Anatomia de um golo: Van Basten, Holanda-URSS (25 de junho de 1988)

20 set 2016, 10:25
Van Basten 1988

Ganhar a «guerra» com um vólei para a eternidade

Maradona a driblar meia Inglaterra nos quartos-de-final do Mundial de 1986 num dos solos mais geniais da história do futebol… Todo o Brasil envolvendo a Itália na final do Mundial de 1970, numa sucessão de passes que é uma ode ao jogo coletivo, até ao «pqp» (fiquemo-nos pela abreviatura) de Carlos Alberto… Van Basten junto à linha de cabeceira a selar num dos pontapés mais inacreditáveis a grande conquista holandesa no Euro 88… Alto! A lista continua, mas fiquemo-nos por aqui…

Nesta rubrica, ainda que num texto sobre outro lance, este momento já foi evocado como «o golo». Pelo que neste regresso da «Anatomia», «o golo» merece um momento solene, uma pausa para a contemplação, antes de o recordarmos o contexto de um dos gestos técnicos mais imortais da história escrita dentro das quatro linhas.

Recuemos àquela tarde de 25 de junho de 1988. Às 15h30, no Olympiastadium, começa a final do Campeonato da Europa de 1988. Munique era uma cidade laranja por esses dias. Vinda de uma vitória histórica (já lá iremos) sobre a anfitriã República Federal da Alemanha, a Holanda tentava finalmente chegar a um título importante de seleções, que injustamente havia escapado à geração de Cruijff na década anterior, numa decisão diante da União Soviética, que na fase de grupos havia vencido os neerlandeses com um golo de Rats.

Faltava Cruijff (Rep… Neeskens…), mas no banco continuava Rinus Michels, que havia forjado uma nova «Laranja Mecânica» com peças do calibre de Ronald Koeman e sobretudo do «trio maravilha» do Milan Rijkaard, Gullit ou Van Basten.

É de uma combinação entre Van Basten e Gullit que começa o triunfo na decisão ante a URSS comandada por outro mestre: Valeriy Lobanovskiy. Após um canto, aos 34 minutos, o ponta-de-lança que assistiu o capitão Gullit, que correspondeu à assistência de cabeça com um cabeceamento felino. Golo! Não ainda «o golo». Em vantagem, a Holanda não deixou de procurar o segundo, que mataria o jogo aos 54. Abram alas para «o golo», que na história do futebol bem poderia ficar conhecido como «o remate».

Recorde o golo e poderá ver o resumo clicando aqui:

Tudo começa num mau alívio de Zavarov, que arrisca um passe rasteiro para o meio-campo contrário e permite a interceção de Adri van Tiggelen. O defesa passa o meio-campo e galga metros sem oposição até servir na esquerda Arnold Mühen. E é a partir deste momento que a magia acontece, quando Mühren faz um cruzamento longo que seria para servir Marco van Basten nas costas da defesa soviética, mas que o apanha quase junto à linha de cabeceira sem grande ângulo para rematar. O que viria a acontecer de seguida faz-nos ainda hoje, 28 anos volvidos, abrir-nos a boca de espanto. Dez segundos entre a recuperação de Mühren e o golo do grande «número 9» holandês, estranhamente com a camisola 12 no Euro, surpreendendo o grande Rinat Dasayev. Michels esfregou os olhos. Não acreditava no que havia acabado de assistir.

Van Basten explica: «Estava um pouco cansado nessa segunda parte e quando a bola veio de Mühren pensei ‘OK, posso pará-la e encarar esses defesas todos ou arriscar o remate’. É um daqueles momentos que acontecem. Tenta-se e também é preciso alguma sorte no momento certo. Foi o que aconteceu. Mas na altura, com a excitação de passarmos a vencer por 2-0 e estarmos perto de conquistar o Euro nem me apercebi bem o que tinha feito. Como podem ver pela minha reação nas imagens; é uma cara de ‘o que está a acontecer?’»

O que aconteceu foi um momento de inteligência e inspiração, um desafio à física e a síntese do gesto técnico perfeito. Um vólei para a eternidade que sentenciou a grande conquista holandesa e consagrou, merecidamente, Rinus Michels.

Na verdade, mais até do que na derrota na fase de grupos diante desta mesma URSS, esse título de campeão europeu da Holanda começara a desenhar-se quatro dias antes, em Hamburgo, quando na meia-final, a dois minutos do fim do tempo regulamentar outro golo de Van Basten (que viria a ser o melhor marcador da prova) havia de eliminar a anfitriã e grande rival RFA (2-1).

Após esse triunfo, uma multidão estimada em nove milhões de holandeses saiu às ruas, naquela que foi a maior manifestação no país desde o «Dia da Libertação» na II Guerra Mundial.

Nessa terça-feira à noite, evocou-se a ocupação alemã, entre 1940-1945, comparou-e a Mannschaft à Wehrmacht e abriu-se uma ferida que parecia ter cicatrizado durante décadas, como que corroborando a expressão «futebol é a guerra», cunhada por Rinus Michels.

Multidões em Amesterdão atiravam bicicletas ao ar, recordando o confisco destes veículos história feito sob a ocupação nazi – como pode ler-se no livro «Futebol contra o Inimigo», de Simon Kuper – e um ex-combatente da resistência holandesa disse na TV numa frase que se reproduziu uma e outra vez: «Parece que afinal vencemos a guerra.»

Haviam-na vencido, sim. Quatro dias depois, Van Basten, Gullit e todo o «exército» de Michels haviam de marchar sobre Munique para, depois da grande rival RFA, fazerem tombar a URSS do general Lobanovsky com a mais sublime das bombas. Uma bomba com efeito de vólei.

 

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