”. O Campo, que sempre foi Maior, hoje é negro. 

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