Por amor às filhas: vice-campeão mundial trocou o futebol pelos pneus

17 mar 2021, 09:18
Serginho (Arquivo pessoal)

Serginho foi o jogador-revelação nos convocados da Seleção Nacional para o Mundial de sub20 em 2011. Dez anos depois, divide a vida entre o trabalho na fábrica e o amor pelas duas filhas. «Tive uma lesão grave aos 23 anos e a carreira foi por ali abaixo.»

O amor pelas filhas. Uma casa onde tem de entrar pão.

Dez anos depois de colocar ao pescoço a medalha de vice-campeão do mundo de sub20, Serginho Carneiro inicia mais um dia na fábrica onde trabalha. Pneus, automóveis, mecânicos, entrada e saída de viaturas, camaradas e clientes.

Na Continental Mabor, Serginho encontra o que há muito não tinha no futebol: estabilidade e salários em dia. «Um bom salário, ainda por cima», diz ao Maisfutebol, um ano após o adeus definitivo aos relvados.

Um adeus muito menos mediático do que o que teve o amigo Rui Caetano, colega na formação do FC Porto e naquela Seleção Nacional que há uma década deixou Portugal agarrado às imagens que na televisão chegavam da Colômbia.

Heróis de 2011. Quinas ao peito, todo o país a sofrer até à final com o Brasil.

Para Serginho, um avançado que muito prometeu, tudo começou a dar para o torto em 2014, no Arouca. Uma lesão grave no joelho obrigou-o a ser operado e a deixar de ser o jogador que era.

A partir daí a minha carreira foi por ali abaixo. Eu só tinha 23 anos na altura e nunca mais consegui voltar a ser o jogador que já tinha sido. Sempre fui um avançado rápido, baseava o meu jogo muito nas mudanças de direção e deixei de ser capaz de fazer isso. Passei muito mal, tive muitas dores, deixei de ter condições físicas.»

De 2011 a 2015, Serginho andou pela I Liga a tentar confirmar o que as previsões dos experts indicavam. Nunca chegou lá perto. Esse grave problema físico atirou-o novamente para a II Liga e daí em diante multiplicaram-se os problemas.

«Salários em atraso, salários por pagar, um ano inteiro sem receber na Trofa», resume Serginho Carneiro, conformado com o que o futebol lhe deu e certo de que a vida ainda tem muito para lhe oferecer. Francisca, de três anos, e Frederica, de 11 meses, são as princesas do seu dia a dia e a «prioridade absoluta daqui para a frente».

Serginho e as três princesas: as filhas e a esposa (arquivo familiar)

«Trabalho numa grande empresa, mesmo ao lado de casa. Os meus familiares e os meus amigos trabalham lá todos também. O ordenado e as condições de trabalho são ótimos. Ainda não estou nos quadros da empresa, tenho um contrato a termo. É uma regra da empresa, mas o meu objetivo é tornar-me efetivo», conta Serginho, motivado por esta nova oportunidade profissional.

«Trabalhamos por turnos – da meia-noite às oito da manhã, das oito às 16 horas ou das 16 à meia-noite – e tenho tempo para mim e para a minha família. Isso é o que mais me interessa», concretiza o vice-campeão mundial de sub20.

«Deixei o futebol a pensar na estabilidade das minhas filhas»

Época 2010/11. Serginho, um menino de 19 anos, destaca-se na II Liga ao serviço do Trofense e convence o selecionador Ilídio Vale a levá-lo ao Mundial do Panamá. Faz cinco jogos pelos sub20 e integra um grupo que tem, por exemplo, Sérgio Oliveira, Danilo Pereira e Nelson Oliveira.

Nessa altura, recorda Serginho, já o joelho esquerdo lhe dá problemas. «Fui operado pela primeira vez a esse joelho com 18 anos. Cinco anos depois, rasguei o menisco externo do mesmo joelho e fiquei sem cartilagem. Ainda fiz uma reconstrução, mas não correu bem. Eu queria era jogar, estava na I Liga e tentei tudo, mas não deu.»

Pelo Arouca, contra o Sporting, na I Liga (arquivo pessoal)

Da seleção e da I Liga, Serginho lida com um choque de realidade. Volta para a Trofa, procura o nível do passado, lida com o que é possível até sentir que o sacrifício já não faz sentido.

«Os responsáveis dos clubes começaram a olhar para mim com desconfiança. Eram muitas lesões. Fui tentando aguentar, até chegar a um ponto em que a dedicação já não recompensava. Aliado a isso, admito agora que tomei uma má decisão.»

Serginho refere-se à saída do Arouca e ao empréstimo ao Trofense. Na Trofa parte o pé, joga e pouco e é incapaz de voltar a um patamar superior.

O futebol na I Liga é muito bonito. Na II Liga, enfim, mais ou menos. Daí para baixo é muito complicado para quem pretende ter estabilidade familiar. Tanto recebemos o salário como não recebemos. Optei por abraçar uma profissão que me dá a certeza de que todos os meses entra dinheiro em casa. Tenho de olhar pelas minhas filhas, acima de tudo.»

«Deixei o futebol por causa delas», assume Serginho, «nada arrependido» pela opção tomada em março de 2020, quando a pandemia interrompe todas as competições nacionais.

«No Campeonato de Portugal nunca sabia se ia ter salário ou não. Recebia às vezes, outra vezes não recebia e quando recebia nunca era no dia previsto. Casa para pagar, despesas fixas, filhos, não dava para tudo. Sabia que não ia passar disto.»

A última tentativa é feita no Ribeirão, já nas distritais da AF Braga. Aí, Serginho já acumula o futebol com o emprego na Mabor. A covid-19 apenas antecipa uma decisão já tomada.

«Estive uma temporada inteira sem receber no Trofense»

Carreira bonita, expoente máximo em 2011, quatro temporadas no escalão maior. O que leva Serginho Carneiro do futebol?

«Fui o jogador-revelação da II Liga no Trofense, na época 2010/11, e sei que criei muitas expetativas. Em mim e nos outros», reflete o ex-avançado, um atleta muito desejado há não muito tempo por alguns dos maiores emblemas do país.

«Nessa altura, ainda antes do Mundial, estive muito perto de ir para o Sp. Braga e até estive reunido com o Agostinho Oliveira [coordenador da formação]. O negócio não avançou e o meu empresário, o Carlos Janela, levou-me para o Beira-Mar, que estava a apostar forte na I Liga.»

Ao serviço do Beira-Mar na I Liga (arquivo pessoal)

Acelerar e desacelerar, expetativas e frustrações. É uma montanha-russa aos solavancos. O talento de Serginho poucas, raras vezes tem a estabilidade que precisa. E merece.

«Acabou o Mundial, tive quatro dias de férias, fiz uma infiltração – que não devia ter feito – e fui lançado às feras. Por azar e alguma estupidez, fui expulso logo ao segundo jogo», atira, a sorrir, certo de que também podia ter tido outro comportamento.

Tinha a mania que era reguila. Paguei uma multa grande, aprendi e tornei-me bastante mais equilibrado. Consegui fazer 64 jogos na primeira divisão. Infelizmente, naquela que seria a época da minha afirmação – era o que dizia o mister Pedro Emanuel – tive a tal lesão grave.»

Acaba o Beira-Mar e o Arouca, volta o Trofense, a conta quase a zeros e uma proposta para jogar no Azerbaijão. Uma «surpresa muito boa».

«Estive um ano inteiro sem receber no Trofense. Por isso decidi aceitar o desafio de jogar no lá. Foi o João Costa, antigo jogador de FC Porto e V. Setúbal, que me colocou no FK Kapaz. Podia ter ido em 2013 e só fui em 2016, a ganhar menos de metade do que podia ter ganho.»

Serginho conta que na época 2016/17 recebe seis mil euros por mês no emblema azeri. Três anos antes, os números teriam sido outros: 15 mil euros mensais.

«Para quem não ganhava um único cêntimo no Trofense… só não fiquei mais tempo porque falhámos o acesso à Liga Europa e o clube dispensou toda a gente.»

«O Caetano estava a soro: ‘Eh pá, estou muito nervoso’»

A conversa acaba onde Serginho mais quer. Mundial de 2011, sub20, Panamá, aquele querido mês de agosto. São as melhores memórias do homem que agora trabalha no mundo dos pneus.

«Foi fantástico, a melhor experiência da minha carreira. O grupo tinha um ambiente perfeito, eu já conhecia alguns jogadores que tinham sido meus colegas no FC Porto – Caetano e Sérgio Oliveira – e do nada vi-me ali no meio deles. Passei da II Liga ao Mundial. Eu era o jogador menos conhecido, porque nunca tinha jogado na primeira divisão, mas integrei-me bem e até me chamavam o palhacinho do grupo.»

Não há hipóteses. Mesmo aí, no auge do percurso, Serginho sente ter sido prejudicado pelos problemas físicos. Uma explicação mais do que justa para os sete jogos vistos a partir do banco de suplentes.

Dois dias antes de viajarmos para o Panamá, torci o joelho e o pé num jogo contra o Egito. Quis fazer uma habilidade com a bola, tropecei e aleijei-me a sério. O professor Ilídio Vale falou comigo, disse que não sabia se eu ia estar em condições no Mundial, mas quis que eu fosse. ‘Como prémio pelo teu comportamento e pela pessoa que és. Vamos avaliando a tua condição física lá’. Recuperei, ainda aqueci algumas vezes durante os jogos, mas sempre com o joelho protegido.»

A concorrência no ataque é forte. Nelson Oliveira, Caetano, Rafael Lopes, Amido Baldé. «O Nelson até começou meio tremido, mas depois explodiu e levou-nos às costas. Foi espicaçado pelo mister e despertou. Levou tudo à frente, mostrou tudo o que valia.»

Serginho acaba por não ser jogar uma única vez, mas não há amargura nem tristeza. É um bem disposto por natureza.

«Brincava muito com toda a gente. ‘Quando me perguntarem se joguei 100 minutos ou zero minutos, vou dizer assim: sem minutos, sem minutos’. Era uma risota. Apesar de não ter sido utilizado, sinto que ajudei muito toda a gente.»

Com a camisola da Seleção Nacional em 2011 (arquivo pessoal)

O tom muda rapidamente. Serginho lembra-se subitamente do dia do adeus ao Panamá e do abraço de Ilídio Vale, com o selecionador Paulo Bento logo ali ao lado.

«Há um momento que jamais esquecerei. O professo fez um pequeno discurso e depois abraçou um a um todos os jogadores da equipa. O abraço mais longo e mais sentido foi dado a mim», conta, naturalmente satisfeito.

«O Paulo Bento era o selecionador nacional e estava lá, assistiu a tudo. Acho que o mister percebeu que apesar da minha tristeza tive sempre um comportamento espetacular com todos os meus colegas.»

E voltam os sorrisos. Por culpa de Rui Caetano, provavelmente o melhor amigo de Serginho nessa equipa histórica para Portugal.

Eu dava-me muito bem com o Caetano, estávamos sempre na palhaçada. Na véspera da meia-final contra a França fui ao departamento médico fazer tratamento, procurei o Caetano e não o via em lado nenhum. Eu sabia que ele também andava a fazer tratamento. Perguntei ao enfermeiro e ele piscou-me o olho. ‘Anda aqui, anda aqui para ninguém ver’. Levou-me a uma outra sala e lá estava o Caetano. A levar soro, todo estendido ao comprido: ‘Eh pá, estou muito nervoso para amanhã’. (risos) Ele estava mesmo ligado às máquinas, acalmei-o e ri-me muito com ele.»

Está na hora de entrar ao trabalho. Novos horários, o mesmo compromisso. Serginho olha para trás e sente a necessidade de mais um desabafo. «Nunca tive cunhas, nenhum familiar meu estava ligado ao desporto – o meu pai trabalhava numa fábrica e era jardineiro nos tempos livres – e consegui tudo às custas do meu valor.»

«O que poderia ter sido? Podia ter chegado mais longe? Guardo as respostas para a minha imaginação.»

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