Começou esta semana o maior teste de stress à justiça portuguesa nos últimos tempos. Entre os momentos que marcaram estas primeiras audiências, há também uma testemunha que disse que parecia que estava no banco dos réus. Próximas sessões marcadas pela presença de Fernando Ulrich e Pedro Passos Coelho
Nove anos depois do colapso do Banco Espírito Santo, o julgamento, que tem como principal figura Ricardo Salgado, começou esta semana. E, desde o primeiro segundo, tem imposto um teste de stress à justiça portuguesa. São pelo menos 730 as testemunhas, sim, mas também são mais de dois mil os lesados a quem foi atribuído o estatuto de vítima no processo. A acrescer a isso, o rosto do banqueiro, que há décadas parecia intocável, hoje revela-se frágil e debilitado. Uma sombra distante que em nada aparentava entender o porquê de ter de caminhar até a um tribunal, ou sequer reconhecer o grito de um homem que, por causa das decisões dele, perdeu as poupanças de uma vida.
Tudo isto coloca os procuradores, os advogados, os assistentes, o coletivo de juízes e as vítimas em terreno desconhecido, à medida que vão descortinando - penosa e lentamente - os detalhes do que aconteceu. Pelo meio, há duas forças em jogo nas narrativas que estão a ser contadas (ao vivo ou reproduzidas em vídeo) pelos intervenientes: a primeira, a dos arguidos, é que Ricardo Salgado montou todo o esquema de falsificação de contas e de pagamentos ocultos sozinho e que os seus funcionários apenas agiram no cumprimento de ordens diretas e indiretas. A segunda, a do Ministério Público, é que Salgado selecionou um “grupo restrito” de financeiros da sua confiança para o ajudar a troco de dinheiro e de estatuto dentro da organização Espírito Santo.
No centro desta guerra de narrativas está uma juíza. Chama-se Helena Susano, tem 61 anos e, durante as audições, tem revelado boa disposição - é rápida no humor e ligeira perante os atrasos, falhas técnicas ou incompreensões. Mas veloz também na repreensão, especialmente quando a sua integridade é questionada. Já a semana, que começou com um desfalecido Ricardo Salgado, acabou com o seu maior opositor dentro do Grupo Espírito Santo a zangar-se com um advogado.
Estes são alguns dos momentos mais marcantes do julgamento e o que se vai passar a seguir
Ricardo Salgado: exposto
Demorou 10 minutos a fazer a travessia desde o seu carro até à porta do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa. Percorreu o caminho com os braços apoiados na mulher e no advogado, sem nunca reagir perante os vários holofotes e perguntas dos jornalistas. A única vez que parou foi quando um lesado se atravessou à sua frente. Estranhamente, aliás, este homem - Jorge Novo, 68 anos, lesado do papel comercial do BES - queixou-se de ter ficado sem nada com a queda do banco, mas não colocou em Salgado a responsabilidade principal. “Sabemos que o senhor deixou uma provisão para os lesados, mas ficámos sem nada. Essa provisão era para nos ser paga, mas o Novo Banco nada fez. A nossa luta não é consigo”. A defesa do banqueiro viria a usar este exemplo quando questionada, no primeiro dia, sobre onde reside a culpa. “O BES ajudou muitas pequenas e médias empresas e criou muitos trabalhos. Mesmo entre os lesados, a responsabilidade de Ricardo Salgado pela queda do BES não é unânime”, disse Francisco Proença de Carvalho.
Esta opinião estava, no entanto, longe de ser consensual quando Salgado chegou ao tribunal. Nesse momento, outro grupo de lesados ia-se tornando cada vez mais audível. “Ladrão”, gritaram, duvidando do estado abatido com que o banqueiro se apresentava. “A demência não afeta as pernas, a minha mulher sofreu de demência, eu bem sei.”
Antes e ao longo do julgamento, os advogados de Ricardo Salgado têm também criticado o facto de o tribunal não ter ordenado uma perícia neurológica ao arguido antes do início dos trabalhos e até chegaram a admitir que esta decisão poderia levar o estado português a uma condenação no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos - com base num antecedente de um russo condenado por incendiar o apartamento da mãe. Já no final da semana, o Ministério Público fez um pedido ao tribunal para que fosse dado ao banqueiro o “estatuto de maior acompanhado”. Este regime leva a que o substituto designado acompanhe e tome algumas decisões pela pessoa que se encontra diminuída das suas capacidades.
A juíza lesada e com bom humor
A juíza Helena Susano teve ações do BES. Este era um facto conhecido já antes do julgamento, porque a magistrada chegou a fazer um pedido de escusa para si própria ao Tribunal da Relação. Pedido esse que foi rejeitado. Ao mesmo tempo, esta foi também uma situação usada por dois advogados para atacar a sua imparcialidade durante as exposições iniciais na quarta-feira.
A resposta da juíza, que confrontou diretamente Tiago Rodrigues Bastos, representante dos arguidos suiços Alexandre Cadosh e Michel Creton, sobre esta insinuação, foi a de sugerir que o advogado veja “quanto é que valem 500 e algumas ações do BES, passar na Avenida da Liberdade e ver se com isso consegue sequer comprar uma mala”. O último valor conhecido das ações no banco foi de cerca de 12 cêntimos (agosto, 2014), o que faria com que as ações da juíza valessem pouco mais de 67 euros.
Contudo, a juíza tem vindo também a demonstrar o seu bom humor em vários momentos, recorrendo até a algumas piadas durante a fase de identificação dos arguidos. Uma aconteceu logo quando entrou na sala de julgamento e apontou a alta temperatura por o ar condicionado não estar a funcionar bem. “Não precisávamos de estar numa sauna”. Ou como quando brincou, no segundo dia de julgamento, com o facto de um dos advogados - neste caso Paulo Espírito Santo Amil - ter confidenciado uma pequena discussão com a mulher na conservatória. “A primeira de muitas”, disparou quase de imediato.
O cerco de Ricciardi ao Banco de Portugal e uma zanga: "Parece que estou a ser julgado"
A audição de José Maria Ricciardi durou mais de oito horas e alongou-se por dois dias, atrasando a previsão inicial que era a de apenas ser ouvido durante uma tarde. Durante o testemunho, o primo de Ricardo Salgado voltou a colocar o banqueiro no centro de todas as decisões que levaram à queda do BES, ao mesmo tempo que garantiu, algo irritado, que ele próprio não esteve envolvido nisso. “Eu não estava nestas teias, nestas construções de sociedades. O dr. Salgado não falava comigo sobre estes aspetos, não comentava. Parece que estou a ser aqui julgado”, referiu perante a insistência de vários advogados sobre o seu grau de conhecimento desse plano.
Mas outro dos alvos de Ricciardi não estava sequer no banco dos réus. Trata-se de Carlos Costa, o ex-governador do Banco de Portugal. No primeiro dia em que esteve na sala de audiências, Ricciardi entrou logo a matar contra o homem responsável pela resolução do BES. “O dr. Carlos Costa assobiou para o lado, não quis saber de nada”, afirmou e, já depois do julgamento, reafirmou-o. “Acha que não estaríamos cá hoje se houvesse outra decisão?” perguntaram-lhe. “Acho que sim”.
Na mesma linha, e 24 horas depois, voltaria ao tribunal com acusações semelhantes. “O BES era um banco sólido. Se não se tivessem posto a fazer resoluções, o BES ainda estava cá”, disse, sublinhando que foi por isso que pôs as culpas no Banco de Portugal. “Se não se tivesse feito a resolução e se tivesse emprestado quatro ou cinco mil milhões, o BES tinha sobrevivido e hoje era um banco ótimo.”
Não há espaço para tantos lesados
São mais de dois mil lesados que estão representados neste processo. Perto de duas dezenas vieram de várias zonas do país, como Braga ou Viana do Castelo, para poderem assistir ao julgamento do caso BES. A sua presença fez-se, desde logo, notar no Campus de Justiça com, primeiro, uma marcha atrás de uma carrinha fúnebre com a cara de Ricardo Salgado e, depois, com vários protestos durante a entrada de arguidos no tribunal.
A grande maioria acabou por ficar à porta e não conseguiu assistir ao que se passava na sala de julgamento. Este facto suscitou várias reclamações por parte de Nuno Vieira e outros advogados dos lesados, que perguntaram à juíza se existia a possibilidade de serem admitidos nas salas para a comunicação social. “Se vir as salas compreenderá que aquilo não cabe lá uma cómoda e uma cama de casal”, respondeu-lhes a juíza.
Entre os advogados dos lesados estava Ricardo Sá Fernandes que pediu que os bens que forem decididos perdidos a favor do Estado também sirvam para restituir as vítimas da queda do BES. Já sobre o apuramento dos factos, Sá Fernandes disse algo que suscitou alguma indignação junto dos outros representantes dos lesados. Sobre Ricardo Salgado e a sua condição de saúde, garantiu que tem “as maiores dúvidas que um homem nestas circunstâncias possa ser julgado em termos criminais”. “É uma pessoa que não se pode defender de forma cabal”, reiterou.
Passos Coelho, Ulrich e Queiroz Pereira. O que se segue?
Na próxima semana, haverá apenas um dia de julgamento. Acontece na terça-feira, altura em que será ouvido Fernando Ulrich. O presidente executivo do BPI foi um dos que em 2014 denunciou o estado de vulnerabilidade das contas do Banco Espírito Santo tanto a Vítor Gaspar, na altura ex-ministro das Finanças como ao Banco de Portugal.
Está ainda prevista para terça-feira a reprodução do depoimento que Pedro Queiroz Pereira deu antes de morrer, em 2018. O industrial, líder da Semapa, travou uma guerra contra Ricardo Salgado dentro do Grupo Espírito Santo (pode ler mais aqui) e acabou por ser o primeiro a pressionar o gatilho contra o líder do BES, impulsionando o fim do império Espírito Santo.
Antes do final do mês, o tribunal vai ainda ouvir Pedro Passos Coelho, primeiro-ministro durante o período do colapso do Grupo Espírito Santo e quem deu a Ricardo Salgado o último não. Aconteceu em maio de 2014 quando já desesperado Salgado pediu ajuda a Passos para salvar o BES com um empréstimo de dois mil milhões de euros da Caixa Geral de Depósitos para fazer face à tesouraria do banco. Recusou-o.