À boleia de Portugal ao Qatar com uma palavra-passe

18 nov 2022, 09:10
Andamente: à boleia até ao Qatar

Quatro amigos juntaram-se para uma aventura que já leva mais de um mês, muitas histórias e muitas peripécias. O objetivo é a viagem, claro, mas também querem assistir ao Portugal-Gana e desejar boa sorte a Cristiano Ronaldo

O dia deles começou no deserto, a pé, à procura da estrada mais próxima. «Era uma caminhada aí de duas horas. Até que passou por nós uma retroescavadora. No deserto, com dois bidons à frente. O gajo disse: ‘Vou virar à direita’. E nós: ‘Dá para nos dares boleia até onde puderes?’ Então subimos os quatro ao lado do rapaz. E lá fomos nós.» Lá foram eles, pendurados do lado de fora da máquina, até à etapa seguinte da aventura que começou há mais de um mês, de polegar esticado. E quer acabar no Qatar, no dia do Portugal-Gana, com um desejo de boa sorte a Cristiano Ronaldo.

A conversa com o Maisfutebol acontece depois de uma mensagem enviada por eles, alguns dias após o contacto inicial: «Finalmente saímos do deserto.» Já têm menos limitações para usar a internet, já estão instalados, vamos a isso. Falam Daniel e Duarte, a partir de um hotel numa localidade no meio da Arábia Saudita. Eles são quatro, mas Francisco «está a tomar banho» e Bruno «foi às compras, mas como neste momento é hora da reza está no supermercado à espera».

A ideia partiu de um projeto que se chama Andamente e em nome do qual alguns deles já viveram várias aventuras. Têm profissões e experiências diferentes. Daniel é engenheiro biomédico, Bruno trabalha numa empresa de aluguer de caravanas, Francisco faz edição de vídeos e Duarte adiou o início de um novo emprego: «Estava a terminar o mestrado em gestão de informação e já tinha um contrato com uma empresa na qual ia trabalhar em setembro. Mas quando o Daniel e o Francisco me apresentaram esta ideia, eu já tinha tido outras experiências similares e sabia que eram incríveis. Não queria perdê-la, então acordei com a empresa que começo a trabalhar em janeiro.»

Depois de ponderarem fazer alguma coisa a propósito da seleção e do Mundial, decidiram tentar chegar ao Qatar à boleia. Partiram a 6 de outubro – a primeira boleia foi numa estação de serviço em Lisboa. Já passaram por Espanha, França, Itália, Croácia, Montenegro, Albânia, Kosovo, Macedónia do Norte, Bulgária, Turquia, Jordânia e agora Arábia Saudita, onde estão há vários dias. Mais do que tinham previsto.

 

Eles vão adaptando os planos e a passagem mais prolongada pela Arábia Saudita resulta de uma alteração. «O plano inicial era irmos desde Lisboa até ao Qatar maioritariamente à boleia, mas sempre tendo em conta que no caso de passarmos por zonas de conflito, ou por zonas em que já estávamos há demasiados dias sem conseguir avançar, podíamos utilizar outros meios de transporte», explica Daniel, acrescentando que a segurança é prioridade. Quando começaram a planear a viagem, «há mais de seis meses», tinham previsto passar pelo Irão, mas os protestos civis no país levaram-nos a mudar de planos. «A opção viável foi ir à boleia até ao sul da Turquia, para minimizar os quilómetros que íamos ter de saltar, e apanhar um avião para a Jordânia, para Amã.» A partir daí voltaram a pedir boleia, até à fronteira da Jordânia com a Arábia Saudita.

Arranhões e leite de camelo no deserto

«Não sabíamos bem o que havíamos de esperar da Arábia Saudita. E tem sido muito intenso, pela positiva», diz Daniel, a falar da hospitalidade das pessoas com quem se cruzam. «Além de nas boleias bastarem cinco minutos a pedir boleia e um carro pára, oferecem-nos sempre casa e comida.» Duarte completa a ideia: «Já chegámos a um ponto em que temos de recusar tanta amabilidade. Porque não temos tempo, infelizmente. Custa-nos dizer: ‘Adorámos, mas temos de ir embora, temos de continuar rumo ao Qatar, se não não chegamos a tempo.»

Outra história, do dia anterior. «Um rapaz, o Rakan, convidou-nos para a quinta que o seu pai tem no meio do deserto, com 40 camelos, dois cavalos árabes… Ah, cascavéis, também, mas essas não vimos. O Daniel experimentou andar a cavalo árabe pela primeira vez», conta Duarte. E como correu? Daniel mostra os braços cheios de feridas e arranhões e ri-se: «Mesmo com estas marcas de guerra foi uma experiência que não mudaria por nada. Andei a cavalo sem sela, foi a primeira vez que andei a cavalo sequer. Além disso experimentei também tirar leite a camelos. Depois bebemos o leite e curiosamente é muito bom. Leite morno, acabadinho de sair e a mim soube-me igual.» Duarte torce o nariz: «Eu se calhar tenho um gosto um bocado mais requintado… Era ligeiramente diferente. Mas era bom, sem dúvida.»

A Portuguesa algures na Croácia

A hospitalidade é comum a muitos dos sítios por onde passaram. Na Croácia, por exemplo, quando eram ainda apenas três – Daniel foi o último a juntar-se ao grupo. «Queríamos chegar a Dubrovnik, mas não tínhamos conseguido nesse dia. E então ficámos num motel junto à estrada nacional que vai dar a essa cidade. Já tínhamos dado o dia por terminado e decidimos jantar num restaurante que ficava uns dez metros atrás do motel. Quando chegámos, começámos a ouvir uma algazarra vindo do interior. Ficámos a saber que estava a haver ali a despedida de solteiro de um polícia local», conta Duarte: «Estavam 15 polícias daquela pequena vila no meio da Croácia a celebrar com música aos berros e muita cerveja. Convidaram-nos para nos juntarmos a eles e às tantas estavam a oferecer-nos imensas canecas. De meio litro, ali é meio litro de cada vez. Depois, ligaram à coluna o Youtube e puseram a tocar a Portuguesa. Então, do meio do nada estávamos três portugueses a cantar a altos berros o hino nacional no meio de 15 polícias croatas.»

A viagem representa um investimento, mas há formas de reduzir as despesas, dizem: «É preciso algum orçamento, tendo em conta que são 50 dias de viagem. Mas nós de certa maneira também estamos a conter o orçamento. Trouxemos tendas, e sempre que necessário ficamos na tenda e poupamos o dinheiro do alojamento», diz Daniel. «Depende da comodidade com que as pessoas quiserem fazer esta viagem. Não era possível ficar todas as noites na tenda. É muito cansativo e estando a gravar vídeos precisamos de ter energia. Às vezes não estamos a sentir-nos com vontade de gravar, porque passámos por momentos difíceis», diz por sua vez Duarte: «Felizmente tivemos o apoio de três marcas. A Solverde é o principal patrocinador e sem eles seria mesmo impossível. No entanto, curiosamente na Arábia saudita, em cerca de seis dias, gastámos os quatro 120 euros. Foram duas noites em hotel. E quantas refeições é que pagámos até agora? Duas, três... Pagámos uma pizza que custou 4 euros.»

Apesar de terem planeado a viagem, cada dia é uma incógnita. Muitas vezes salvo pela boa vontade de desconhecidos. «Hoje não sabíamos onde íamos ficar a dormir», conta Daniel: «Agora houve um rapaz que nos deu uma boleia no meio do deserto. Ele ia na direção oposta e mesmo assim deu-nos boleia até aqui à cidade, quando lhe contámos a história.»

Portugal e Cristiano Ronaldo, o salvo-conduto

Nos países por onde passam, a língua é uma barreira. O próprio conceito de boleia é difícil de explicar, ali por onde andam: «Não existe uma palavra propriamente. Não há tradução de boleia, hitchhiking.» Procuram ultrapassar essa barreira com algumas palavras, acompanhadas de muitos gestos. «Nós tentamos usar um tradutor ou então palavras muito simples», conta Daniel, enquanto mexe muito os braços: «Por exemplo, se queremos ir para Riade, dizemos: ‘We… auto-stop Riade. You, Riade with us?’ E eles percebem, e alguns dizem: ‘Vamos.’»

Mas há outra forma de abrir portas. A conversa fica mais fácil quando conseguem explicar o seu projeto e sobretudo quando mencionam aquele que é um verdadeiro salvo-conduto. «Quando dizemos que queremos desejar boa sorte ao Ronaldo…. O Ronaldo é uma porta de abertura», diz Duarte, a contar como bastou falar de Portugal para quebrar o gelo na fronteira entre a Jordânia e a Arábia Saudita, quando estavam com problemas, depois de lhes pedirem dinheiro para sair do país e lhes dificultarem a entrada. «Mal dissemos que éramos de Portugal, eles disseram: ‘Ah, Ronaldo! Cristiano Ronaldo!’ Há logo sorrisos, quebra-se o gelo, cria-se alguma confiança e empatia. Temos algo em comum, que é o Ronaldo», diz Duarte: «Nós pensamos, se fossemos, sei lá, da Eslováquia ou de algum país que não tem uma super-estrela como o Cristiano Ronaldo, como é que quebraríamos o gelo?»

Um susto e a noção do privilégio

Mesmo assim não se livraram de alguns dissabores. Duarte relata o momento mais difícil por que passaram até aqui. «Foi a 30 ou 40 km da fronteira entre a Bulgária e a Turquia. A Bulgária e a Grécia são porta de entrada para a Europa, digamos assim. Toda a migração, nomeadamente os refugiados que estão a fugir da guerra, do norte de África ou do Médio Oriente, da Síria, do Afeganistão, passam por ali, ou tentam passar. Não sei até que ponto é de facto assim, mas o que sentimos é que existe um investimento por parte das autoridades europeias para armar os polícias nas fronteiras, de modo a não deixar que estes migrantes entrem na União Europeia», nota: «Nós estávamos numa estrada secundária, onde muitos destes refugiados tentam passar. E como estávamos já com alguns dias de viagem em cima e não tínhamos o aspeto mais limpo, tomaram-nos por refugiados.»  

«Também tomámos algumas decisões erradas. Um senhor da vila local convidou-nos para ficarmos a dormir na sua casa, que na verdade é uma barraca. Eles viviam em condições muito precárias», continua Duarte: «Não sei se foram as autoridades locais ou se eram civis, mas estávamos no lusco-fusco e entraram três homens com cães de caça e um deles com uma espingarda de sniper, a mandarem-nos sair de lá de dentro. Sacámos logo do passaporte e tentámos mostrar que éramos portugueses. A partir do momento em que eles perceberam que somos da União Europeia não nos incomodaram mais.»

Ficou o susto, mas também a consciência do privilégio. «Foi uma tristeza ver que se não tivéssemos aquele pedaço de papel connosco não teríamos sido tratados desta forma. Deu para imaginar o que estas pessoas que só querem procurar melhores condições de vida têm de passar», diz Duarte: «Eu gosto muito de Portugal, gosto muito de ser da União Europeia, mas não se pode dizer que tratamos todas as pessoas como iguais.»

Um projeto pelos refugiados e os direitos humanos

Esta experiência reforçou uma ideia que já tinham desde o início do projeto, a de contribuir de alguma forma para ajudar refugiados. Vão fazê-lo com o dinheiro que conseguirem angariar através da conta de Patreon que criaram para acesso via subscrição a alguns dos conteúdos que produzem, que será canalizado para uma organização ainda a definir, mas que será portuguesa. «Estamos a decidir entre duas. Eu próprio já ajudei uma delas, já ensinei português a umas refugiadas sírias, então sabemos que fazem um bom trabalho no sentido da integração destes refugiados em Portugal», diz Duarte: «No fundo, esta viagem está-nos a marcar nesse sentido. Antes de começar sabíamos que queríamos ajudar de alguma forma, mas agora temos uma direção muito maior.»

Este tema leva a outro, a questão dos direitos humanos no Qatar. «Algo que tivemos sempre em consciência foi a ideia de que vamos fazer a viagem pela viagem em si e não pelo destino, pelo país», diz Daniel: «Somos contra o facto de não respeitarem os direitos humanos e o nosso objetivo, o que queremos passar nos vídeos, é que não estamos a glorificar o Qatar. O nosso objetivo é estar mesmo focados na viagem em si, em desejar boa sorte ao Ronaldo e em tentar marcar o nosso ponto nesse sentido.»

«Nós somos homens. Sendo mulheres, se calhar não seria tão fácil, de todo. Acredito que fossem bem recebidas, mas o tratamento seria diferenciado. Uma mulher sozinha ou um grupo de quatro raparigas não podia ter as mesmas experiências que nós estamos a ter. Isso é triste. Mas isto quer seja cá quer seja mesmo na Europa», aponta por sua vez Duarte, notando que o assunto é complexo. Por isso, tem cuidado com as palavras: «Claro que apoiamos as pessoas que fazem ouvir a sua voz. Eu estou confortável com aquilo em que acredito e não vou lá para promover os estádios, o luxo, mas ao mesmo tempo também sei que não faz sentido, pela minha segurança, estar propriamente a fazer grandes boicotes.»

«Sair da zona de conforto»

Duarte aponta outro lado da questão, dizendo que o que têm visto e contado através das redes sociais, onde vão relatando a viagem, tem ajudado a sensibilizar as pessoas para outras realidades e problemas. «O impacto que temos tido junto dos portugueses tem sido super positivo. As pessoas têm-se sentido super interessadas no projeto e já temos recebido mensagens de pessoas que querem fazer mais coisas, querem sair da sua zona de conforto graças a esta viagem.»

Não há nada como conhecer a realidade dos outros, acrescenta Duarte. «Só vindo aos locais é que conseguimos ter uma perceção mais real sobre o que se passa.» E aquilo que vão levar desta experiência é muito positivo. «Eu já tinha alguns quilómetros de boleias nas pernas e há certas vivências que estão a ser comuns às que já tinha vivido, nomeadamente a de que 99,9 por cento das pessoas são ótimas, são boas pessoas. Estas viagens são abre-olhos nesse sentido. Por outro, é termos noção do privilégio que temos em termos nascido onde nascemos. E quem sabe, vamos ver como vamos no futuro utilizar essa benesse que recebemos.» Ser português também ajuda: «Temos muita sorte em sermos um país neutro, que é bem tratado. Nós nunca somos considerados uma ameaça, basicamente. Então conseguimos ver o lado bom de todos os povos.»

 

Chegar até Ronaldo

A viagem já vai longa e deu para muitas vivências, mas está longe do fim. Para já, eles estão dentro do calendário previsto. O passo seguinte é chegar a Riade. «O objetivo é fazer 450 km amanhã (sexta-feira). Desde que não aconteça assim nada nos próximos dias, estamos bem encaminhados.» Depois, o Qatar. «Se conseguíssemos uma boleia direta de Riade até à fronteira seria perfeito. Mas eu tenho 64 por cento de certeza que ainda vamos ter algumas tramas na fronteira entre a Arábia Saudita e o Qatar, porque aquilo está tudo muito organizado, mas não existe assim tanta informação sobre como chegar lá a pé», diz Duarte.

Já têm bilhetes para o Portugal-Gana, de outra forma nem conseguiriam entrar no país. «Com o bilhete temos o QR Code, que serve como visto», diz Daniel. Mas ainda têm de tratar do alojamento, outra condição para poderem passar a fronteira. «Essa parte temos que discutir, porque estão muito caros os apartamentos e os quartos de hotel. Estamos a tentar decidir quantos dias é que faz sentido ficar, até porque ainda queremos desejar boa sorte ao Ronaldo. Vamos ter que perceber onde é que ele vai estar e então vamos ver…»

A ver como corre. Daniel e Duarte contam que contactaram a Federação portuguesa, que os ajudou no acesso aos bilhetes. Mas garantir que chegam à fala com Ronaldo é outra conversa. «É muito inalcançável. Especialmente nesta altura, em que os jogadores vão estar super concentrados, não podem ter distrações. E quatro rapazes excitados porque querem desejar Boa Sorte ao Ronaldo pode ser o que não precisam neste momento», ri-se Duarte: «Felizmente estamos a ter bastante interesse por parte dos portugueses, muita gente tem acompanhado a aventura, por isso questionamos até se o Cristianinho não viu já uns videozinhos…»

A esperança não morre, como diz Daniel: «Ainda acreditamos que haja alguma maneira de chegarmos lá e dizer que conseguimos pelo menos dizer só: ‘Boa Sorte, Ronaldo.»

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