Rússia-Ucrânia: a ameaça do conflito que já derrubou atletas em combate

4 fev 2022, 22:55
Donbass Arena

Cerca de metade dos atletas olímpicos ucranianos pertencem às forças armadas e a relação com a Rússia já obrigou o governo a mudar leis desportivas. O povo está a ser armado e haverá sempre desportistas na linha da frente de um possível confronto

O peso de 35 dias de cativeiro nem fez tremer a firmeza de Temur Yuldashev.

Dias depois de escapar das forças pró-russas que o tinham capturado na sua Luhansk natal, Yuldashev já encabeçava novamente o batalhão que se propunha defender Savur-Mohyla, perto de Donetsk, dos separatistas russos.

«Teremos muito mais força para travar esses traidores do que aquela com que eles nos querem obrigar a viver como uma só nação», diria numa entrevista dias depois de se ter libertado do cativeiro.

E de força percebia o tricampeão ucraniano, bicampeão europeu e campeão Mundial amador de levantamento do peso.

Mas uma guerra não é uma competição de força. E Temur Yuldashev cairia morto a 24 de agosto durante os confrontos entre grupos populares ucranianos e forças militares pró-russas.

O corpo de Temur Yuldashev esteve mais de um ano desaparecido antes de a famíla lhe conseguir fazer o funeral

Em fevereiro daquele sangrento 2014, a tensão na zona leste da Ucrânia atingira o pico, com as tropas separatistas russas a invadirem a região de Donbass já depois da anexação da península da Crimeia, a sul.

Era, portanto, de orgulho ferido que Temur Yuldashev combatia pelo país que já orgulhara em termos desportivos.

Era também, inevitavelmente, com um desejo de vingança que o fazia. Tinha em ferida a morte de milhares de compatriotas nos meses anteriores.

Mortes como a de Dmytro Maksymov, a 19 de fevereiro, em Donetsk.

Aos 19 anos, e pouco mais de seis meses após ter conquistado duas medalhas no Campeonato do Mundo de Judo para surdos, Maksymov não resistiu à hemorragia provocada por uma granada que lhe arrancou o braço direito pelo ombro.

A surdez que o afetou ainda criança, mas que não o tinha impedido de se tornar numa promessa do judo ucraniano, acabou por ser fatal no cenário de protestos que a Ucrânia viria a chamar de ‘Revolta da Dignidade’.

Dmytro não ouviu os gritos de um antigo polícia que avisava os protestantes que estavam a ser atacados com granadas verdadeiras. Ao ver pessoas feridas de um lado da praça, o judoca ter-se-á aproximado para as ajudar. Pagou com a vida o preço de as salvar.

O corpo de Dmytro Maksymov foi reconhecido por um treinador, uma vez que a mãe foi impedida de fazer o reconhecimento devido ao estado em que ficou o corpo

«O corpo daquele miúdo abafou quase todo o impacto da explosão da granada e com isso salvou a minha vida e a de pelo menos mais dez pessoas», relataria Vadim Sizonenko, o tal antigo polícia que estava perto do local onde tudo aconteceu.

Qualquer morte em cenário de guerra é chocante. Mas o quadro torna-se mais tenebroso tratando-se de uma situação como a vivida por Stepan Chubenko.

Aos 16 anos, o jovem guarda-redes de um pequeno clube da cidade de Kramartorsk, foi brutalmente torturado e depois morto a tiro por três militares pró-russos.

O crime de Chubenko foi ter um laço com as cores da Ucrânia preso na mochila que transportava às costas quando passava por Donetsk numa viagem de regresso a casa.

Sinistro.

Stepan Chubenko foi alvo de várias homenagens, entre elas uma estátuo no estádio onde jogava

Mais ainda quando volta a pairar sobre a Ucrânia e a Rússia um clima de tensão como aquele que se viveu em 2014 e cujas cicatrizes estão longe de sarar.

Temur Yuldashev. Dmytro Maksymov. Stepan Chubenko.

Os três receberam postumamente o título de Heróis Nacionais. Mas as suas histórias não os livraram de se tornarem em mais três gotas no mar do sangue de mais de 14 mil pessoas que perderam a vida na região leste da Ucrânia desde 2014. E que muitos temem agora que venham a aumentar.

E mais uma vez, é muito improvável que os estilhaços desse conflito não voltem a ferir de morte o desporto ucraniano.

«Metade dos nossos atletas olímpicos são membros das forças armadas ucranianas»

Os conflitos de 2014 mudaram o desporto ucraniano em muitos aspetos. A própria lei do país foi alterada e, em 2018, o Governo deixou de financiar a preparação de atletas ucranianos para qualquer competição que aconteça na Rússia.

Aliás, as federações foram desaconselhadas a participar nas competições organizadas no país vizinho, uma vez que não existe qualquer relacionamento governamental entre os dois países.

«Estamos há oito anos a sofrer agressões às mãos da Rússia, houve milhares de mortes e temos mais de 1,5 milhões de refugiados internos, é natural que nos tenhamos adaptado à nova realidade», explica ao Maisfutebol Pavlo Bulhak, antigo conselheiro de Ihor Zhdanov, Ministro da Juventude e do Desporto da Ucrânia entre 2014 e 2019.

Pavlo Bulhak foi conselheiro do antigo ministro do Desporto da Ucrânia

Pavlo Bulhak não tem dúvidas de que um possível conflito iria ter um impacto gigante no desporto do país. E a ligação é muito mais direta do que se pode imaginar.

«Cerca de metade dos nossos atletas olímpicos são membros das forças armadas da Ucrânia. Alguns do Exército, outros das guardas fronteiriças. E em caso de conflito é natural que sejam mobilizados para combater pelo país», revela, em conversa por telefone, antes de explicar o perigo que podia representar a ida desses atletas a território inimigo, mesmo que em contexto desportivo.

«Seria muito perigoso para eles participar em competições na Rússia porque, sendo elementos das forças de segurança da Ucrânia. não haveria garantias de que não fossem detidos ou castigados», sublinha.

O boicote ao inimigo bélico, porém, não se fica pela ausência de competições em solo russo.

Com os Jogos Olímpicos de Inverno a decorrer na China durante este mês de fevereiro, os atletas ucranianos levaram indicações claras do Governo.

«Foi-lhes aconselhado a evitar contactar com atletas russos e a não surgirem em fotografias com eles também. A situação está num ponto muito sensível e até para segurança deles, têm de ter esse cuidado porque mesmo que possam ter amizade com os adversários, o que é normal, não seria bem visto pelo povo que está a sofrer às mãos da Rússia», detalha Bulhak.

Toodos os anos, em fevereiro, há memoriais para as vítimas dos conflitos na zona de Donbass

«Um conflito será catastrófico, mas se for para combater pela independência…»

O cenário que se vive neste momento em grande parte da Ucrânia é de uma espécie de ‘Guerra Fria’, com o exército russo posicionado junto às fronteiras e o governo liderado por Vladimir Putin a ameaçar avançar sobre o território ucraniano a qualquer momento.

Por isso, quando perguntamos a Pavlo Bulhak se o sentimento geral é o de que estamos mais perto do que nunca de uma guerra, a resposta surge em forma de aviso… ao opositor.

«Vivemos uma situação muito perigosa. Há mais de cem mil soldados russos junto às nossas fronteiras. Por isso, há muitas pessoas que estão a preparar-se para enfrentá-los, se tiver de ser», revela.

«As populações das nossas grandes cidades sentem-se ameaçadas e estão prontas para a luta. Uma guerra seria catastrófica não só para a Ucrânia como para toda a Europa, mas se tivermos de o fazer, vamos lutar por manter a nossa liberdade e independência como nação», acrescenta o elemento ligado ao antigo governo.

Aquilo que nos transmite Bulhak é que a Ucrânia sente que a ameaça é real. E por isso já avançou para a aprovação de legislação que legitima a defesa do seu povo.

«Foram aprovadas no Parlamento leis que permitiram o armamento e a formação militar para que as populações se possam defender de um possível ataque. Já foram distribuídas mais de 100 mil armas para que as pessoas se possam defender», remata, sem esconder alguma preocupação com a possibilidade de o conflito se tornar realidade.

Falamos com Bulhak na véspera de um Ucrânia-Rússia no Europeu de futsal. E apesar de nos ter garantido acreditar que «dentro do campo a tensão não se fará sentir» - como aconteceu, de resto – em jogo não estava apenas uma partida de futsal.

«É um jogo decisivo e há sempre emoções em campo. Todos têm de perceber que não é apenas um jogo entre duas seleções, mas sim um confronto entre duas nações que estão a viver um momento de tensão que pode levar a uma guerra», sublinha, antes de concluir.

«Já antes da invasão de 2014, havia grande rivalidade entre Ucrânia e Rússia, mas neste momento, mais do que simples adversários, somos inimigos», remata.

Shakhtar: o gigante de Donetsk que se tornou nómada

Em termos desportivos, o primeiro grande impacto do eclodir dos confrontos em 2014 foi a saída do Shakhtar da cidade de Donetsk.

O gigante que conquistou 12 dos últimos campeonatos da Ucrânia teve de bater em retirada, deixando para trás um luxuoso complexo desportivo que tinha ganhado dimensão internacional após o Europeu que a Ucrânia organizou em 2012, juntamente com a Polónia.

O último jogo realizado pelo Shakhtar na Donbass Arena aconteceu no dia 2 de maio de 2014. E o clube não conseguiu sequer festejar na cidade o pentacampeonato que viria a conquistar poucas semanas depois.

O Shakhtar tornou-se então um clube nómada. Lviv. Kharkiv. Kiev.

A Donbass Arena foi atingido por rockets das milícias pró-russas

Foi esse cenário de um clube com a casa às costas que foi encontrado em 2016, quando Paulo Fonseca e a sua equipa técnica assumiram o comando do Shakhtar.

Da equipa fazia parte Nuno Campos, que se estreou como treinador principal na Liga este ano, ao serviço do Santa Clara.

Convidado a recordar os três anos vividos na Ucrânia, o técnico só tem palavras elogiosas… e um lamento.

«Durante todo o tempo, vivemos em Kiev e o mais próximo que nos podíamos aproximar de Donetsk era Mariupol, que fica a cerca de 80 quilómetros», introduz, revelando que a equipa técnica morou sempre na capital, Kiev.

«Com muita pena nossa, nunca tivemos oportunidade de ir a Donestk. Não era recomendável, por motivos óbvios», nota, revelando a forma saudosa como os responsáveis do clube recordavam o complexo que era a sua casa, entretanto alvo de bombardeamentos.

«Toda a gente falava com grande orgulho do que havia em Donestk. Um complexo que incluía um hotel de cinco estrelas, vários relvados e um centro de treinos do mais moderno que existia. As pessoas lamentavam que nós não pudéssemos conhecer o espaço», acrescenta.

A imagem da Donbass Arena reproduzida no novo ginásio do Shakhtar foi o mais próximo que Nuno Campos esteve de a conhecer

Mas era impossível. À semelhança do que aconteceu com outras estruturas de Donetsk – como o aeroporto, completamente destruído pelos rockets russos – o estádio foi atingido, deixando claro que seria impossível o regresso a casa.

Ainda assim, o proprietário do clube, o empresário multimilionário Rinat Akhmetov, ainda conseguiu fazer do estádio um centro de apoio logístico à população, depois de inicialmente o espaço ter sido tomado pelas milícias russas.

O estádio do Shakhtar, em Donetsk, foi transformado num centro de apoio humanitário

Juntamente com a logística associada a um clube que marca presença todos os anos nas competições europeias, tirar o Shakhtar de Donetsk implicou mudar familiares e pessoas próximas de jogadores e staff. Mas nem todas deixaram a região, como recorda Nuno Campos.

«Os familiares mais velhos de alguns funcionários do clube não quiseram deixar Donetsk. Tinham ali as suas vidas todas. Passaram a ter recolhimento obrigatório, viviam com as dificuldades associadas a uma zona em conflito, mas nunca tivemos notícias de que algum tivesse sofrido ferimentos», aponta.

O aeroporto de Donetsk foi destruído pelos separatistas russos

Agora, perante as notícias de um conflito iminente, Nuno Campos admite sentir «grande apreensão».

«Tenho uma ligação muito forte àquelas pessoas e um país onde passei alguns dos melhores anos da minha vida, não só em termos desportivos, mas também humanos. Sinto na pele o que está a acontecer, como se estivesse lá».

Nesse sentido, o treinador teme o efeito destrutivo que um possível conflito possa trazer à Ucrânia.

«Uma guerra nunca é boa, mas a acontecer, esta será terrível para a reconstrução do país. Tenho muito receio do que pode acontecer ao povo ucraniano», admite.

E quanto a um possível regresso do Shakhtar a Donetsk, será que as pessoas ainda acreditam que isso possa vir a acontecer?

«Quando estivemos no clube, as pessoas ainda acreditavam que um dia poderiam voltar a Donetsk, mas neste momento acho que já perderam essa esperança. Entretanto, criaram todas as estruturas em Kiev e estão a construir o clube quase de raiz. Para voltar a Donetsk terá de voltar a construir tudo de novo», aponta.

«D. Kiev e Shakhtar no mesmo estádio? Há enorme respeito pela realidade»

Nuno Campos e Fernando Valente não se cruzaram no Shakhtar por poucos meses. O experiente treinador, de 62 anos chegou ao clube em julho de 2019, no verão em que a equipa técnica de Paulo Fonseca se mudou para a Roma.

Contudo, a ideia com que Nuno Campos ficou no momento da saída não difere muito daquela que é transmitida por Fernando Valente.

«O Shakhtar está completamente instalado em Kiev. Foram construídos dois polos de treino: um para o plantel principal, num antigo estádio a 35 quilómetros da capital que foi recuperado; e outro para a formação noutro ponto da cidade com quatro campos relvados e dois sintéticos, num complexo que inclui um hotel, escola e zona habitacional», revela.

«As coisas estabilizaram, o clube estabilizou e isso está a ter um impacto grande. É verdade que se perdeu grande parte da base de apoio, mas o Shakhtar tem adeptos em todo o lado», enaltece.

De resto, Valente garante que durante os dois anos que passou na Ucrânia, como treinador da equipa de sub-21 e coordenador da formação, nunca se sentiu a tensão russa.

E também não houve qualquer problema no facto de o Shakhtar e o Dínamo Kiev, que repartiram entre si a conquista de todos os campeonatos desde 1992-1993, terem passado a partilhar o mesmo estádio.

«Estamos a falar de uma rivalidade que pode ser comparada a um Benfica-FCPorto, mas apesar de tudo há um enorme respeito pela realidade do que aconteceu ao Shakhtar», elogia.

Fernando Valente mantém ligação sentimental... e não só ao Shakhtar

Apesar de ter deixado o clube no verão de 2021, devido ao fim da equipa de sub-21, Fernando Valente mantém uma ligação muito forte ao Shakhtar.

A melhor prova disso é que mantém a conversa telefónica com o Maisfutebol desde Barcelona, para onde se deslocou, entre outros contactos, para rever antigos colegas e jogadores, uma vez que a equipa de sub-19 do Shakhtar participa ali num torneio.

«Há uma ligação muito intensa e existe a possibilidade regressar, porque não houve qualquer problema na saída e a relação é ótima», admite.

A questão seguinte torna-se, por isso, obrigatória: nem um possível conflito apaga essa vontade de voltar à Ucrânia?

«Já pensei nisso várias vezes. Mas tudo iria depender das condições e garantias que me poderiam dar. O conflito existe desde 2014, mas os ucranianos não dão muita importância na sua vida diária. Em dois anos, nunca senti qualquer insegurança. Por isso vamos ver o que acontece. Mas a vontade de ir é grande», admite.

A mensagem de Fernando Valente é, por isso, a de esperança. A mesma que estará na cabeça de milhões de ucranianos perante a tensão crescente.

A esperança de que não avance o conflito. De que as tropas russas recuem. De que o país se salve de novo conflito.

Caso isso não aconteça, o desporto será apenas mais uma área afetada. E a probabilidade de mais atletas virem a cair em combate é bem real.

Que se mantenha a esperança. 

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