Roger Schmidt, o engenheiro mecânico que sabe como divertir as pessoas

28 abr 2022, 09:11
Roger Schmidt

O novo treinador do Benfica teve uma carreira muito modesta como jogador e dedicou-se ao estudos. Licenciou-se em Engenharia, trabalhou durante oito anos numa empresa e começou a carreira do fundo do futebol alemão. O jogo ofensivo e a pressão sobre a bola conduziram-no ao topo, com poucos títulos, é certo, mas muita paixão dos adeptos. Homem temperamental, já se envolveu em várias polémicas e houve até um árbitro abandonou um jogo da Liga Alemã por causa dele.

Há dois episódios que são sintomáticos do que é Roger Schmidt. O primeiro leva-nos até 2013, quando no final da época não manteve a tradição de tornar campeão o RB Salzburgo.

Era o primeiro ano do treinador no clube e podia pensar-se que era um escândalo. Sobretudo quando se comparava o orçamento do milionário RB Salzburgo com o dos rivais. A verdade, porém, é que na última jornada as bancadas encheram-se de tarjas ‘Fica Schmidt’.

Mais tarde, em 2019, o alemão foi despedido do Beijing Guoan e deixou o país apenas com uma Taça da China conquistada. O que era pouco no clube mais popular de Pequim.

Mais uma vez os adeptos ficaram do lado dele e o aeroporto da capital chinesa encheu-se com milhares de pessoas que se despediram do treinador em completo estado de euforia.

Em ambos os casos, o insucesso desportivo foi atirado para segundo plano, em benefício de uma coisa que os adeptos acharam mais importante: a capacidade de se divertirem.

É essa a principal marca de de Roger Schmidt, o alemão que na próxima época vai orientar o Benfica e que toda a gente coloca na linha de treinadores como Jurgen Klopp e Julian Nagelsmann.

O esloveno Kevin Kampl, que o Salzburgo lançou para a elite do futebol, chegou a comparar o futebol de Schmidt com o gegenpressing do Borussia Dortmund, o que foi corroborado por Pep Guardiola após um jogo de pré-época. «Nunca defrontei uma equipa na minha carreira que jogasse com uma intensidade tão alta quanto o RB Salzburgo», disse.

Roger Schmidt sorria perante estes elogios. «Quem os ouvir deve ficar a pensar que os nossos jogos são corridas de sprint», ironizou.

Seguramente feliz por dentro.

O treinador de 55 anos sabe que foi um longo caminho que teve de percorrer para chegar à elite. Nascido na pequena e rural cidade de Kierspe, uma localidade com quinze mil habitantes, construiu uma carreira de jogador semiprofissional sempre em clubes modestos da região.

O mais alto que chegou foi ao Paderborn, na terceira divisão alemã. Nesses anos aproveitou o dinheiro que ia ganhando no futebol para pagar os estudos e licenciou-se em Engenharia Mecânica, com especialização em tecnologia dos plásticos, na Universidade de Paderborn.

«Gostei de jogar e estudar ao mesmo tempo. Se houver vontade, isso ainda é possível hoje em dia. Normalmente há treino uma vez por dia, por isso sobra tempo suficiente para estudar. Aconselho todos os jovens jogadores que queiram a continuar os seus estudos.»

Roger Schmidt nos tempos de jogador com o número 10 do SC Verl

Depois de concluída a licenciatura, começou a trabalhar como engenheiro de projeto na empresa Benteler, que produz peças para automóveis e tem uma fábrica em Paderborn.

Jogou até aos 37 anos e foi dividindo os relvados com o trabalho de engenheiro, que o manteve na Benteler durante oito anos, primeiro como engenheiro de projeto, mais tarde promovido a engenheiro de gestão da qualidade. Até que em 2004 surgiu a hipótese de ser jogador-treinador do modesto SC Delbruck, na liga regional correspondente à sexta e última divisão do futebol alemão.

Nessa época Roger Schmidt teve de se dividir em quatro: pai e marido, engenheiro, jogador e treinador. Felizmente para ele foi só um ano e no final da temporada pendurou as chuteiras. Ficou apenas como treinador por mais duas épocas e em 2007 tomou a decisão de abandonar o futebol.

«Eu só queria ser treinador durante uma época, acabei por ficar três, mas o futebol e o trabalho consumiam muito do meu tempo. Tinha uma família jovem e não podia continuar a fazer isso com eles. Estava decidido a deixar o futebol, mas apareceu o interesse do Prussia Munster e aquela teimosia em querer experimentar. Acabei por deixar o meu emprego como engenheiro mecânico.»

O Prussia Munster é um histórico da Alemanha, um dos clubes fundadores da Bundesliga, e apesar de na altura estar na quinta divisão, Roger Schmidt não teve coragem de lhe dizer que não.

«O que teria acontecido se tivesse ficado na Benteler? Não sei, não faço ideia. Nem penso nisso. A minha vida teria sido diferente, seguramente. Talvez tivesse chegado à posição de administrador, mas não era previsível porque havia pessoas muito mais experientes do que eu na empresa.»

Roger Schmidt despediu-se então da Benteler e assinou pelo Prussia Munster, mas com a garantia que, se fosse demitido, o clube lhe arranjava um emprego como engenheiro numa empresa da cidade. Ficou três anos, subiu de divisão e quando foi demitido já não quis ser engenheiro.

Roger Schmidt quando era treinador do Prussia Munster

Aproveitou o tempo para tirar o quarto nível do curso de treinador, que concluiu com a melhor nota da turma, e foi convidado pelo Padeborn. Subiu o clube à II Liga alemã e recebeu uma proposta que mudou a vida dele.

Estávamos em 2012 e o RB Salzburgo tinha contratado Ralf Rangnick para diretor desportivo. O alemão queria mudar o clube, que era sobretudo um gastador, que ganhava quase sempre porque tinha mais dinheiro do que os outros. A ideia de Ralf Rangnick era criar uma fábrica de talentos, que projetasse jogadores jovens, jogasse um futebol atrativo, ganhasse e tivesse lucro.

«O Salzburgo estava a ganhar a Bundesliga austríaca de forma bastante consistente, mas não era uma equipa particularmente empolgante. E o único jogador que eles tinham vendido por um valor relevante foi Marc Janko para o Twente por sete milhões de euros», recordou Rangnick.

Para mudar isto, foi à II Liga alemã contratar um treinador desconhecido. Roger Schmidt, precisamente. Os dois juntos criaram as bases do que é hoje o RB Salzburgo, com metodologias de treino inovadoras, um centro de pesquisa e a exploração da análise de dados aplicada ao futebol.

Roger Schmidt criou então uma equipa de futebol ultra-ofensivo, com uma pressão constante na perda da bola, velocidade na chegada ao ataque e linhas muito subidas no terreno.

Rui Mota é um português que trabalhou com Roger Schmidt no Beijing Guoan e diz que essas características são a marca de água do futebol do novo treinador encarnado.

«É o futebol típico da escola alemã. É um futebol vertiginoso, um futebol sempre ao ataque, sempre em busca do golo. Procura constantemente o desequilíbrio do adversário e a procura do espaço. Uma característica muito forte do Roger Schmidt é a reação à perda da bola, que ele quer que seja muito forte, porque sente que é aí que pode apanhar o adversário mais desorganizado.»

Roger Schmidt e Ralf Rangnick na apresentação do treinador no RB Salzburgo

O próprio Roger Schmidt é aliás muito claro em relação a isso.

«Existem diferentes pontos de vista, mas eu quero manter o nosso estilo e jogar de uma forma dominante sempre. Há outras equipas que mudam a sua abordagem de acordo com o adversário todas as semanas. A minha equipa deve ter uma identidade própria e não depender do adversário. Nem mesmo se for o Bayern Munique. O adversário sabe sempre como nós jogamos? Sim, é verdade, mas nós aceitamos isso», refere.

«Eu adoro aquele futebol que é intenso durante os noventa minutos e há muitas coisas a acontecer. Queremos ter o nosso destino nas nossas próprias mãos e não ficar à mercê do que o adversário pode fazer quando tem a bola. Uma equipa que se deixa dominar está sempre sujeita a que o adversário lhe faça alguma coisa. Por isso queremos ter a bola e encontrar soluções para a levar para a área adversária o mais rápido possível. Também gosto da defesa subida e orientada para a bola. Quero forçar o nosso jogo no adversário.»

Foi esta vertigem pelo futebol ofensivo que trouxe os adeptos do RB Salzburgo de volta ao clube. Inicialmente revoltados com o que a Red Bull tinha feito ao antigo Salzburgo, o público deixoum-se encantar pela equipa de Roger Schmidt. É verdade que não foi campeã no primeiro ano, mas mesmo assim as pessoas ficaram ao lado do alemão. Na segunda época ganhou e bateu recordes.

Foi notícia no RB Salzburgo, aliás, a história de que, quando uma equipa nos treinos não recuperava a bola em cinco segundos, tocava uma sirene. Uma forma de pressionar os jogadores a recuperar rapidamente a posse, porque o futebol alemão defende que é nos sete segundos seguintes que surgem mais golos.

«No Beijing Guoan não existia uma sirene, mas ele apitava quando os jogadores não recuperavam a posse em cinco segundos. Para além disso havia muitos exercícios em que a equipa tinha de recuperar a bola nesses tais cinco segundos e até mesmo nos exercícios lúdicos havia mecanismos para aumentar essa capacidade de recuperar rapidamente», refere Rui Mota.

O bom futebol apresentado no RB Salzburgo levou-no de volta à Alemanha para orientar um dos grandes do país: o Bayer Leverkusen. Na primeira época fez um quarto lugar, na segunda fez um terceiro e na terceira foi despedido após ser goleado pelo Dortmund... e elogiar os jogadores.

Pelo meio viveu várias controvérsias que fizeram notícia em todo o mundo. Acima de todas elas, aquela que levou um árbitro a abandonar o relvado em protesto contra ele.

Aconteceu durante um clássico contra o Borussia Dortmund. Roger Schmidt foi expulso após o golo adversário, recusou-se a sair e o árbitro Felix Zwayer mandou toda a gente para os balneários. Ao fim de nove minutos, o treinador foi para as bancadas e as equipas regressaram ao relvado.

Schmidt foi então castigado com cinco jogos de suspensão, embora dois tivessem pena suspensa. Oito meses depois envolveu-se numa discussão feia com Julian Nagelsmann, foi expulso pelo árbitro e os dois jogos de pena suspensa tornaram-se efetivos.

Mas é assim Roger Schmidt, um treinador temperamental, que reage mal a perguntas críticas de jornalistas e se envolve frequentemente em discussões com treinadores. Algumas das quais são provocadas pelo jogo muito defensivo das equipas adversárias.

«Este não é o meu futebol», justifica.

 

 

Em contrapartida, toda a gente garante que sabe criar excelentes relações com os jogadores da sua equipa. Rui Mota diz, a esse propósito, que o alemão «é um treinador moderno, com exercícios muito criativos e uma forte componente mental».

«Grande parte da sua preocupação passa por estar próximo dos jogadores, até para perceber se existem problemas na vida pessoal que possam influenciar o rendimento.»

O próprio Roger Schmidt não o esconde.

«Os jogadores podem falar comigo sobre qualquer coisa. Eu entendo tudo. E vamos encontrar soluções para tudo. Mas quero algo em troca do meu empenho: cem por cento de vontade de evoluir e cem por cento de vontade de tudo fazer para que a equipa seja bem-sucedida. Nesse aspeto não faço concessões.»

Ora é isso que nos remete para outra característica marcante em Roger Schmidt: a enorme exigência física que impõe aos atletas. Para jogar o futebol que ele quer, é necessário correr muito e o alemão quer que os seus jogadores estejam sempre próximos da bola.

«A componente física está sempre presente nos treinos e ele faz muitos exercícios específicos para explorar esse tipo de futebol. Nós em Portugal, de há uns anos para cá, também fazemos esse trabalho físico, mas de uma forma mais disfarçada, que muitas vezes os jogadores nem percebem. O Roger Schmidt tem a escola alemã e tem esse trabalho mais vincado», refere Rui Mota.

Essa exigência valeu-lhe algumas críticas até na Alemanha. Houve relatos de que os jogadores o consideravam demasiado duro e que se queixavam do stress que ele impõe nas suas equipas.

«É claro que ouvíamos essas queixas dos jogadores de tempos em tempos, mas é normal. O Roger Schmidt tem uma visão clara de como quer que o futebol seja jogado e isso exige que todos em campo deem tudo de si», referiu o diretor desportivo do Paderborn, Michael Born.

«Ele está convencido do seu conceito de futebol e, se isso for questionado, fica furioso», acrescentou Rudi Voller, diretor do Bayer Leverkusen, ao Der Spiegel.

O treinador, porém, tem uma ideia completamente diferente.

«O futebol é uma coisa maravilhosa. Digo aos meus jogadores: são 10 da manhã, o relvado acabou de ser cortado, as bolas estão cheias, tu estás em excelente forma física. Existe algo melhor do que isto? Ou preferias estar agora num escritório ou numa fábrica?»

É este compromisso com o futebol e com o espetáculo que encanta os adeptos.

Isso e uma rara capacidade de projetar jogadores: nomes como Sadio Mané, Kai Havertz, Son Heung-min, Hakan Çalhanoglu, Kevin Kamp, Martin Hinteregger, Julian Brandt, Kevin Volland, Cody Gakpo, Noni Madueke ou Ibrahim Sangaré.

Olhando para a carreira dele, fica é certo a ideia que Roger Schimdt ganhou menos do que devia. Afinal de contas, e depois de RB Salzbugo e Bayer Leverkusen ainda passou por Beijing Guoan e PSV. Nesta altura, porém, o currículo dá conta apenas de um título de campeão austríaco, de uma Taça da Áustria, de uma Taça da China e de uma Taça da Holanda.

É realmente pouco, mas em compensação as equipas dele costumam oferecer uma e outra vez os melhores espetáculos. Podem nem sempre chegar onde querem, portanto, mas a viagem costuma ser divertida.

Palavra de Roger Schmidt.

(artigo originalmente publicado às 23h55 de 27-04-2022)

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