EUA: Poderão as mulheres que utilizam calendários menstruais digitais vir a ser denunciadas pelos seus telemóveis se tentarem abortar?

26 jun 2022, 12:48
Smartphone

As mulheres que tentem abortar em Estados que criminalizam a interrupção voluntária da gravidez poderão vir a ser identificadas e denunciadas pelos próprios telemóveis

O revogar do direito ao aborto, determinado esta sexta-feira pelo Supremo Tribunal dos Estados Unidos, ultrapassou as fronteiras do país e abriu um debate sobre a autonomia corporal das mulheres.

Grupos ativistas e feministas alargam agora o foco da discussão e expressam preocupação com a segurança e privacidade das mulheres que optem por interromper voluntariamente a gravidez. É que a ameaça pode partir do utensílio mais indispensável à vida moderna: o telemóvel.

Muito mais do que uma ferramenta de comunicação, este é um dispositivo que permite a recolha de dados pessoais e identificadores do utilizador, muitas vezes de forma ilícita e abusiva. São cada vez mais comuns as denúncias de partilha e venda de dados a terceiros por parte de grupos empresariais como a Meta, dona do Facebook e do Instagram. Mas não só: a pegada digital e a função de localização do telemóvel, mesmo que manualmente desativada, são frequentemente armazenadas pelo sistema operativo e poderão, inclusive, ser divulgadas à polícia no âmbito de investigações criminais.

Numa altura em que alguns Estados falam em sanções para as norte-americanas que tentem reclamar o direito à autonomia reprodutiva, poderá o telemóvel denunciá-las e contribuir para a sua criminalização?

Os calendários menstruais digitais. Aplicações que tudo sabem (e tudo podem partilhar)

As aplicações de controlo do ciclo menstrual são muito populares. Flo e Clue são duas das mais utilizadas, contabilizando, respetivamente, 43 milhões e 12 milhões de utilizadoras em todo o mundo, e gerem-se por uma premissa simples: um calendário menstrual virtual, com base nos dados inseridos.

Partindo da data das últimas menstruações, o sistema de inteligência artificial calcula a fase do ciclo menstrual e a data prevista de ovulação. É também possível monitorizar sintomas físicos e emocionais e sincronizar outras aplicações de saúde e bem-estar, como o Google Fit, que fornecem dados pormenorizados sobre o quotidiano da utilizadora, desde o peso e padrão de sono à dieta e quantidade de água ingerida.

As informações partilhadas nestas aplicações são profundamente pessoais - e também reveladoras. O registo do término da menstruação, do começo de uma gravidez e da posterior interrupção podem permitir que a aplicação reconheça um aborto, espontâneo ou deliberado.

As políticas de privacidade garantem, em teoria, a total confidencialidade destes dados, mas tornam-se menos rígidas se estiver em causa um crime ou uma investigação por parte das autoridades, como o tráfico infantil. Ou, no seguimento da decisão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, a interrupção de uma gravidez. 

"A situação torna-se realmente menos clara se falarmos sobre o aborto", explica Andrea Ford, investigadora da Universidade de Edimburgo, em declarações à rede de rádios norte-americana NPR. "Se for ilegal em certos países, será que isto transcende o direito à privacidade que está explícito nos contratos, da mesma forma que acontece com o tráfico infantil?" 

As respostas são, por enquanto, escassas. Ainda assim, os factos disponíveis ajudam a conjeturar aquele que poderá vir a ser o futuro das mulheres em alguns Estados norte-americanos - e não é otimista.

A aplicação Flo já tinha causado controvérsia em 2019, quando uma investigação do Wall Street Journal revelou que os dados inseridos pelas utilizadoras - como o período fértil ou a intenção de engravidar - eram partilhados com o Facebook. A aplicação chegou a um acordo com a Comissão Federal de Comércio e colaborou na revisão e reforço das políticas de privacidades internas, tendo posteriormente garantido em comunicado que este acordo não significava "a admissão de qualquer ato ilícito". Pelo contrário, a empresa alega ter optado pelo acordo para "evitar o tempo e a despesa do litígio" e "ultrapassar de vez este assunto".

Já a Clue, gerida por uma empresa europeia, esclarece que os dados das utilizadoras são protegidos pelo Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia. Num comunicado divulgado na quinta-feira, um dia antes da reavaliação do Roe vs. Wade, a aplicação reforçou: "os utilizadores são os nossos clientes, mais ninguém". 

Apesar das garantias das aplicações, os especialistas mostram-se céticos. "Qualquer aplicação que recolha informação sensível sobre a saúde ou o corpo dos utilizadores deve ser analisada com escrutínio reforçado", defende Evan Green, diretor do grupo de direitos digitais Fight For The Future. Outros especialistas, como Jason Hong, um professor da Escola de Informática da Universidade de Carnegie Mellon, esclarecem ainda que esta é uma questão complexa que rapidamente poderá ultrapassar a aplicação em questão - e até o próprio telemóvel do utilizador. 

"É realmente difícil compreender como os dados são usados e onde estão a ser partilhados, porque podem ser vendidos a terceiros, que por sua vez revendem a informação a outros terceiros", explica Hong. "Os nossos dados podem já estar espalhados por toda a rede. É muito difícil acompanhar este processo". 

Como assegurar a privacidade dos dados numa era digital? 

As aplicações de calendários digitais não são as únicas ameaças à privacidade das mulheres - e dos cibernautas, no geral.

A função de "localizador", presente em todos os telemóveis contemporâneos, permite o acompanhamento em tempo real do indivíduo e a criação de um histórico detalhado dos sítios visitados e do tempo de permanência nos mesmos. Esta função pode continuar a recolher informação mesmo que desativada, através da atividade na Internet e em aplicações que exijam o conhecimento da localização do utilizador (como acontece, aliás, com a vasta maioria das redes sociais e aplicações de jogos). 

Se uma paciente se dirigir, por qualquer motivo, a uma clínica que proporcione serviços de aborto, esta informação poderá ser recolhida pelo telemóvel e partilhada com empresas como a Meta. O que acontece a esta informação é ainda incerto, mas gera preocupação entre os especialistas. 

"Qualquer pessoa pode obter esta informação. Basta comprá-la a uma empresa que já a tenha recolhido", diz Lydia X. Z. Brown, conselheira política do Projeto de Privacidade e Dados no Centro para a Democracia e Tecnologia.

Uma vez adquirida, a informação pode ser usada por ativistas com as mais diversas inclinações políticas e ideológicas. Alguns grupos poderão fazer um levantamento da localização destas mulheres para compreender as zonas e comunidades com mais necessidade de recursos; outros poderão tentar denunciar e confrontar as pacientes que procuram estes serviços e as clínicas que continuam, à margem da lei, a prestá-los.

Perante este cenário de insegurança digital, será que a solução passa, forçosamente, por desinstalar as aplicações mais invasivas? Depende da localização geográfica e das leis vigentes, dizem os especialistas.

"Se eu vivesse num Estado onde o aborto é criminalizado, não usaria um calendário menstrual - isso é certo", admite Andrea Ford. Mas não é preciso descartar por completo a Internet. Se as aplicações grátis são mais suscetíveis a riscos e brechas de privacidade, algumas aplicações pagas pelo utilizador diminuem a probabilidade de recolha e partilha de informação. A leitura dos termos de utilização e condições de serviço, tantas vezes descurada, é também essencial: é nos longos textos de letras minúsculas que se encontram, quase imperceptíveis, as explicações (resumidas) de como os dados serão utilizados pela empresa.

Não obstante, a opção mais segura de monitorização do ciclo menstrual continua a ser a tradicional. As regras de uso, segurança e privacidade das aplicações estão sempre sujeitas a alterações e às leis em vigor em cada país - por sua vez, também estas passíveis de mudanças e retrocessos inesperados, como provado na última sexta-feira.

Numa realidade em que os direitos reprodutivos são ainda motivo de debate e em que o mundo virtual é controlado por empresas multimilionárias, a solução mais sensata parece ser o regresso aos calendários a papel e caneta.

E.U.A.

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