ENTREVISTA || António Nogueira Leite lamenta que se continuem a tomar decisões políticas sem que exista toda a informação necessária que o permitiria fazer com mais qualidade. O economista elogia as medidas do Governo que visam ultrapassar a morosidade dos licenciamentos na habitação e alerta que a questão fiscal é importante para o mercado de habitação, mas "não é uma bala de prata"
O economista António Nogueira Leite diz que é preciso maior segurança jurídica no mercado de habitação. Em entrevista à CNN Portugal, Nogueira Leite diz ainda que é preciso resolver o problema das rendas anteriores a 1990, congeladas há mais de três décadas e que não podem ser os proprietários a assumir a função social que deveria ser do Estado.
Um dos maiores problemas atuais em Portugal, e não só, tem a ver com a crise na habitação. O anterior Governo, liderado por António Costa, e o atual Governo têm apresentado medidas diferentes para ultrapassar esta situação. Parece-lhe que já existe um diagnóstico seguro sobre os problemas que existem e como podem e devem ser resolvidos?
Infelizmente, apesar dos esforços feitos e de esta ser uma conversa recorrente, continuamos a ter muito pouca informação para fazer boa política pública.
Um exemplo é o das casas desocupadas e as casas devolutas. O anterior Governo falava em mais de 700 mil casas devolutas, este Governo fala em mais de 300 mil casas desocupadas. Os Censos 2021 mostram que há cerca de 375 mil casas desocupadas sem ser conhecida a razão. Mas daí não se pode tirar que são casas que estão em condições de ir para o mercado…
Essa informação devia existir há muito tempo. Porque nos permitia falar sobre coisas concretas e não sobre conjeturas. Algumas dessas casas são certamente casas em situações que não são solução para nada porque ninguém vai para lá viver. Casas herdadas na província de pessoas que, entretanto, foram para o litoral, casas do interior de pessoas que foram para o litoral, casas que já não têm recuperação…
A percentagem dessas casas que efetivamente possa ser útil é uma coisa essencial. É preciso saber quem são os donos e ver o que é que é preciso fazer para que essas pessoas estejam disponíveis para colocar as casas diretamente no mercado ou para as concessionar. Precisamos de ter situações imaginativas, negociadas, porque é do interesse de todos resolver aquele que é, no imediato, o maior problema social do país.
Mas não basta produzir legislação.
Se olharmos para as novas casas em Portugal, chegámos a construir 70 mil por ano. Houve anos da última década em que construímos menos de 10 mil. É evidente que este problema ia surgir. E também ia surgir porque estimulámos determinado tipo de procura que deixou de ser útil.
Está a falar do alojamento local…
Parece evidente que não vamos esperar que o país cresça com base no crescimento do turismo indiferenciado. Sem defraudar expectativas criadas a quem investiu, o planeador urbano devia ter poder para regular o boom do alojamento local. É evidente que há expectativas que foram consagradas e, portanto, não se pode dizer, olhe, acabou, agora os senhores desocupem e façam outra coisa. Mas temos de evitar que esta situação volte a aparecer no futuro. Não significa não ter alojamento local, significa ter alojamento local com critério e sobretudo não tomar decisões que depois afetem o futuro decisor dez, 15 anos mais tarde. Percebo que, tomadas as decisões, não se pode depois prejudicar quem investiu à conta de uma má decisão, mas essa decisão também não pode produzir efeitos eternos. Tem de haver uma evolução até porque as principais cidades portuguesas têm excesso de ocupação em atividades turísticas de pouca expressão.
Mas não é apenas o turismo…
Não. Quer António Costa, quer Luís Montenegro, olharam para um problema grave que temos, que é o do licenciamento. Não conseguimos ter um fluxo razoável se as coisas demorarem três, quatro, cinco, seis, dez anos em apreciação. Vetos de gaveta, toda a espécie de coisas. Temos de passar a ter o sistema que muitos países têm, países da Europa continental, em que os licenciamentos são mais curtos, como o Governo agora tenta fazer.
O Governo de António Costa tentou responsabilizar os projetistas, mas a medida não foi muito bem recebida, não teve grande resultado. Agora, o que se está a tentar fazer é passar a ter, como em muitos países, uma fiscalização posterior muito dura, responsabilizando, nomeadamente, os promotores. Ou seja, as regras são estas, se as violar corro risco de perder a totalidade do meu ativo. Esse aspeto vai ser importantíssimo para que haja nova construção. Agora, toda a tecnoestrutura vai reagir.
Nas medidas apresentadas pelo atual Governo voltou a colocar-se muito a tónica nos impostos. Não é mais importante a garantia jurídica, nomeadamente sobre a capacidade de reaver o imóvel quando o inquilino não cumpre, as rendas congeladas, sobre os limites aos aumentos de rendas…
A questão dos impostos tem alguma relevância, mas não é uma bala de prata. Há dois problemas muito importantes. Um é o da segurança jurídica, nomeadamente nos casos em que um proprietário, na prática, perde a sua casa durante, às vezes, mais de um ano, porque tem uma contraparte que, pura e simplesmente, decidiu incumprir as obrigações contratuais e a outra parte não pode fazer nada. A minha experiência diz que estas situações estão melhores, mas ainda há uma enorme capacidade de melhorar, de garantir que os direitos de propriedade estejam mais bem defendidos. É uma condição sine qua non para que mais pessoas estejam interessadas em ter casas no mercado.
Um segundo aspeto de que se fala pouco tem a ver com as casas com contratos anteriores a 1990. E aí há duas situações que é preciso cautelar. Porque há situações em que a pessoa fez o contrato antes de 1990, mas em função dos seus rendimentos, do seu património, não precisa de nenhuma proteção especial para estar a beneficiar de um regime congelado há três décadas. Para as outras, que possam ser um problema social, o Estado tem de criar uma forma de rapidamente as ajudar, e esse é o medo que as pessoas têm, que a máquina do Estado não funcione. Mas tem de ser o Estado a garantir que esses inquilinos mantém a capacidade de estar naquela casa e não o senhorio fazer de Estado décadas a fio.
Apesar de todos os constrangimentos, não é estranho que num mercado onde há tanta procura, onde as casas são vendidas por preços exorbitantes, não haja mais casas em construção? Não há aqui uma dificuldade de quem constrói poder aceder a crédito ou não estar disponível para investir capital próprio? Na década de 90 a construção estava muito alavancada em crédito…
Há uma parte que é boa, porque permite pôr sanidade no sistema: obrigar quem investe a pôr algum capital. E atualmente têm de pôr um montante razoável de capital, mas isso é inevitável porque no passado é que estávamos errados.
Os bancos do sul da Europa e os bancos em Portugal em concreto, para além de uma forma de avaliação de risco mais rigorosa do que no passado, têm limites à percentagem de crédito imobiliário que podem ter na sua carteira de crédito. E esses limites são grandes. E, portanto, o sistema tem de viver com outras fontes de financiamento.
Por exemplo, em Portugal, só agora é que começámos a ter uma legislação que permita ter fundos de crédito a funcionar. Em Inglaterra são 100% do sistema, em Espanha já são uma parte relevante do sistema, nos Países Baixos são uma parte também muito relevante do sistema...
Esses fundos de crédito são...
São basicamente fundos que captam dinheiro institucional, não são bancos, portanto não têm as restrições dos bancos, é geralmente dinheiro mais caro que o crédito bancário, mas não tão mais caro que inviabilize o investimento.
Mas também não parecem estar a funcionar?
Estão a arrancar agora, foram lançados como contrapartida do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) numa das últimas iniciativas legislativas do Governo de António Costa. Mas o problema do financiamento existe, mas não é, neste momento, o maior estrangulamento, até porque há alternativas. Atualmente, há inclusive situações em que são os compradores que financiam a construção. É evidente que nem todos os compradores estão em condições de o fazer, mas há muita construção que vai sendo feita em que as pessoas vão pagando parte do total que contratualizaram.