Dragão pela madrugada na VCI, o braço de Luisão e outras histórias dos autocarros dos clubes

24 mar 2023, 09:06
Autocarros de FC Porto e Benfica [Fotos: (Photo by Octavio Passos/Getty Images) e (MIGUEL RIOPA/AFP via Getty Images)

Do FC Porto ao Benfica, passando pelos clubes das divisões distritais, segredos e episódios memoráveis em torno dos veículos que transportam as equipas (e a esperança dos adeptos) de domingo a domingo. Os exemplos de Estoril e Alpendorada e ainda histórias em Portugal a envolver uma final da Champions e uma visita do Besiktas a Alvalade.

Transportam a esperança de milhares de adeptos. Em mais uma vitória. Por mais um dia de glória.

Quando passam numa qualquer estrada, captam a atenção do adepto. Valem a fotografia. Uma apitadela.

Na viagem a caminho do estádio, lá dentro, os jogadores. Cá fora, os adeptos. A menos de duas horas do início do jogo, não raras vezes, multidões para saudar os seus ídolos.

Muito distinguidos pelas cores e pelo símbolo, têm inscritos pedaços de história. Os títulos. São uma marca de qualquer clube: os autocarros.

Autocarro do FC Porto a chegar ao Dragão (Foto: Octavio Passos/Getty Images)

A cada quilómetro que fazem, espalham a identidade do clube. De Norte a Sul e além-fronteiras. Tons amados, se é o clube do coração. Talvez desdém se não o for. Por vezes (lamentáveis) apedrejamentos…

Do FC Porto ao Benfica, passando por outros clubes das ligas profissionais e seleção, a marca dos clubes é também deixada nos seus autocarros através da decoração exterior. No novo século, o fenómeno é crescente – não só no futebol – tanto que muitos clubes dos distritais procuram transmitir a sua identidade através das viaturas. Sejam autocarros ou carrinhas. Pelo meio, a digitalização ajudou a acelerar o trabalho de bastidores.

O processo envolve criatividade. Adequação à história. E também histórias para contar. Ou não fosse importante, por exemplo, antes de lançar um autocarro, manter em segredo a nova pele.

Gaia-Dragão às escondidas e as caras no autocarro do Benfica

Prever a hora e o dia de menor trânsito para levar o novo autocarro desde Gaia até ao Estádio do Dragão, sem ninguém ver pelo caminho?

Foi o que aconteceu em 2017 com o FC Porto.

«Foi engraçado. Era a primeira decoração do autocarro novo. Para quem não sabe, quem está aqui [ndr: pintado no autocarro, com cara cortada] é o Dalot, na altura era atleta do FC Porto e personifica as sete vitórias internacionais do FC Porto. Há sete imagens diferentes, todas com os equipamentos das vitórias que o FC Porto teve nas competições internacionais. O desafio maior foi onde guardar o autocarro e, depois de estar pronto, como fazer para levá-lo de Gaia até ao Dragão, passando pela VCI, quando já havia rumores de que estava em Gaia a ser decorado. Foi numa segunda-feira, supostamente era o dia em que havia menos trânsito na zona do Porto. Houve um estudo prévio de qual era o dia em que havia menos trânsito e toda a gente chegou à conclusão de que segunda-feira era o dia em que estava tudo em casa, especialmente às 4h da manhã e fomos com o motorista buscar o autocarro. Atravessámos Gaia e a VCI a correr e foi entregue no Dragão, sem problema e supostamente sem fotografias pelo caminho. Foi uma história gira e ninguém sabe, por vezes, o que passamos para manter este segredo», conta ao Maisfutebol João Paulo Teixeira, diretor comercial da Foco Criativo, empresa que decorou então o autocarro portista e que já o fez com mais de metade dos clubes da I Liga.

Autocarro do FC Porto (Fotografia cedida: Foco Criativo)

Em 2018/19, na altura em que Rui Vitória treinava o Benfica – seria rendido a meio por Bruno Lage – João Paulo e a sua equipa trabalharam em Lisboa no autocarro do Benfica, que tinha forrados os rostos de Rui Vitória e de André Almeida, Luisão, Jardel, Fejsa e Salvio. A dada altura, enquanto trabalhavam, deram de caras com o plantel.

«Os jogadores aproximaram-se do autocarro e começaram a comentar. Lembro-me do Pizzi e do Rafa, vinham juntos e começaram a comentar: “Eh pá, não estamos aqui”. E eu expliquei-lhes, que já sabia: “Meus amigos, quem está aqui são os capitães”. Só a primeira imagem é que era os capitães do Benfica. E eles ficaram descansados. Depois, até final da época, mudámos várias vezes o tema, entrou depois o Bruno Lage e foi sempre mudando. Acabaram por ter os jogadores todos no autocarro até ao fim da época. Houve uma altura em que tinha o João Félix, o Seferovic…».

Voltando às imagens dos capitães, ainda há um detalhe a contar. «Estava lá o Luisão a questionar como é que aquilo era feito e foi giro. Na altura, na imagem que nos mandaram [ndr: por parte do Benfica], o Luisão tinha o braço partido e alguém se esqueceu e estivemos a retocar o gesso e a meter-lhe outro braço por cima (risos). Este braço nem é dele, mas nunca ninguém reparou. Pelo menos tirámos o gesso, que nada tinha a ver (risos)», recorda.

Autocarro do Benfica em 2018/19 (Fotografia cedida: Foco Criativo)

Entre os clubes da I Liga com preocupações em torno do seu autocarro – imagem, mas não só – está o Estoril. No início de março, na apresentação da nova viatura, o clube comprometeu-se a «compensar o planeta pelas emissões de carbono», na sequência de outras iniciativas ambientais dentro do clube, como a plantação de árvores por cada golo, garrafas reutilizáveis ou equipamentos feitos de material reciclado. E, na medida de outros episódios, o Estoril tentou seguir… a linha. E manter o segredo até revelar o autocarro.

«Gostamos sempre de achar que vai criar surpresa, mas para nós teve este inconveniente: o autocarro foi decorado no Porto e teve de vir para o Estoril. Tivemos de trazê-lo à noite, para ver se ninguém via o autocarro, ou o mínimo de pessoas, para depois estar escondido até estar pronto. Veio à noite para começar a ser filmado no dia a seguir», diz ao nosso jornal Guilherme Müller, diretor-geral do clube, explicando ainda o objetivo sustentável com o autocarro e também a ideia da decoração. «A ideia era uma imagem que fosse um bocadinho disruptiva. Nem estava no projeto inicial, mas a frente do autocarro acabou por ser preta, porque temos uma forma carinhosa de tratar o Estoril pelo “mágico” e a ideia é que, quem olha para o autocarro de frente, parece que vai ser todo preto, mas depois há uma espécie de magia e o autocarro começa com cores por todo o lado. Visualmente criou uma imagem de força. Estamos a estudar projetos já implementados, de biomassa ou de construção de centrais fotovoltaicas e neste momento estamos a fechar uma parceria nesse sentido e, acho que a curto prazo, vamos compensar as emissões. A ideia é que ao final do ano tenhamos compensado todas as emissões que o autocarro faz nesse ano», diz.

Vestir a camisola de cada clube

Do autocarro em branco até ao produto final, é preciso vestir a camisola. Mesmo que não se seja adepto do clube em questão. «Cá dentro da casa, vestimos a camisola desse clube, somos 40 adeptos desse clube, por muito que custe por vezes, porque há aqui pessoas que gostam muito dos clubes e isso é o engraçado total da questão, porque quando vemos o resultado do autocarro a ser apresentado, para nós o orgulho é imenso», atesta João Paulo Teixeira.

Outro aspeto importante é o das cores em cada clube. «Num carro do FC Porto, Benfica ou Sporting, não podemos ter cores antagónicas, ou que choquem na questão de o FC Porto não poder ter vermelho ou o Benfica azul, temos de ser sensíveis».

Há também a necessidade de deixar espaços em dadas zonas, para quando há novos títulos. «Por exemplo, o FC Porto tem uma zona em que tem a Liga dos Campeões e, se tiver mais uma, tínhamos de retirar o 2 e meter o 3, com os troféus todos que ganhou», exemplifica.

Até porque, defende, o autocarro é uma imagem forte dos clubes. «As pessoas depois identificam-se muito no carisma que o autocarro traz, é a joia da coroa».

A moda que já chegou aos clubes dos distritais

Uma joia que também já o é para os clubes de divisões mais baixas. Não só na I, II Liga ou Liga 3 se veem autocarros de clubes decorados a rigor. A moda já chegou a dezenas de clubes das divisões distritais. Nestes casos, ao contrário de clubes da I Liga que concebem as imagens originais através dos seus departamentos de marketing/comunicação, há quase sempre um apoio exterior.

«Na parte do distrital, já entra o nosso trabalho mesmo em termos de design. Os clubes chegam até nós e dizem: “Nós gostávamos de ter um carro parecido com”. Dão-nos liberdade de design e aqui sim, o trabalho começa a ser nosso e para nós é engraçado, sentimos esse orgulho. Metemo-nos na pele deles. Ouvimos as opiniões de toda a gente e temos de incorporar o historial do clube num autocarro», refere João Paulo, enumerando, no caso, vários autocarros clubes dos distritais, nomeadamente da AF Braga (Gonça, Cabreiros ou Este) próximos da sede da Foco Criativo, na Póvoa de Lanhoso, mas também dos nacionais, como Amora ou V. Sernache.

SC Cabreiros, dos distritais de Braga, é um dos muitos clubes que já apostou na decoração da viatura

Um dos clubes que, no último ano, entrou na onda da decoração a rigor do autocarro foi o FC Alpendorada, do concelho de Marco de Canaveses. Subiu dos distritais da AF Porto ao Campeonato de Portugal, adquiriu uma nova viatura e apostou na decoração renovada para dar maior força e ligação ao clube.

«Subimos ao Campeonato de Portugal e, nas deslocações, já precisávamos de uma viatura com outras condições e a ideia nasceu daí. Queríamos uma viatura mais recente com uma nova decoração, criou impacto. Tentámos criar uma imagem que venha ao encontro aqui da terra e teve impacto, tanto nos jogadores, como na massa associativa e na população», refere Américo Costa, presidente-adjunto do clube.

E, para que ninguém o visse antes de ser mostrado aos adeptos, foi decorado na garagem do clube, a sete chaves.

Do City-Chelsea no Dragão ao Besiktas em Alvalade: histórias com estrangeiros

Mas nem só histórias de autocarros de clubes nacionais há para contar intrafronteiras.

Em novembro de 2021, o Besiktas deslocou-se a Portugal para defrontar o Sporting para a Liga dos Campeões e a equipa foi transportada num autocarro a rigor com as cores do clube. Um autocarro que teve contornos especiais, do aluguer à decoração.

«Tivemos uma situação, para nós desconhecida, que foi este autocarro do Besiktas. O Besiktas, sempre que faz uma deslocação europeia, tem um acordo com uma marca turca, a TEMSA. Sempre que estão deslocados, têm de utilizar um autocarro desta marca, com a decoração deles. Em Portugal só existia um autocarro com estas características dessa marca, para o tema. Foi um desafio alucinante para encontrar o autocarro disponível em Portugal, o operador com disponibilidade para ceder o autocarro e tinha de ser forrado todo a preto e com a cor do Besiktas para andar três ou quatro dias em Portugal e depois ser removido. Foi “toca a correr que está tarde”. E foi decorado em Lisboa”», partilha João Paulo.

Autocarro do Besiktas na visita a Alvalade, em 2021 (Foto: Besiktas JK)

Caso semelhante aconteceu na visita do Schalke 04 ao FC Porto. «Há clubes que têm acordos de transporte internos e, onde estiverem a jogar, têm de arranjar um autocarro como se fosse o deles. O desafio é: primeiro, não sabemos qual é o modelo de autocarro que vamos ter à disposição. Segundo, não sabemos o tempo que temos para o trabalho. No Schalke até foi rápido porque o Schalke era branco e foi só fazer a decoração, mas este [ndr: aponta para o do Besiktas] foi todo forrado de preto e na totalidade. São 70 a 80 metros quadrados de material, com algum cuidado e rigor», explica.

E, por falar em histórias de clubes estrangeiros em visitas a Portugal, outro jogo mediático no Estádio do Dragão motivou trabalhos de bastidores para decorar autocarros: 29 de maio de 2021, Manchester City-Chelsea, final da Liga dos Campeões.

«Quando foi a final City-Chelsea no Dragão, fizemos os dois autocarros. E tínhamos de arranjar um operador, para não ferir suscetibilidades, que tivesse dois autocarros iguais, porque tem de ser um autocarro com casa de banho, novo e tivemos dois disponíveis um dia antes da final e tivemos de decorá-los todos. Tivemos de esperar pelos layout do Chelsea e do City e da Liga dos Campeões. Só mudavam os logotipos. Quando tudo acontece, estamos no limite para ser apresentado e no dia a seguir sai tudo fora, que o autocarro tem de voltar para o operador», conta.

A cada viagem, os autocarros fazem parte de uma nova jornada para a história dos clubes, sabendo que, lá atrás, já partiram com muitas outras histórias para contar.

Benfica

Mais Benfica

Patrocinados