«Sábado à tarde nem um inseto vai voar»

9 nov 2018, 11:03
Boca Juniors-River Plate

O Maisfutebol juntou dois argentinos à conversa sobre o maior Superclássico da história: Chakall, o conhecido chef, é do River, o embaixador Oscar Moscariello é do Boca. Durante cerca de meia hora trocaram-se provocações, desfiaram-se memórias e falou-se de futebol. Puro e duro.

Sábado, dia 10 de novembro, 17 horas na Argentina (20 horas em Lisboa).

O maior confronto da história da Copa Libertadores, provavelmente também o maior clássico argentino de sempre, já tem hora marcada. River Plate e Boca Juniors, os dois históricos rivais de Buenos Aires, defrontam-se na final, tendo o primeiro jogo marcado para La Bombonera.

«Vai ser o maior acontecimento desportivo da América do Sul no séc. XXI.»

Ora para lançar o jogo, o Maisfutebol juntou o chef Chakall e o embaixador argentino em Lisboa Oscar Moscariello. São os dois argentinos, o primeiro é fanático do River Plate, o segundo é adepto (e ainda vice-presidente, já agora) do Boca Juniors. O encontro aconteceu à mesa, no restaurante El Bulo, de Chakall.

«O Boca duplica o River Plate em todos os troféus internacionais. O Boca tem seis Libertadores, o River três. O River tem uma Intercontinental, o Boca tem três. Em tudo é assim, em tudo.»

Ainda não nos sentámos à mesa e as provocações já começaram. O embaixador abriu as hostilidades.

«E em campeonatos nacionais? Diga, e em campeonatos nacionais?», devolve Chakall.

«Não me lembro bem.»

«É, tem uma memória curta. Taças internacionais é uma questão de ter sorte no sorteio, de jogar com equipas mais fortes ou mais fracas, de o jogo correr bem, tem muitas condicionantes. No campeonato nacional é diferente, ali é que se vê o que valem as equipas», atira Chakall.

«Mas os dois últimos títulos são nossos. O Boca Juniors é o clube sul-americano de maior sucesso no futebol, sem dúvida. Entre competições argentinas e internacionais, temos 68 troféus.»

Ultrapassadas as provocações iniciais, conseguimos por fim sentar-nos à mesa. Vem um café e uma água. A conversa a partir daí desenrola-se num tom muito cordial.

Fala-se de rivalidade, de futebol, de memórias.

«Na Argentina não se fala de outra coisa, sabe?», pergunta Chakall.

«Na Argentina não, no mundo», interrompe o embaixador. «Na segunda-feira estive na apresentação de um livro aqui em Lisboa, que fala do duelo Messi-Ronaldo, e até o Rui Costa veio falar comigo para me perguntar a que horas era o jogo. Vai a Tondela com o Benfica e queria arranjar uma maneira de ver o jogo.»

No sábado não vai haver uma única pessoa nas ruas, sugere-se.

«Não vai haver uma pessoa nas ruas? Não vai voar nem sequer um inseto. Vai estar tudo a olhar para La Bombonera», responde o embaixador.

«Basta estar na Argentina um dia para perceber o que é um River-Boca. É uma rivalidade que não existe igual no mundo. Muitas vezes vou ver jogos aqui em Portugal e vejo coisas muito boas, mas a maneira como as pessoas vivem o futebol na Argentina não é normal. É doentio», diz Chakall.

«Lembro-me sempre de ir com um amigo meu ao Monumental, ver o River. Ele é diretor comercial da Sony Music, é uma pessoa com cultura. Somos os dois fanáticos do River. Fomos ver um River-Atlético Tucumán. Portanto estamos a falar de uma equipa que não existe, de uma cidadezinha no norte da Argentina. Pois ele, o diretor de marketing da Sony Music, chegou ao lugar, virou-se para trás e passou o jogo inteiro a insultar os adversários. Eu dizia-lhe: vira-te para a frente, o jogo está ali. E ele sempre: filho da p..., hijo de m..., nunca viste um semáforo. Chegou ao final do jogo sem voz. Queria gritar e não conseguia. Os argentinos vivem assim o futebol. Um Boca-River não é o dia do jogo. É desde o dia do jogo até que voltem a defrontar-se: não vão falar de outra coisa.»

O embaixador Oscar Moscariello pega na palavra para concordar com o Chakall.

«Digo-lhe mais: quando o River ou o Boca estão em campo, não interessa contra quem estão a jogar, os cânticos são todos contra o Boca ou contra o River, respetivamente. Sempre, sempre. As outras equipas não existem, os adeptos ignoraram-nas. Só gritam cânticos contra o rival que está em casa, a ver o jogo pela televisão.»

«Isto tudo tem muito a ver com o lugar de nascimento, com o bairro», acresenta o embaixador. «River e Boca estão neste momento em pontas opostas da cidade de Buenos Aires, mas cresceram no mesmo bairro: o Bairro de la Boca. O Boca Juniors ainda vive lá, o River Plate mudou-se para o Bairro Nuñez, que agora se chama Bairro River. Por isso o Boca-River era um confronto de bairro. Depois a rivalidade foi crescendo e tornou-se histórica.»

«Agora um vive na zona sul, que é a mais pobre de Buenos Aires, e outro na zona norte, que é a mais rica, daí o River ser conhecido como Millonarios», acrescenta Chakall.

«Mas antigamente a zona norte era a mais pobre da cidade. Só que o desenvolvimento imobiliário estendeu-se para norte e a zona enriqueceu. O Bairro de la Boca era o local onde chegavam os emigrantes e sempre foi um sítio de gente humilde.»

É, portanto, neste humilde Bairro de la Boca, entretanto transformado em local de peregrinação turística, que no sábado River Plate e Boca Juniors vão disputar o mais escaldante jogo da história do futebol argentino. No mítico estádio de La Bombonera.

«Está claro que vai ganhar o River. Queres saber a verdade? Vai ganhar o River. Sinto-o no peito», atira Chakall.

«Sem dúvida que vai ganhar o Boca. Quando o Boca vence tudo muda de perspetiva. Encara-se a vida com mais otimismo, vai-se trabalhar mais satisfeito, as mulheres são mais bonitas, o mundo fica diferente», devolve Oscar Moscariello.

 

«Por que sou do Boca? Estás a pedir-me uma explicação racional e o futebol é coração e paixão. Podemos começar por tradição familiar, por influência dos amigos, enfim. No meu caso foi por intervenção do meu pai. Eu não vivia na Capital Federal, sou de uma localidade na província de Santa Fé, a vinte quilómetros de Rosário. Vivia ali mas seguia o Boca Juniors com o meu pai onde ele jogasse. Fazíamos muitos quilómetros atrás da equipa, numa época em que as estradas não eram como são hoje. Isso tem uma carga emotiva muito grande», acrescenta o embaixador.

«Fazer 300 quilómetros para ir ver o Boca, viver a viagem, ir comer a famosa pizza banchero do Bairro de la Boca, tudo isso faz com que as melhores recordações que tenho com o meu pai estejam ligadas ao Boca Juniors. O mesmo sucede hoje em dia com a minha filha e o meu neto. Também são fanáticos.»

Chakall, por outro lado, diz que se apaixonou pelo River Plate aos oito anos, depois de uma visita ao Estádio Monumental. A partir daí foi amor eterno. Proporcional ao ódio pelo Boca Juniors.

«Originalmente apoiava o Racing Avellaneda, porque a minha família é toda do Racing. Mas aos oito anos fui ao estádio do River Plate e fiquei maravilhado. Foi a primeira vez que entrei num estádio e fiquei encantando com o clube. A partir daí apaixonei-me. Ser do River é ser contrário ao Boca e ser do Boca é ser contrário ao River. O River é o maior de todos. Odiei o Boca toda a minha vida, embora agora menos, já consigo falar com um adepto do Boca», conta.

«Quando vivia na Argentina era pior, detestava o Boca. Mais do que o River ganhar queria que o Boca perdesse. Saí da Argentina em 97, portanto na época boa do River, quando ganhávamos muitos campeonatos com Ramon Díaz e Passarella. Felizmente já estava fora do país na descida à segunda divisão. Foi a pior coisa que podia ter acontecido. Mas já estava longe.»

A descida do River era um tema que interessava explorar. Por isso insistiu-se.

«Foi triste, claro, mas não foi tão traumático como seria se estivesse no país. Claro que me ligaram todos os amigos do Boca, chegavam mensagens umas atrás das outras, todos a gozar comigo. Mas para os adeptos do River que estavam no país, foi pior. Foi dramático. Absolutamente dramático. E imagino que para os do Boca tenha sido o dia mais lindo da vida deles», referiu Chakall.

«Não, não é verdade», intervém o embaixador.

«A verdade é que o Boca sem o River não é o Boca. E esse campeonato que jogámos sem o River não teve o mesmo prazer. O único prazer é que eles têm esse estigma que os vai acompanhar sempre: e quando estão a ganhar, podemos cantar-lhes se fueran a la B, se fueran a la B

A conversa continua sem paragens. O jornalista praticamente não precisa de intervir. Um tema traz outro tema, trocam-se ideias, desfiam-se memórias, falam-se dos heróis da vida de cada um.

«Mário Kempes, claro. Detestava o Maradona, quando ele apareceu, porque foi para o Boca e as pessoas diziam que era o melhor jogador do mundo. Não entendia isso, não podia haver ninguém no mundo melhor do que o Kempes. Agora já me passou, já não detesto o Maradona. Mas nessa altura era ódio, ódio, ódio. Ainda bem que jogou poucos anos no Boca Juniors», diz Chakall.

«Francescoli, claro. Vivi essa época toda, desde que começou, e era sublime. Passarella, também. E depois o Aimar. Mais tarde conheci-o quando estava no Benfica e tornou-se um bom amigo.»

Já o embaixador da Argentina em Portugal tem um nome que lhe é particularmente fascinante.

«O título de ídolo mais representativo do Boca Juniors é disputado entre Maradona e Riquelme. Mas quem o viu jogar não esquece o Rojitas. Jogou pouco tempo, mas deixou saudades. Depois também o Rattín, grande capitão, número 5 da seleção da Argentina. Mas para mim há outro nome: Martín Palermo. Foi o maior goleador da história do Boca Juniors», começa por dizer.

«Houve um jogo do Boca com o River Plate. O treinador do Boca era Carlos Bianchi e o treinador do River era Toro Gallego. Palermo tinha rompido os ligamentos cruzados e tinha estado fora dos relvados seis meses. Bianchi disse que Palermo ia jogar de certeza e Gallego respondeu que se Palermo jogasse ia pedir a Francescoli que voltasse aos relvados. Faltavam alguns minutos para o fim, o Boca ganhava 2-1 e Bianchi faz entrar Palermo», acrescenta.

«Então acontece uma daquelas coisas maravilhosas e mágicas que só se passam no futebol: deram a primeira bola ao Palermo, ele até parecia movimentar-se em câmara lenta, mas a verdade é que a defesa do River Plate abriu-se como por magia, permitindo ao Palermo rematar para o terceiro golo. O que se viveu na Bombonera naquele dia, no dia em que nosso ídolo voltou a jogar e fez um golo ao River, foi indescritível. Nas bancadas, na tribuna, toda a gente se abraçou e chorou.»

Nesta altura o embaixador interrompe o discurso, faz uma pausa, tira os óculos e limpa os olhos.

«Ainda me emociono a falar disso», diz com a voz embargada.

«Foi algo que ficou marcado para sempre nas nossas vidas. Palermo tinha uma coisa que só os grandes goleadores têm: não tinha medo do ridículo. Só queria olhar para a baliza e rematar, fosse como fosse. Por isso no dia em que se retirou, o Boca Juniors ofereceu-lhe a baliza do estádio.»

Chakall pega na palavra para dizer que é impossível falar dos grandes ídolos do River Plate sem mencionar os anos dourados de La Maquina, de Pedernera, Labruna e uma frente de ataque que fez história nos anos 40. Um pouco como os Cinco Violinos fizeram no Sporting.

«É curioso que fales de La Maquina», atira o embaixador Oscar Moscariello.

«O meu sogro, Roberto D’Alessandro, jogou em La Maquina de Roberto Cesarini e entrou no clube dos 100: o grupo de jogadores que fizeram mais de 100 golos no campeonato. Nessa altura o clube mais poderoso da Argentina era o Racing e então comprou o número 9 de La Maquina, que era o meu sogro. Sabes como se chamava o suplente dele no River? Ángel Labruna. Começou a jogar depois do meu sogro sair e se tornou-se um dos maiores ídolos de sempre do River Plate.»

Chakall aproveita uma pausa para virar a conversa do avesso e falar do jogador que mais detesta. Um jogador que, curiosamente, passou pelo Benfica. Claudio Cannigia

«O Cannigia fez-se no River Plate. Formou-se nas camadas jovens do clube e estreou-se na equipa principal. Depois saiu para a Europa e quando regressou à Argentina assinou pelo Boca Juniors e disse que toda a vida foi Boca. Gerou muito ódio entre os adeptos do River. Para nós, que adorávamos o Caniggia, foi brutal: um golpe muito duro.»

A conversa está boa, mas já vai longa.

«Nessa altura, quando o River Plate ganhava, comprava três jornais, lia tudo e relia quase como se estivesse a ter um orgasmo», insiste.

O encontro termina com uma troca de galhardetes. Literalmente. O embaixador entrega o galhardete oficial do Boca Juniors a Chakall e o chef oferece-lhe a camisola do River Plate.

«Vou dar-lhe a camisola para que segunda-feira quando for trabalhar possa levar a camisola da equipa vencedora», atira Chakall.

«Está bem, está bem», sorri o embaixador.

«Eu no sábado vou ter uns convidados em casa, mas depois ligo-te a ver se podemos arranjar aí uma mesa para ver o jogo.»

«Mas são todos do Boca?», pergunta o chef.

«Não, alguns são estrangeiros.»

«Então está bem. No sábado vou colocar aqui um ecrã gigante para vermos o jogo. Depois diga alguma coisa.»

O superclássico está lançado no El Bulo, portanto. Agora que venha esse jogo. Porque naquele restaurante, tal como em Buenos Aires, nem um inseto vai a voar.

Sinta um cheirinho do que costuma passar-se em Buenos Aires:

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