A história de Rita Piçarra causa inveja a uns e serve de inspiração a outros. Diz com orgulho que se “reformou” aos 44 anos, depois de quase 20 anos a trabalhar numa das maiores empresas do mundo. Quem a quer ver agora, basta ir à praia de Carcavelos ou da Costa da Caparica, onde treina todos os dias, faz surf e pratica skate
Rita Piçarra nasceu numa “família humilde” e tornou-se na diretora financeira da Microsoft Portugal. Fez planos para se reformar cedo e poder dedicar-se à família. Diz que “comprou o próprio tempo de volta” e que vive agora a “segunda vida”. A gestora financeira diz que se “reformou”, mas, na verdade, deixou de depender do salário que a empresa lhe pagava ao fim do mês. Não recebe, claro, reforma da Segurança Social e vive dos rendimentos dos ativos mobiliários e imobiliários. Agora dedica-se à própria empresa, ao surf e ao skate.
Faz, numa conversa com a CNN Portugal, uma viagem ao passado e ensina-nos que poupar não é só pôr o dinheiro no banco, num depósito a prazo. Aos 45 anos e “reformada” há um ano, faz palestras, escreve livros como "A Vida Não Pode Esperar", em que dá ensinamentos sobre gestão de finanças pessoais, grava podcasts e participa em eventos solidários. Faz só o que gosta e goza da liberdade de poder dizer “não”.
Rita, vamos fazer aqui uma viagem às origens. Nasceu na Serra das Minas, em Sintra, numa família humilde. Como é que foi a sua infância?
Era uma família muito humilde, mas muito unida. Isso foi muito importante no meu crescimento. Era uma família que privilegiava muito o outdoor, o estarmos fora. Fazíamos muito campismo. Podia não ser rica em dinheiro, mas era rica de amor, de carinho, de estarmos juntos, de perceber aquilo que realmente era importante na vida.
Foi a primeira pessoa da família a ir para a faculdade. Como é que isso foi encarado?
Os meus pais não tiveram a possibilidade [de ir para a faculdade], os meus avós também não, a minha irmã, que é mais velha de dois anos e meio, também não foi, e foi sempre uma coisa muito esperada de mim, porque sempre fui muito boa aluna no secundário. Havia muita expectativa dos meus pais, perante o meu desempenho, de seguir uma via mais académica e de conseguir o que os meus pais chamavam de um emprego estável, com futuro, que me desse dinheiro para ter uma vida mais confortável.
E como é que foi parar à área financeira?
Começou tudo no 10.º ano, quando tive um professor de Técnicas de Organização Empresarial, em que tive muito boa nota, e ele disse-me ‘oh Rita, se gostas tanto disto, devias ir para a auditoria. Vais trabalhar muito, mas também vais ganhar muito dinheiro’. Aquelas palavras estavam muito alinhadas com o que os meus pais me diziam em casa.
Aí começou o primeiro desafio, porque pensava que para ser auditora tinha de tirar auditoria como curso na faculdade, o que mais tarde aprendi que não é verdade. Mas como não tinha ninguém para me ensinar diferente, fui procurar a única faculdade em Lisboa que dá uma licenciatura em auditoria, que é o ISCAL (Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Lisboa).
Vinha de muito boas notas no secundário. Era um peixe grande num aquário pequenino. E, de repente, quando entro na faculdade, a primeira nota do exame que tive - Introdução à Economia - foi três. Em 20, tive três. Foi muito difícil perceber que se calhar afinal não era assim tão boa como as pessoas achavam. Lembro-me de chorar imenso e lembro-me da minha mãe me dizer ‘tu consegues, vai ser com certeza diferente daquilo que estás habituada, se calhar vais ter de estudar mais, mas tu consegues’. Portanto, comecei a estudar bastante. As memórias que tenho dessa altura é de estar na varanda do meu quarto, um frio dos diabos, e estar na secretária a estudar com mantas nas pernas as luvas nas mãos. Mudei a minha mentalidade, fui bem-sucedida e concluí a faculdade.
E como é que chegou ao topo de uma das maiores empresas do mundo?
Quando saí da faculdade fiz o que o professor me disse para fazer: candidatei-me às chamadas Big Five. Consegui entrar na Deloitte. Fui muito bem-sucedida na Deloitte, fui sempre sendo promovida. Entrei como assistente de primeiro ano, depois assistente de segundo ano, sénior, sénior de segundo ano… mas quando vi o Fehér morrer em direto na televisão, vítima de um ataque cardíaco… foi muito impactante perceber que um jogador de futebol profissional, que tem tudo para estar saudável, de repente, a vida pode acabar, não é? Percebi que tinha de fazer mais do que estar a trabalhar só para ganhar dinheiro… não conseguia estar no aniversário dos meus pais, não conseguia estar com os meus amigos, não tinha namorado, sentia-me muito sozinha e percebi que aquilo não era para mim.
Decidi mandar imensos currículos, incluindo para a Microsoft, e consegui entrar. Foi um processo muito duro, muito difícil, mas consegui e fui a pessoa escolhida.
Dentro da Microsoft, como é que cheguei ao topo? Planei. Essa é a resposta mais acertada. Fiz um plano de carreira e levei-o à letra. Consegui perceber quais eram as competências que tinha de desenvolver para ser a CFO [responsável financeira] da Microsoft Portugal. Porque queria ser a CFO do meu país. Optei por fazer uma carreira internacional e estive 12 anos fora. Fui para Seattle, depois para Paris, para o Brasil, para Miami, para Madrid…Mas quis sempre regressar a casa, queria ser CFO no meu país.
Era feliz?
Muito feliz. Muito feliz.
Era como nas Olimpíadas: Estás a treinar durante anos e anos a fio, para depois, naquele momento, ganhares ouro. Ganhei a minha posição. E fui muito, muito, muito feliz durante cinco anos em que fiz aquela posição na Microsoft.
Foi bastante diferente do que estava à espera. Foi completamente diferente regressar a Portugal. Sempre que mudava de país, preparava-me para a cultura do novo país, preparava-me para a maneira como as pessoas enfrentam os problemas no país. E quando regressei a Portugal, pensei que estava a regressar ao meu país e que não precisava de adaptação. E foi um choque perceber que eu tinha mudado e já não era só totalmente portuguesa.
E o país também tinha mudado…
E o país também tinha mudado. Tinha acabado de sair de uma intervenção da troika, tinha acabado de passar por muita coisa muito difícil, que tinha marcado profundamente as pessoas e que eu não tinha vivido porque estava fora.
E o que é que a Rita trouxe à Microsoft Portugal?
Tive o poder de mudar o rumo da Microsoft Portugal, principalmente em termos de cultura. Trazer, por exemplo, o GLEAM chapter, que não existia, pude criar o grupo de sustentabilidade em Portugal, que também não existia… Durante o período que estive lá, a Microssoft Portugal mais do que triplicou o número de colaboradores. Quando uma empresa cresce neste nível, tens de alimentar a cultura. Para contratar a um ritmo alucinante, principalmente durante a pandemia, tens de conseguir manter as pessoas coesas, envolvidas com algo que as faça pertencer a uma Microsoft.
Ser parte do Conselho de Administração e poder fazer parte destas decisões, poder fazer a diferença nos colaboradores e na vida que eles têm dentro da Microsoft, para mim foi muito gratificante.
Se era feliz, o que é que a levou a decidir reformar-se tão cedo?
Nem tudo são rosas na minha vida. Entrei na Microsoft em 2005 e, em 2006, o meu pai faleceu, vítima de um ataque cardíaco, a uma sexta-feira 13. Ainda hoje, não sendo supersticiosa, não gosto de sextas-feiras 13. Quando o meu pai faleceu do nada, de um dia para o outro, percebi que pode acontecer muito mais perto de nós. O meu pai tinha 54 anos. Comecei a pensar ‘e se me acontecer o mesmo? E se estou a trabalhar feita louca para concretizar estes objetivos profissionais, agora que estou casada, tenho uma filha… mas e se isto tudo for finito aos 50 anos ou aos 54 anos?’.
Portanto, decidi que os 50 anos eram o meu deadline. Ia trabalhar, ia concretizar os meus objetivos profissionais até aos 50, mas, a partir daí, se fosse como o meu pai, já só tinha mais quatro anos. E a minha mãe depois morreu aos 59. Portanto, se fizesse a média, vá, tinha uns seis anos para fazer tudo aquilo que as outras pessoas não têm tempo para fazer, que os meus pais não tiveram tempo de fazer, de estar com os netos (o meu sobrinho tinha seis dias quando o meu pai morreu), de viajar, de passar tempo com a família.
Mas isso chegou bastante mais cedo do que aos 50. Mais cedo 6 anos…
Sim, sou dos planos, não é? Sou superorganizada, super metódica… fiz um plano de carreira, de que falo no primeiro capítulo do meu livro, e, a par com ele, também fiz um plano financeiro (que é o capítulo três do livro).
Os meus pais sempre me ensinaram a poupar. Percebia a importância do dinheiro e percebia a importância de poupar. Mas a realidade é que, se nós pouparmos e pusermos as nossas poupanças num depósito a prazo, a inflação e o tempo comem-nos o dinheiro. Se pensarmos que a inflação está em torno de 5% e a taxa de juros que os bancos normalmente estão a dar por um depósito a prazo está em torno de 2% (e estou a ser simpática), estamos a perder 3% todos os anos.
Ajudou muito ter estado nos Estados Unidos e perceber que 40% da população norte-americana investe na Bolsa. Em Portugal, se falares em investir na Bolsa, dizem logo que isso é um jogo de sorte e azar, isso é a mesma coisa que ir para o casino. Mas não, estamos a comprar partes da empresa, estamos a ser donos de empresas, numa quantidade ínfima, mas migalhinhas também são pão.
Embora fosse financeira, não percebia nada de Bolsa, não percebia a realidade destas transações. Portanto, tive de ir aprender sobre o mercado bolsista e comecei a investir, primeiro na empresa que conhecia melhor, claro, na Microsoft, e, depois, outras empresas. Fui lendo e fui aprendendo e o facto de ter investido o meu dinheiro permitiu-me ter uma rentabilidade muito maior do que se o tivesse colocado num depósito.
E foi isso que lhe permitiu então reformar-se aos 44 anos…
Quando entramos na faculdade, estudamos muito e depois saímos e vendemos o nosso tempo a uma empresa, a troco de um salário. O que fiz foi comprar o meu tempo de volta. Tenho dinheiro dos meus investimentos, de tudo aquilo que comprei. Tenho rendimentos suficientes para não necessitar do salário de uma empresa. O que fiz foi dizer ‘olha, Microsoft, obrigada! Muito obrigada por estes 18 anos, por ter alcançado o meu trabalho de sonho, mas já não quero o salário da Microsoft. Quero o meu tempo de volta. Aquilo que vendi aos 22 anos, quando comecei a trabalhar, quero-o de volta, para ter a liberdade de escolha do que quero fazer’.
O que fez está ao alcance de qualquer um? Quem ganha o salário mínimo, por exemplo, pode preparar-se e reformar-se 20 anos antes da idade legal para o fazer?
O meu primeiro salário foi menos de mil euros. O que tive de fazer foi crescer na carreira para ganhar cada vez mais dinheiro e depois investir. Se a expectativa das pessoas é reformar-se cedo a ganhar mil euros e não crescer além dos mil euros… Diria que é extremamente difícil. O primeiro capítulo do meu livro fala sobre a ambição de querermos primeiro ganhar mais do que os mil euros, para depois começarmos a poupar cada vez mais e com essa poupança fazermos os investimentos necessários para chegarmos lá.
É necessário ter ambição.
É um tabu em Portugal falar-se da ambição. As pessoas normalmente associam muito a ganância, a roubar, a fazer alguma trapaça. E a ambição é querermos ser cada dia melhores, é querermos alcançar os nossos objetivos, é estarmos cada dia mais à frente. Falta ambição, muitas vezes, às pessoas de irem além desses mil euros. Para isso, muitas vezes, não é preciso crescer na sua organização. Pode ser também ter um segundo trabalho. Os meus pais tinham um segundo trabalho. Durante muitos anos tive um segundo trabalho, tive de ir gerindo o imobiliário e as ações e tinha o meu trabalho também.
Portanto, tem de haver uma ambição das pessoas quererem ter mais do que os mil euros, de quererem armazenar mais dinheiro, para depois sim estarem na segunda componente, que é a poupança e o investimento.
Se eu lhe pedisse alguns conselhos para me reformar mais cedo, que conselhos me daria?
Primeiro, ter controle sobre as suas finanças. A realidade é que trabalhamos 40 ou mais horas por semana, para ganhar um salário, e depois não dedicamos uma única hora que seja a perceber para onde é que o salário está a ir. Por exemplo, se lhe perguntar quanto gastou em alimentação no mês passado, sabe?
Não.
Você e 90% dos portugueses. Como é que passamos 40 horas da semana a ganhar dinheiro e depois não dedicamos um único bocadinho a perceber para onde é que o dinheiro está a ir? É necessário ter controle das nossas finanças agora para termos um futuro mais confortável.
Recomendação número dois: agora que já sei para onde é que o meu dinheiro está a ir, tenho de perceber, no futuro, onde é que posso cortar, onde é que posso fazer mudanças para conseguir poupar mais dinheiro. Renegociar o meu crédito à habitação, renegociar as telecomunicações… renegociar ou mudar a estrutura dos meus gastos para conseguir poupar mais dinheiro. Não consigo…. Então, se calhar, tenho de ter um segundo trabalho, tenho de fazer crescer mais o meu rendimento, porque os custos já estão magrinhos. O que é que posso fazer? Posso começar um hobby que me dê rendimento? Posso tentar evoluir na minha carreira? Devo voltar para a faculdade, para ganhar novas competências e conseguir ser promovido? O que é que posso fazer de diferente?
Recomendação número três: quando já temos isto estabilizado e conseguimos perceber o nosso nível de poupança (que deveria ser pelo menos 20%), o que é que faço com este dinheiro? Primeira coisa urgente que é preciso se fazer é um fundo de emergência, dinheiro que deve ser seis vezes os nossos gastos mensais. Já sabe quanto gasta, portanto, já consegue fazer este cálculo: seis vezes os seus gastos mentais para uma emergência
O quarto passo: Podemos começar a fazer investimentos. A primeira coisa que temos de aprender é que tipos de investimentos existem. Temos de investir no nosso próprio conhecimento. Não é irmos ao banco e fazer exatamente o que o senhor do banco diz. É estar informado, ouvir podcasts, procurar informação credível sobre investimentos. Porquê? Porque a pior coisa que podemos fazer quando começamos a investir é fazer um investimento só porque alguém nos disse. Sem percebermos onde é que está o dinheiro, qual é o risco envolvido nesse investimento.
Somos um país de fraca literacia financeira?
Segundo o último estudo da Comissão Europeia, melhorámos de último para penúltimo. Diria que ainda há um grande, grande, grande caminho a ser percorrido, principalmente porque falar de dinheiro é tabu. Falar de dinheiro tem de deixar de ser tabu em Portugal. É algo que todos usamos todos os dias, não é? E devia, se calhar, fazer parte dos currículos escolares. Acho que as famílias também têm um papel importante a fazer para deixar de ser tabu: têm de falar abertamente sobre dinheiro em casa. Qual é o grande entrave também? É que muitas vezes os pais também não sabem o que ensinar aos filhos.
Acha que os nossos filhos vão ter mais facilidade em gerir a sua própria vida financeira e já agora, como é que está a preparar a sua filha para gerir a própria vida financeira?
Falamos muito sobre dinheiro em casa. A minha filha tem uma mesada, uso uma aplicação onde ela tem objetivos de poupança, para comprar coisas que ela queira adquirir e saber gerir o dinheiro que lhe dou mensalmente, quase como se fosse um salário. Outra coisa que também fazemos muito aqui em casa é jogar Monopólio. Perceber que, ao passar na casa de partida é o equivalente ao fim do mês e receber dinheiro, que se quiser comprar uma casa tenho de perceber que pode calhar naquelas casas dos impostos e não ter dinheiro suficiente para pagar o imposto. Portanto, perceber que há escolhas que se têm de fazer.
Diz que se reformou, mas na verdade tem uma empresa que gere os seus investimentos e gere o seu património. Como é que é o seu dia a dia?
Acordo sempre sem despertador, normalmente entre as 06:30 e as 07:00. Despacho a Teresa para ir para a escola. Levo-a à escola todos os dias. Vou com o meu marido treinar à praia. Depois, se for terça-feira, é aula de skate, se for sexta-feira, é aula de paddle. Nos outros dias, vejo se há ondas ou não, se houver ondas em Carcavelos ou na Costa de Caparica, eu e o meu marido vamos surfar. Depois, almoçamos juntos. Da parte da tarde, ele vai trabalhar e eu dedico-me um bocadinho ao e-mail e a ver se houve algum alerta, se algumas empresas lançaram os fechos dos seus trimestres, perceber como é que estão as reservas das casas, perceber se há algum pedido de palestras ou alguma assinatura de livros que eu tenha de fazer, alguma entrevista, algum podcast. Às 16:00, a Teresa acaba a escola e vem ter a casa, percebemos quais são as atividades extracurriculares que ela tem, estudamos, ou ela estuda e eu fico de olho para ter certeza que ela estuda. Banhos, brincar um bocadinho, jantar e cama.
Tem agora a vida que sempre desejou?
Estou a viver a minha segunda vida. Já desejei outra, que concretizei. Agora tenho a segunda vida que desejei. A minha primeira vida foi a vida do mundo corporativo, de alcançar objetivos, de ajudar a Microsoft a crescer e de me concretizar a mim profissionalmente. Agora é a minha segunda vida, aquela onde me quero concretizar pessoalmente, onde quero fazer tudo aquilo a que me proponho e ter a liberdade de escolher e a liberdade de dizer que não a coisas que acho aborrecidas e que não queira fazer.
Não é o caso de eventos solidários como o Prio Softboard Heroes, em que participou recentemente…
Quando me reformei, percebi que uma das coisas que ainda me davam muita energia era ajudar as pessoas. O pedido do Tiago Pires para participar no Prio Softboard Heroes, para mim, foi algo fantástico, porque é associar duas coisas que amo - ajudar pessoas e o surf. Portanto, disse logo que sim. E espero que muito mais convites destes venham, porque me fazem sentir útil para a sociedade.
Também escrevi o livro para tentar ajudar as pessoas a tomarem o controle da sua vida, a tomarem as rédeas da sua carreira, a tomarem as rédeas das suas finanças.