Dez euros para ver um nadador-salvador fazer História na Taça

17 nov 2021, 09:32

O FC Serpa quer ter 1500 espetadores no duelo contra o Estoril-Praia. Rui Óca é avançado, capitão e atleta do clube há 20 temporadas. Simboliza a união entre os custos do amadorismo e o brio da ambição. «Desde pequenino sonho mostrar o meu clube ao país.»

Domingo, 11 horas, Complexo Desportivo Manuel Baião. O país futebolístico volta a olhar para Serpa e para o FC Serpa. A Taça de Portugal tem mais encanto no Baixo Alentejo.

Caiu o Olivais e Moscavide, caiu o Sp. Covilhã. Cairá o Estoril-Praia?

Na cidade caiada de branco, o futebol luta para ter o mesmo reconhecimento das outras iguarias culturais serpenses. O afamado queijo, as inigualáveis migas, o vinho e o azeite, a irresistível açorda.

Um manjar dos deuses, uma delicatéssen dos sentidos. E se ao som do cante alentejano, cujo museu a cidade inaugurou em agosto, ainda melhor.

Digestão feita, venha de lá essa bola a saltar.

Campeão nacional da 3ª divisão em 1957, duas presenças na antiga 2ª divisão nacional, a fazer pela vida e a regenerar-se em 2021. A via da Taça de Portugal dá ao FC Serpa e à cidade a visibilidade que muitos julgavam perdida.

A dias do mais importante jogo da história recente dos serpenses, o Maisfutebol visita o balneário alentejano e conhece personagens riquíssimas.

A militar no Campeonato de Portugal, e com um orçamento que não ultrapassa os 50 mil euros/época, o FC Serpa faz das tripas coração e da ambição uma condição inegociável.

Há um nadador-salvador, um forcado, empregados fabris, um forcado, quatro operários da construção civil, um mecânico de aviões, 25 candidatos a heróis.

Taça.

«Por uns dias, até parece que o Alentejo não foi esquecido»

Margem esquerda do Guadiana, 14 mil habitantes – foram 35 mil em 1950 -, o vírus do despovoamento, o isolamento imposto pelos governos de juras esquecidas e promessas adiadas.

Serpa é um paraíso demasiado longe para os desmandos do futebol profissional. Mas resiste. A atual direção do FC Serpa está há três anos em funções e capitaliza a Taça de Portugal para recolocar o Alentejo no mapa do ludopédio.

José Fernando, diretor desportivo, faz o retrato deste candidato a verdadeiro tomba-gigantes. «Temos 600 sócios e partilhamos um campo municipal com outras instituições da cidade. A bancada leva 238 adeptos e o resto é tudo peão. Esperamos cerca de 1500 pessoas para o jogo de domingo.»

É só fazer as contas. Os sócios pagam cinco euros, os não sócios pagam dez. Se o campo encher, o FC Serpa pode fazer cerca de dez mil euros só com a bilheteira, uma fortuna para um clube com um orçamento tão modesto.

«Subimos aos nacionais, 14 anos depois. Dentro do nosso profundo amadorismo, tentamos ser profissionais. Temos os pés bem assentes no chão, até porque apanhámos em 2018 o clube numa situação difícil. A nossa ideia era devolver o FC Serpa aos campeonatos nacionais e conseguimo-lo.»

A festa pelo regresso aos Nacionais (FOTO: facebook FC Serpa)

Rui Óca, 31 anos, conhece como ninguém a cidade e o clube. Joga no FC Serpa há 20 temporadas consecutivas e, como bom avançado, espera fazer um golo no domingo.

«Desde pequenino que tinha o sonho de mostrar o FC Serpa ao país. A exigência no Campeonato de Portugal nada tem a ver com o distrital e isso explica os resultados baixos desta época. Temos um plantel com técnica, mas a quem falta ainda intensidade. Estamos a aproveitar a Taça de Portugal para aprender e subir de nível.»

Rui é, de resto, um exemplo perfeito da mistura entre a limitação do amadorismo e ambição profissional. «Sou nadador-salvador e trabalho na piscina municipal de Serpa. Durante o verão estou na piscina aberta e no inverno na piscina fechada», explica este filho da terra.

«Temos aulas de miúdos e de idosos, tenho sempre de estar por perto. Sou obrigado a estar sempre em forma, mas claro que às vezes chego aos treinos com menos energia.»

Nada que o tenha atrapalhado, por exemplo, contra o Sp. Covilhã na eliminatória anterior. «Tivemos alguma sorte, claro, mas a dada altura do jogo já nos sentíamos iguais a eles. Adiámos o golo do Covilhã e fomos felizes. Temos gente com qualidade, o jogo dará na televisão e terei toda a família na bancada. Vai ser lindo.»

Rui Óca: 20 anos de dedicação ao FC Serpa (Arquivo pessoal)

Por falar em treinos, o comandante técnico deste grupo chama-se Marcos Borges. Tem 35 anos, é natural de Mértola e está radicado há 11 anos em Serpa.

«Somos a única equipa alentejana em prova e nunca chegámos tão longe. Felizmente o jogo é mesmo em Serpa. Sabemos que não vamos ganhar a taça, mas aqui temos mais conforto. Contra os três grandes seria difícil jogar em Serpa, assim foi o melhor dos dois mundos.»

Marcos Borges é um antigo guarda-redes, ligado há mais de uma década ao FC Serpa. Lamenta a «dificuldade enorme» de montar projetos competitivos no Alentejo e considera «histórico» tudo o que a sua equipa está a fazer na Taça.

Tem toda a razão.

«A vossa reportagem é um exemplo disso. Estão a falar de nós e interessados por nós. Durante uns dias até parece que o Alentejo não foi esquecido por ninguém.»

«Nada de noitadas: é deitar cedo, dormir bem e depois veremos»

Quatro vezes por semana, às 19h45, o apito de Marcos Borges assinala o início do treino. Todo o plantel é amador e tem outra ocupação, além do futebol. Receber o Estoril-Praia, o atual quarto classificado da I Liga, só pode acentuar o orgulho destas gentes.

Marcos é licenciado em Ciências de Desporto e trabalha na Câmara Municipal de Serpa. Assume que a semana de treinos será «especial» mas, ao mesmo tempo, a «mais fácil de todas».

«O trabalho de motivação é dispensável. Todos querem jogar e darão o máximo. O meu desafio à equipa é simples: quero-os a jogar nos limites, a dar aquele bocadinho a mais e a mostrar que têm nível para outros patamares.»

Domingo, às 11 horas, estes homens têm encontro marcado com a História
(Facebook FC Serpa)

No plantel do FC Serpa há quatro futebolistas brasileiros – trabalham todos na construção civil – e o guineense Iaquinta. O restante grupo é português, a esmagadora maioria alentejano.

Marcos Borges terá especial cuidado na gestão física da equipa. «Temos gente que passa muitas horas a conduzir e que chega cansada. O Carlos Daniel trabalha no aeroporto a reparar aviões e passa muitas horas de pé, há dois que trabalham em ginásios e vêm já com um trabalho físico pesado, enfim, temos de olhar para tudo isto.»

Como o jogo se realiza na manhã de domingo, o treinador quer «descanso total» no sábado. Não há treino, não há palestra, não há estágio.

«O que treinaríamos nesse dia não nos daria nenhum retorno. Quero que eles descansem bem, que se deitem cedo e que acordem bem-dispostos para tentar fazer história.»

Rui Óca, capitão e um dos líderes do plantel, não contraria o treinador.

«Nada de noitadas (risos). É deitar cedo, dormir bem e domingo, depois do jogo, veremos.»

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