A Ucrânia é "um Estado inventado" e a NATO não serve. Se Georgescu (voltar a) ganhar na Roménia, será "o líder mais anti-democrático" da Europa

7 dez 2024, 22:00
Calin Georgescu candidato independente eleições presidenciais Roménia (Alexandru Dobre/AP)

A primeira volta presidencial, disputada há duas semanas, chegou a ser validada pelo Tribunal Constitucional, mas essa decisão foi revertida após os serviços secretos terem divulgado documentos que comprovam que houve interferência eleitoral no TikTok e noutras redes sociais a favor do candidato de extrema-direita. O recém-eleito Governo tem agora de definir o calendário para a repetição dessas eleições, que só deverão ter lugar entre fevereiro e março. E a ameaça Georgescu no país que pertence à UE e à NATO continua a pairar

E num instante, tudo mudou. A segunda volta das contestadas eleições presidenciais na Roménia, que estava marcada para este domingo, já não vai acontecer. Na sexta-feira, a dois dias da votação, o Tribunal Constitucional anulou os resultados do primeiro turno, que tinham firmado a vitória-surpresa de Călin Georgescu, candidato independente com ligações à extrema-direita a quem as sondagens pré-ida às urnas apontavam um resultado de apenas um dígito.

Houve quem, no rescaldo dessa primeira volta, a 24 de novembro, se referisse ao vencedor como uma figura política “relativamente desconhecida”, mas não é bem esse o caso. Em 2022, no mesmo ano em que lançou a sua conta de TikTok (que conta hoje com mais de 400 mil seguidores), Georgescu ganhou fama entre os romenos com uma polémica entrevista ao programa televisivo Realitatea Plus, na qual se disse admirador de Vladimir Putin e defendeu que “a Ucrânia é um Estado inventado”, negando contudo qualquer relação direta com o Kremlin

À data, aquele que descreve como um herói nacional e um “mártir” Ion Antonescu, líder da Roménia durante a II Guerra Mundial condenado à morte pelo seu papel no Holocausto romeno, era tido como o provável candidato presidencial da Aliança para a União dos Romenos (AUR). A relação com o principal partido de extrema-direita romeno azedou por essa altura, levando-o a candidatar-se às presidenciais deste ano como independente. E muito aconteceu desde que a Roménia e a Europa foram surpreendidas pela sua vitória na primeira volta.

Na sequência de uma série de queixas apresentadas contra Georgescu no rescaldo da votação, o Tribunal Constitucional ordenou uma recontagem dos 9,4 milhões de votos depositados nas urnas, que conduziu à validação dos resultados, com o segundo turno eleitoral a ser disputado entre o nacionalista, que conquistou 22,9% dos votos, e a liberal reformista Elena Lasconi, da União para Salvar a Roménia (USR), que angariou 19,2%.

Dias depois, os serviços secretos da Roménia divulgaram documentos a comprovar que Georgescu beneficiou de uma campanha de desinformação no TikTok e noutras redes sociais ao estilo das que a Rússia tem levado a cabo na Ucrânia e, mais recentemente, na Moldova, no contexto de eleições e de um referendo sobre a adesão daquele país à UE.

“Os documentos romenos desclassificados alegam que influenciadores pagos, a par de membros de grupos de extrema-direita e pessoas com ligações ao crime organizado, promoveram a candidatura de Georgescu na internet”, noticiou o Politico na quinta-feira. “Os documentos não afirmam diretamente que a Rússia tentou influenciar as eleições, mas sugerem-no fortemente.”

Um dia depois, os juízes do Supremo reuniram-se para analisar quatro novas queixas que deram entrada naquele tribunal, tomando a decisão de anular os resultados da primeira volta a dois dias da segunda. “O processo para a eleição do Presidente da Roménia vai agora recomeçar na totalidade, com o Governo a cargo de definir uma nova data, bem como um calendário para todas as ações necessárias”, adiantou a instância judicial em comunicado. Logo a seguir, o consultor político Adi Zăbavă explicava à CNN Portugal: “Um novo calendário para as eleições significa que só terão lugar daqui a um par de meses. É agora claro que não vamos ter eleições antes de fevereiro-março.”
 

Milhares de romenos manifestaram-se em Bucareste na quinta à noite em apoio à UE, horas antes de o Tribunal Constitucional anular a primeira volta das presidenciais que deu a vitória a Georgescu, que entre outras coisas prometia acabar com o apoio da Roménia à Ucrânia Foto: Andreea Alexandru/AP

Uma aliança pró-UE

A proximidade de Georgescu à Rússia de Putin é conhecida e parece estar comprovado que beneficiou do apoio do Kremlin no contexto das presidenciais agora anuladas. Mas isso não é a única explicação para a vitória do extremista, explica Zăbavă. “Não pode ser exclusivamente atribuída a operações de influência eleitoral coordenadas pelo Kremlin ou por outros atores internos ou externos, tem também origem numa insatisfação social crónica e numa falta de confiança generalizada na atual classe política.”

Nos últimos anos, "acumularam-se tensões sociais significativas, motivadas pela pandemia, pela guerra na Ucrânia e pela inflação, que agora eclodiram" nas urnas, adianta o especialista. "Além disso, a fraqueza dos outros candidatos, a maioria dos quais obteve menos votos do que os seus respetivos partidos nas legislativas, foi outra razão pela qual Georgescu teve um percurso favorável – foi visto como o verdadeiro candidato antissistema, o que constituiu um fator muito importante para o seu sucesso.”

Uma semana depois da primeira volta, no domingo passado, os eleitores voltaram a ser chamados às urnas para eleições legislativas que injetaram alguma esperança entre romenos progressistas e entre aliados europeus e da NATO, que tem atualmente no país a sua maior base militar. Contabilizados os votos, o PSD (centro-esquerda) de Marcel Ciolacu estacionou nos 22%, à frente dos 18% da AUR (em conjunto com outros dois partidos menores, a extrema-direita obteve 35% dos votos).

No discurso da vitória, o primeiro-ministro invocou “um sinal importante que os romenos estão a enviar à classe política”, para que “continue a desenvolver o país com dinheiro europeu, protegendo ao mesmo tempo a sua identidade, valores nacionais e fé”. Sem maioria absoluta e ainda na iminência da segunda volta presidencial, o PSD acabou por negociar uma coligação pró-UE e euroatlântica com o Partido Nacional Liberal (PNL, centro-direita), que integrava o anterior Governo, e também com a USR de Lasconi, na tentativa de convencer o eleitorado a votar nela contra Georgescu. Mas isto poderá não ter peso quando o processo das presidenciais for retomado.

“O facto de os partidos parlamentares pró-europeus terem assinado um acordo para formar governo é, sem dúvida, um fator importante para o resultado das eleições presidenciais, porque antes de mais dá uma perspetiva às estruturas partidárias locais do PSD e do PNL quanto à manutenção dos seus partidos no poder – um aspeto extremamente importante para os dois partidos que, em conjunto, detêm mais de 2.700 presidentes de câmara num total de menos de 3 mil", refere Zăbavă. "Mas não posso calcular o impacto eleitoral deste acontecimento – e seguramente não sabemos se será suficiente para fazer pender a balança a favor de Lasconi”, adiantava antes da decisão do Constitucional.

Elena Lasconi usou as semanas entre a primeira e a segunda volta para deixar avisos aos eleitores e apelar-lhes a uma "união milagrosa"  contra os "bots russos do TikTok" Foto: Andreea Alexandru/AP

"Sinal de alarme" na Europa

Com o tabuleiro do jogo baralhado, as atenções continuam focadas no papel das redes sociais na vitória de Georgescu, ao final de anos de campanhas de desinformação alimentadas pela Rússia de Putin para influenciar os resultados de várias eleições a nível mundial.

Quando Georgescu venceu a primeira votação, um conjunto de eurodeputados convocou o CEO do TikTok a prestar esclarecimentos em Bruxelas sobre a campanha online do candidato presidencial romeno, alegadamente baseada em centenas de contas falsas que espalharam desinformação pró-Moscovo num país agastado por décadas de corrupção e que, em 2023, ficou em último lugar no Índice de Democracias da revista Economist entre os 27 Estados-membros da União Europeia (UE).

“Apelamos ao diretor executivo do TikTok para que venha falar nesta casa e garanta que a sua plataforma não cometeu qualquer infração ao abrigo do DSA”, disse Valérie Hayer, presidente do grupo liberal Renew Europe, numa conferência de imprensa no final de novembro, referindo-se ao Regulamento dos Serviços Digitais da UE. “A Roménia é um sinal de alarme de que a radicalização e a desinformação podem ocorrer em toda a Europa com consequências nefastas”, acrescentou Hayer, aliada do Presidente francês Emmanuel Macron. 

Na semana seguinte, durante uma audição de executivos da empresa chinesa conduzida pelos eurodeputados, foram zero os esclarecimentos ou garantias de que os processos eleitorais estão a ser protegidos e a desinformação combatida na plataforma. Na reta final da audição parlamentar, num tom visivelmente frustrado, a eurodeputada sueca de centro-direita Arba Kokalari falou por muitos ao declarar: “Muito honestamente, estamos a ficar fartos dos documentos e promessas ocas.”

Vitória de Georgescu na primeira volta das presidenciais na Roménia "é um sinal de alarme" para as "consequências nefastas" das campanhas de desinformação online em toda a Europa, alerta a eurodeputada francesa Válerie Hayer Foto: Jean-Francois Badias/AP

Irregularidades, nacionalismos e teorias da conspiração

Por agora, não é certo se a candidatura de Georgescu vai ser validada pela Comissão Nacional Eleitoral para a repetição das presidenciais. Com milhares de romenos mobilizados em Bucareste numa manifestação pró-UE na quinta à noite, os media locais desdobraram-se em artigos sobre a possibilidade de o mandato de Georgescu vir a ser invalidado caso vencesse na segunda volta, perante suspeitas de irregularidades financeiras na campanha.

"Existe um artigo na lei eleitoral que diz que 'os candidatos declarados eleitos não podem ver os seus mandatos validados se o relatório detalhado das receitas e despesas eleitorais de cada partido político ou candidato independente não tiver sido apresentado nos termos da lei' – e Georgescu declarou 0 RON, a nossa moeda, gastos antes da primeira volta, quando documentos revelam que foram utilizadas somas importantes para a sua campanha", explica Adi Zăbavă.

Pelo contrário, é mais do que certa a proximidade de Georgescu a Putin, que antes e durante a campanha presidencial definiu o Presidente russo como um dos poucos “verdadeiros líderes” mundiais da atualidade e criticou o apoio da Roménia à Ucrânia, prometendo fechar a torneira de apoios aos vizinhos.

Como destaca o analista político romeno à CNN, “existem provas substanciais das suas ligações diretas ao regime russo, não só face a declarações proferidas no passado, mas também através das suas observações mais recentes, em que questiona os benefícios da adesão da Roménia à UE e à NATO”. E esse não é o único fator de risco associado ao nacionalista.

Pouco antes da primeira volta, numa publicação estilo podcast no TikTok que angariou mais de 3,1 milhões de visualizações e mais de 85 mil likes, Georgescu disse que o povo romeno enfrentou a 24 de novembro uma escolha “sobre o lado da História em que vai estar”. E atiçado a elaborar essa ideia, citou o escritor e filósofo alemão Johann Wolfgang von Goethe, dizendo que “o escravo perfeito acredita que é livre” – os romenos vivem “numa prisão” e precisam de acordar para se libertar.

Classificando o feminismo como “um lixo absoluto”, num dos vídeos partilhado na sua conta oficial do TikTok e por inúmeras outras associadas ao seu nome, diz que “só um homem pode fazer isto”, sendo “isto” tornar-se chefe de Estado. E ao jeito de outros populistas, propaga teorias da conspiração sem base factual “há anos”, adianta Zăbavă, que vão desde a aterragem lunar, à composição química da água e às substâncias utilizadas em tratamentos de quimioterapia.

“Para além disso, tem defendido figuras fascistas da História da Roménia e, nesta campanha, foi acompanhado por indivíduos que, através das suas organizações, promovem mensagens e ações legionárias, ou fascistas, a juntar a questões sobre a sua relação histórica com o regime comunista antes de 1989.”

Há ainda a ter em conta as suas propostas económicas, incluindo “abandonar os empréstimos externos, demonizar as multinacionais e propor que todas as empresas sejam detidas a 51% pelo Estado” – o que, “aliado a outros fatores, me leva a afirmar que não pode ser comparado a qualquer outro líder da extrema-direita de qualquer outro país europeu da atualidade”, ressalta o analista.

O primeiro-ministro Marcel Ciolacu, que ficou em terceiro lugar na primeira volta das presidenciais, conquistou uma maioria dos votos nas eleições legislativas de domingo passado e, para combater a popularidade de Georgescu, anunciou uma coligação pró-UE e euro-altântica com outros três partidos moderados, incluindo a USR de Elena Lasconi Foto: Alexandru Dobre/AP

"Não há comparação" com Georgescu

Quando a aliança parlamentar ainda não tinha sido anunciada, nem se antecipava que a corrida presidencial ia voltar à estaca zero, Elena Lasconi invocou uma espécie de reza num derradeiro apelo aos eleitores, lembrando que Moscovo "nunca fez nada de bom" pelos romenos. "Que Deus abençoe a Roménia na UE e na NATO, unidos podemos fazer milagres. Se estivermos unidos, os bots russos no TikTok não podem destruir a nossa democracia."

A grande questão é se o futuro reserva algum milagre, numa altura em que, por um lado, o supremo tribunal pôs um tampão às suspeitas de “guerra híbrida” da Rússia num Estado da NATO, mas, por outro, as autoridades do país ficam sujeitas a acusações de interferência nos processos democráticos, com tudo o que isso pode vir a gerar na sociedade até à próxima ida às urnas.

Como a própria Lasconi disse numa entrevista à rádio romena, horas antes da decisão do Constitucional, “cancelar a primeira eleição leva a um terrível estado de tensão na sociedade” – “os romenos devem poder escolher” quem querem como Presidente.

“É evidente que a democracia romena tem muito a perder neste período, independentemente de quem for Presidente, mas ainda assim há diferenças enormes” entre outros candidatos e Georgescu, “sobretudo no que toca à adesão da Roménia a um caminho democrático”, ressalta Zăbavă.

“Penso que nenhum dos dirigentes de extrema-direita atual que chegaram ao poder ou que se aproximaram do poder em vários países europeus pode ser comparado a Georgescu. Não creio que nenhum país da UE tenha tido um líder tão anti-democrático como Călin Georgescu parece estar preparado para ser.”

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