A ponte levadiça que o PS mantinha sobre o centro do tabuleiro baixou-se e duas forças entraram de rompante enquanto a esquerda se fragmentou
Portugal pós-2025: retrato de um eleitorado em mudança
O choque dos números
Entre março de 2024 e maio de 2025, o Parlamento manteve-se com 230 lugares, mas tudo o resto mudou: da erosão socialista à bifurcação da direita, as legislativas de 2025 redesenharam o xadrez partidário português. A AD venceu, mas sem maioria absoluta; o Chega ultrapassou o PS e passou a líder da oposição; à esquerda só o Livre cresceu.
1. COMPARAÇÃO DOS RESULTADOS ELEITORAIS: 2024 VS. 2025
Em número de votos:
PARTIDOS | VOTOS 2024 | VOTOS 2025 | VARIAÇÃO |
AD | 1 867 464 | 2 008 437 | 140 973 |
PS | 1 812 464 | 1 442 194 | -370 270 |
CH | 1 169 836 | 1 437 881 | 268 045 |
IL | 319 685 | 338 664 | 18 979 |
L | 204 676 | 257 273 | 52 597 |
CDU | 205 436 | 183 741 | -21 695 |
BE | 282 314 | 125 710 | -156 604 |
PAN | 126 085 | 86 946 | -39 139 |
JPP | 19 133 | 20 911 | 1 778 |
Em percentagem de votos:
PARTIDOS | % 2024 | % 2025 | VARIAÇÃO (PP) |
AD | 28,8% | 31,8% | 3 |
PS | 28,0% | 22,8% | –5,2 |
CH | 18,1% | 22,8% | 4,7 |
IL | 4,9% | 5,4% | 0,5 |
L | 3,2% | 4,1% | 0,9 |
CDU | 3,2% | 2,9% | –0,3 |
BE | 4,4% | 2,0% | –2,4 |
PAN | 2,0% | 1,4% | –0,6 |
JPP | 0,3% | 0,3% | 0 |
Em número de deputados eleitos:
PARTIDOS | VOTOS 2024 | VOTOS 2025 | VARIAÇÃO |
AD | 80 | 91 | 11 |
PS | 78 | 58 | -20 |
CH | 50 | 60 | 10 |
IL | 8 | 9 | 1 |
L | 4 | 6 | 2 |
CDU | 4 | 3 | -1 |
BE | 5 | 1 | -4 |
PAN | 1 | 1 | 0 |
JPP | 0 | 1 | 1 |
2. RANKING DOS PRINCIPAIS PARTIDOS
CHEGA
Distritos onde mais subiu
- Faro (+6,7 pp)
- Setúbal (+6,1)
- Porto (+5,3)
Distritos onde mais desceu (ou subiu menos)
- Castelo Branco (+1 pp)
- Madeira (+0,8)
AD
Distritos onde mais subiu
- Aveiro (+4,4 pp)
- Porto (+3,8)
- Setúbal (+3,8)
Distritos onde mais desceu (ou subiu menos)
- Alentejo profundo (Beja -0,9 pp, Évora -0,4 PP)
PS
Caiu em 17 dos 20 círculos, sendo as maiores quebras:
- Setúbal (-6,3 pp)
- Porto (-6,3 pp)
- Aveiro (-6,0 pp)
LIVRE
Distritos onde mais subiu
- Cresce em quase todo o litoral; pico em Lisboa (+1,4 pp)
Distritos onde mais desceu (ou subiu menos)
- Estagna em Bragança e Vila Real (≤ +0,2 pp)
BE
Distritos onde mais subiu
- Só mantém fôlego muito residual no Norte litoral; perde até -3 pp em Setúbal e Faro
CDU
Distritos onde mais desceu (ou subiu menos)
- Perde 1 deputado e cai ligeiramente (0,26 pp) de forma transversal
3. PRINCIPAIS PADRÕES TERRITORIAIS
NORTE (PORTO, BRAGA, AVEIRO, VIANA)
Padrão de 2025
- AD reforça hegemonia;
- Chega torna-se segundo partido em vários concelhos industriais.
Possíveis leituras
- Transferência PS → AD
- Abstencionistas → Chega
CINTURA URBANA DE LISBOA
Padrão de 2025
- Tripé: AD / Chega / PS ficam quase empatados;
- Livre e IL acumulam aproximadamente 15% dos votos.
Possíveis leituras
- Fragmentação da esquerda, beneficiando novos partidos.
SETÚBAL & MARGEM SUL
Padrão de 2025
- Chega lidera;
- PS perde bastião histórico
Possíveis leituras
- Voto de protesto em (questões socio-económicas e imigração).
ALENTEJO INTERIOR
Padrão de 2025
- PS ainda primeiro (≠560 votos) graças ao resultado em Évora
- CH conquista pela primeira vez o 2º lugar em Évora trocando com AD que ficou em 3º;
- Chega em 1º lugar em Portalegre e Beja
Possíveis leituras
- Resistência da velha esquerda, mas com penetração do Chega.
ALGARVE (FARO)
Padrão de 2025
- Chega conquista 4 dos 9 deputados e torna-se maioritário em 11 concelhos
Possíveis leituras
- Efeito turismo/imigração + desgaste PS/BE
4. CORRELAÇÕES SIMPLES (AMOSTRA DOS 5 MAIORES CÍRCULOS ELEITORAIS)*
* Cálculo a partir dos cinco distritos-amostra; correlações ganham robustez quando incluímos todos os círculos.
PARES DE PARTIDOS
ΔPS × ΔAD
-
P (correlação de Pearson): –0,89 (correlação forte negativa)
Interpretação
- Quanto mais o PS cai, mais a AD sobe – sobretudo no Norte e litoral Centro.
ΔPS × ΔChega
-
P (correlação de Pearson): –0,20 (Correlação mais fraca)
Interpretação
- O Chega cresce sobretudo onde o PS já era menos dominante ou onde havia elevado abstencionismo.
5. HÁ CORRELAÇÃO ENTRE IMIGRAÇÃO E TRANSFERÊNCIAS DE VOTO?
O Relatório de Migrações e Asilo 2023 indica que Lisboa, Faro e Setúbal concentram 63 % dos estrangeiros residentes.
- Nestes distritos, o Chega registou os maiores saltos (+6-7 p.p.), sugerindo como catalisadores da preferência populista a pressão sobre serviços públicos (segurança., ensino, saúde etc) bem como pressão sobre os preços da habitação.
- Em Lisboa, onde a imigração é mais antiga e qualificada, o ganho do Chega é menor (+3,9 p.p.) e parte do eleitor protesto vira-se para IL e Livre.
- No Norte industrial, com peso imigrante modesto, a transferência dominante é PS → AD, não PS → Chega.
- Conclusão: imigração importa, mas como variável contextual – amplifica o discurso populista onde é recente e visível, dilui-se onde há capital humano e cosmopolitismo.
Em conclusão:
Depois do vendaval das legislativas, um país à procura de novo equilíbrio
Em menos de um ano, Portugal voltou às urnas e devolveu-nos um Parlamento que já não cabe nos velhos encaixes ideológicos: a AD ganhou (91 deputados), o Chega saltou para segunda força (60) e o PS sofreu a maior queda da sua história democrática, ficando nos 58 lugares, a que chegou depois de contados os votos da emigração - só em 1985 o PS teve menos deputados (57).
Este é o facto aritmético. Mas a política não se esgota na aritmética – e, como qualquer fotografia, estes números pedem legendas, enquadramento, tempo para serem digeridos.
Já há boas pistas. João Cancela e Pedro Magalhães publicaram há dias um retrato sociodemográfico das eleições de 2022 a 2025, feito a partir de sucessivos inquéritos à boca das urnas pela TVI e a CNN Portugal. O estudo mostra três movimentos simultâneos:
- homens até 55 anos com pouca escolaridade desertam do PS para o Chega;
- eleitores com mais de 55 anos regressam do PS ao centro-direita da AD;
- entre jovens licenciados urbanos cresce uma nova oferta progressista (Livre) enquanto a IL estabiliza o seu nicho liberal.
A comparação dos resultados distritais confirma a coerência entre o mapa e a sociologia: onde o PS mais se afundou – Setúbal, Faro, Porto, Aveiro – foi onde o Chega ou a AD mais subiram. A correlação estatística entre a queda socialista e a subida da AD chega a –0,89, com o Chega fica nos –0,20, mas dispara nos distritos em que a imigração cresceu depressa.
Migração: lupa ou espelho?
O Relatório de Migrações e Asilo 2023 lembra-nos que três distritos – Lisboa, Faro e Setúbal – concentram quase dois terços dos estrangeiros residentes em Portugal. Nestes dois últimos foi também onde o Chega deu os saltos mais altos (entre +6 e +7 pontos percentuais), sugerindo que a presença visível de mão-de-obra estrangeira em sectores turísticos ou industriais funciona como lente que amplia o discurso populista sobre insegurança, mas também como pressão sobre os serviços públicos (saúde, educação) e de forma muito significativa sobre os preços da habitação.
Mas Lisboa – o distrito mais internacional – não replicou esse efeito da mesma forma: aí o ganho do Chega é mais contido, e parte do eleitorado optou ou pelo Livre ou pela IL. A melhor qualidade de vida em municípios, como Lisboa, Oeiras, Cascais e mesmo em municípios mais pequenos como Mafra e Torres Vedras, entre outros, parece – pelo menos para já – diluir o apelo do populismo.
Nada disto autoriza simplismos. Imigração não explica por si o mapa eleitoral; ajuda a compreendê-lo onde se cruza com condições sociais (salários baixos, oferta habitacional precária, serviços saturados) e com repertórios culturais (cosmopolitismo urbano vs. sentimento de periferia). A academia terá anos de trabalho para esmiuçar as causalidades que um artigo de opinião só consegue apontar.
Por fim, devemos reter que as legislativas mostraram que o eleitorado não é um líquido que muda de recipiente ao menor abalo; é, antes, um mosaico composto por trajetórias profissionais, identidades locais e experiências de mobilidade social. A AD beneficiou do efeito “regresso”, o Chega do efeito “rutura” e o Livre do efeito “novidade”. O PS foi vítima de todos esses vetores em simultâneo
Nas autárquicas, esse mosaico volta a embaralhar-se. O voto de protesto pode perder força quando se escolhe quem gere o orçamento de uma câmara, mas pode também cristalizar se os atores estabelecidos não oferecerem respostas tangíveis.
Para a direita, o desafio é provar que pode e sabe governar sem se deixar embrulhar em temas laterais; para a esquerda, é mostrar que ainda sabe proteger quem sente que a escada social está a encolher.
A aritmética das legislativas é só um ponto de partida. A ciência política, como lembra o estudo de Pedro Magalhães, levará tempo a decantar causas e efeitos. O que podemos desde já fixar é a imagem-guia: a ponte levadiça que o PS mantinha sobre o centro do tabuleiro baixou-se, e duas forças entraram de rompante enquanto a esquerda se fragmentou. Faltam quatro meses para os eleitores decidirem quem guarda, renova ou derruba as muralhas de cada município. Veremos então se a fotografia de 2025 era retrato ou simplesmente um instantâneo.