“O Papa Francisco usou cilício”. Entrevista rara do líder do Opus Dei, que assume acolhimento de homossexuais

5 fev 2022, 08:00
José  Rafael Espírito Santo lidera o Opus Dei em Portugal desde 2002

Numa entrevista exclusiva à CNN Portugal, José Rafael Espírito Santo, vigário-geral, conta como a Obra conseguiu instalar-se no país, garante que o Papa Francisco usou cilício, como é prática no Opus Dei, e admite que é importante ter membros com destaque na vida pública. Faz este sábado 75 anos que a instituição chegou a Coimbra

Considerada uma das organizações com maior poder, o Opus Dei comemora este sábado, dia 5 de fevereiro, 75 anos da sua chegada Portugal. A CNN Portugal, numa conversa por escrito, entrevistou José Rafael Espírito Santo, 63 anos, vigário-geral do Opus Dei em Portugal desde 2002. É ele quem lidera um grupo de 11 homens que vivem juntos numa quinta, no Lumiar, em Lisboa e que decide os passos do Opus Dei em Portugal. A organização tem hoje 1.615 membros, dos quais 505 são celibatários. Apesar de ser um movimento conservador, optou por aproximar-se do Papa Francisco. Segundo José Rafael Espírito Santo, já aceitam o acolhimento de homossexuais.

Faz agora 75 anos que o Opus Dei chegou a Portugal. Porque começou por Coimbra, tendo aqui sido instalado o primeiro centro?
Naquela altura era habitual começar-se com jovens e universitários, a quem se propunha formas de conciliar uma relação viva com Deus com as obrigações do estudo, da profissão e do projeto de vida. Coimbra pareceu, por isso, um bom sítio para começar, fruto também da maneira calorosa com que o Bispo da diocese acolheu esta presença do Opus Dei. Tinha apenas 24 anos e era farmacêutico, o jovem Francisco Martínez, enviado pelo fundador para iniciar o Opus Dei em Portugal.

Segundo o Opus Dei, foi a Irmã Lúcia quem convenceu José Maria Escrivá [fundador do Opus Dei] a antecipar a difusão da Obra em Portugal. O prelado tinha previsto começar por França, mas a Segunda Guerra Mundial acabou por mudar a estratégia.  A Irmã Lúcia teve um papel muito importante para o Opus em Portugal?
A Irmã Lúcia, que vivia num convento com o desejo de estar sempre com Deus, valorizava muito que as pessoas comuns, e que não vivem num convento, crescessem numa relação diária com Deus muito pessoal e genuína. Talvez por isso apreciou muito a ideia de Escrivá, de que os cristãos vivessem a sua vida diária com o mesmo espírito de oração e conversa constante com Deus que têm os religiosos e religiosas de clausura. E assim insistiu com S. Josemaria para que não atrasasse o começo em Portugal. Daí surgiu uma amizade entre os dois e provavelmente a especial devoção que tinha o fundador do Opus Dei por Fátima.

Salazar chegou a colocar a PIDE a investigar a ação do Opus Dei, em especial a partir dos anos 60. O que preocupava o Presidente do Conselho?
Só estudos históricos podem responder. Pode não lhe ter sido alheio que, no país vizinho, altas figuras políticas não compreendessem a liberdade política das pessoas do Opus Dei. Talvez isso explique ter havido em Portugal vigilância e controlo.

Nos primeiros tempos de quando se instalou em Lisboa, chegou a existir uma relação tensa do Opus Dei com o Cardeal Cerejeira. Qual foi a causa?
A relação com o Cardeal Cerejeira foi muito boa no início da presença do Opus Dei em Portugal, e no final de vida do cardeal. Escrivá encontrou-se com ele, em Portugal e em Roma nos anos 40 e princípios de 50, e reencontraram-se em 1972 em Lisboa, altura em que superaram essa relação tensa que ainda durou alguns anos.

É bom lembrar que Cerejeira reconstruiu, com um modo forte de governar, a diocese de Lisboa, que herdou muito debilitada após os anos da República. Compreende-se, por isso, que fosse pouco dado a favorecer projetos cristãos que não estivessem sob o controlo diocesano. É outro tema interessante para estudos históricos.

Qual é hoje a relação do Opus Dei com a igreja católica portuguesa, nomeadamente com o patriarca Manuel Clemente?
Eu estou muito grato não só a D. Manuel Clemente, mas também a D. António Marto, a D. José Ornelas e a D. Tolentino Mendonça por terem enviado mensagens muito amigas de regozijo pelos 75 anos do Opus Dei em Portugal.

Eu gostaria que os bispos e todas as pessoas na Igreja sempre sentissem gosto pelo contributo da vida cristã diária, no trabalho e nas condições comuns da existência, que as pessoas do Opus Dei tentam dar. Muitas vezes, infelizmente, ficamos aquém: mas a missão do Opus Dei é colaborar na missão da Igreja para tornar Deus presente no coração de cada pessoa.

Quantos membros tem a Obra em Portugal? Numerários, supranumerários e cooperadores.
Com dados de dezembro de 2021, em Portugal: há 1.615 membros no total, 1.012 mulheres e 603 homens (entre os homens, 85 são padres, dos quais 31 da prelatura e 54 de diversas dioceses, através da Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz).

Destas 1.615 pessoas, 1.110 são casadas ou solteiras sem o compromisso do celibato, e as restantes 505 são celibatárias.

Os cooperadores não pertencem ao Opus Dei, e podem não ser católicos, nem crentes, são pessoas que apreciam o serviço que o Opus Dei presta e desejam colaborar com oração, esmola ou trabalho, ou algum outro tipo de colaboração. Neste momento são à volta de 3000.

Chamo a atenção que muitos encontros de oração e formação que o Opus Dei organiza são abertos a muitas pessoas interessadas que não têm qualquer ligação ao Opus Dei.

Um dos primeiros membros foi aliás, Oliveira Dias, que chegou a ser presidente da Assembleia da República. Tal como Mota Amaral, que assume publicamente ser da Obra. É importante para o Opus Dei ter pessoas nestes cargos?
É importante para as comunidades que haja pessoas que se dediquem com competência e honestidade ao serviço da vida pública. Para a Igreja é importante que o façam mantendo Deus como âncora e inspiração diárias. Fora isso, devem atuar com a máxima autonomia, respeito pelo diferente, abertura e cordialidade com todos, sensibilidade para com os mais carenciados, humildade para os momentos em que acertam e para os momentos em que erram, e a sensatez de reconhecer que não há “soluções católicas” para os problemas.

Mota Amaral chegou a dizer que foi prejudicado politicamente por ser da Obra. Acha que isso acontece com regularidade aos membros?
Mesmo que situações dessas aconteçam, as experiências são todas muito diferentes, não há um padrão. Acontece simplesmente aquilo que pode acontecer a qualquer cristão que se assume como cristão.

O Opus é dado por muitos autores como um dos suportes para a criação do CDS. É verdade?
Não. Haver pessoas do Opus Dei numa profissão ou organização não permite concluir que o Opus Dei intervém aí. Aliás, o Opus Dei faz questão de não intervir. E essas pessoas também não querem essa interferência.

Há uma questão sempre associada ao Opus Dei, o BCP, até por causa de Jardim Gonçalves, que nunca escondeu ter entrado em 1977 para a prelatura. Qual a ligação entre o banco e a Obra?
Não tem nem nunca teve qualquer ligação. Os projetos e trajetórias das pessoas do Opus Dei são projetos e trajetórias exclusivamente delas e das suas opções. Esta afirmação é compatível com aquela outra de que a fé cristã pode e deve impregnar a vida de cada um.

Qual a ligação da AESE ao Opus?
A AESE Business School é um dos projetos de natureza educativa que conta com a colaboração publicamente assumida do Opus Dei. A finalidade desta colaboração é, principalmente, ajudar a que se transmitam os princípios grandes que a sabedoria acumulada da fé católica traz para a reflexão e vida das organizações: o trabalhador como fulcro, o serviço à sociedade como a missão das empresas, o respeito como ambiente das relações, a verdade e a justiça como ingrediente dos procedimentos, a ecologia integral e a solidariedade como responsabilidade de todos, entre outros. Ao mesmo tempo, abre-se a todos os interessados o acesso a formação religiosa.

Outra questão de que muito se fala é do uso do cilício (corrente de arame para mortificação) pelos membros da Obra. Porque têm de usá-lo?
Não têm de usar e a grande maioria não usa. O Papa Francisco e a Irmã Lúcia praticaram essa forma de sacrifício. Mas existe, e não é fácil de aceitar hoje em dia, sobretudo se em vez de se ver como uma forma de desconforto semelhante ao jejum e a abstinência, se imaginarem práticas com pouca ou nenhuma ligação à realidade. De todo modo, a ideia é participar da experiência voluntária que Jesus quis ter na paixão para libertar todos do peso do mal, e por amor de todos. Isto só se entende com uma perspetiva de fé, vislumbrando como o sofrimento voluntário de Jesus me liberta do mal e põe um limite ao mal no mundo e na história. Mas como disse, a grande maioria não faz essa forma de sacrifício, pois enfrentar a doença e as limitações do tempo de pandemia, cumprir bem os deveres profissionais de cada dia, ser cuidadoso e amável em casa e até o simples sorriso habitual são ótimas formas de reviver a paixão de Jesus.

Qual o papel do Opus Dei hoje em dia?
Todas as instituições da Igreja têm a mesma finalidade: contar o que Deus falou aos homens ao longo da história, especialmente em Jesus Cristo, e mostrar como Deus está ao lado de cada um para nos ajudar a vencer o mal e o erro, presentes nos corações, na sociedade e origem dos sofrimentos, dos ódios, das injustiças, e para abrir connosco uma relação próxima de amizade. Ao contar isto, que continua a ser uma novidade, cada instituição faz umas acentuações e dá uns tons especiais. O Opus Dei lembra que aos olhos de Deus o nosso trabalho importa, a família importa, a amizade importa. E ajuda a tornar isso operacional e concreto na vida pessoal, através de um programa formativo próprio.

E o que Opus pretende fazer nos próximos anos?
Quando em novembro passado recebeu o prelado do Opus Dei. Mons. Fernando Ocáriz, o Papa Francisco manifestou o desejo de que as pessoas do Opus Dei vivam com fidelidade o espírito fundacional, seguindo as mudanças que os desafios culturais colocam à vivência da fé. Alentou ainda a disseminar uma cultura de veracidade que supere a superficialidade e a falta de justiça que muitas vezes envenena as relações em sociedade. E, muito segundo a sua maneira directa de pôr as coisas, disse: “É importante que todos estejam na rua, a fazer apostolado”. Tudo o que pudermos fazer serão variações em torno deste tema.

Mas quais são, então, os temas prioritários para o Opus atualmente?
Em primeira linha, os temas prioritários são marcados pelo Papa para toda a Igreja, neste momento, o envolvimento de todos no processo sinodal e o empenho por melhorar as relações na família, neste Ano da Família que o Santo Padre convocou.

Além disso, o actual prelado do Opus Dei, que foi eleito em 2017, escreveu três cartas longas, uma sobre a liberdade como o grande dom humano e divino que devemos respeitar e fomentar cada vez mais, outra sobre a amizade como o clima bondoso e aberto que o cristão deve criar com todas as pessoas, mesmo aquelas que nos não sejam afins ou próximas, e outra sobre a vocação cristã, o chamamento que Deus dirige a cada um, em especial sobre a vocação para o Opus Dei.

Quando este Papa foi escolhido, foi referido por muitos que o Opus gostaria de um Papa mais conservador. O que acha do Papa Francisco?
Cada Papa é o Papa para o seu tempo, e é sempre, para todos, como a Igreja diz, “fundamento perpétuo e visível da unidade”. Aprecio especialmente no Papa Francisco o mostrar que Deus é ternura e bondade, que as pessoas que às vezes esquecemos, como os migrantes, os presos, os desfavorecidos, os pobres, têm o valor máximo aos olhos de Deus, que cada um de nós deveria encontrar na Igreja alguém que pessoalmente nos acompanhasse, que é possível ter Deus junto de nós continuamente, que as feridas do coração podem ser curadas no sacramento da confissão.

Qual é a posição do Opus sobre as mensagens do Papa?
Jesus disse a Pedro, o primeiro Papa: “Simão, tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja. Tudo o que ligares na terra será ligado nos céus”. Isso marca profundamente o modo como os cristãos devem olhar, com confiança forte, para aquele que, em cada momento, Deus coloca à frente da sua Igreja como Papa. As suas mensagens são para ser conhecidas, entendidas e seguidas. Josemaria Escrivá sempre promoveu a unidade com o Papa do momento, como algo essencial para o cristão. Ao explicar, em 1965, porque quis que a sede do Opus Dei estivesse em Roma, junto de Pedro, disse: “porque com ele está a Igreja, com ele está Deus e sem ele não está Deus”.

O que pensa o Opus Dei sobre o acolhimento dos homossexuais?
A bondade, o respeito, a amizade, são devidos a todos, por todos. Cada pessoa é alvo de um desígnio de amor de Deus, e, por ela, Jesus Cristo deu a vida. Também a todos a Igreja acolhe e propõe, sem discriminações, o mesmo anúncio e a mesma proposta. A todos faz o mesmo apelo à conversão e à santidade. A todos transmite o mesmo ensinamento sobre o significado humano e teológico da sexualidade.

Ou seja, posso depreender que concorda com o acolhimento dos homossexuais de que o Papa fala?
Sim, concordo com o acolhimento de que o Papa fala. Acho muito necessária a pedagogia do Papa Francisco que, propondo todas as exigências da moral cristã, como tantas vezes o referiu, envolve essa mesma mensagem numa atitude e num tom de grande abertura, diálogo, compreensão e acolhimento, dando nova esperança a toda a gente.

E o que acha do decreto que obriga os detentores de cargos público a declararem a sua pertença a organizações, sendo entre elas dado o exemplo do Opus e da maçonaria?
É muito de valorizar a preocupação pela atuação livre dos titulares de cargos públicos e a proteção de todo o sistema face a abusivas interferências externas.

O decreto aprovado determina como facultativa a declaração de pertença a associações se com isso se envolverem dados protegidos. Atendeu assim ao alerta lançado pela Comissão da Liberdade Religiosa no que se refere às convicções religiosas.

Em relação ao Opus Dei, há dois pontos importantes: no Opus Dei os cristãos encontram uma formação religiosa católica que não tem conteúdo político nem insinua qualquer ação concertada, e as pessoas ligadas ao Opus Dei sabem que não têm nenhum dever, nem são aconselhadas a isso, de segredo quanto à sua pertença ao Opus Dei e à sua experiência de vida.

O que, na sua opinião, deixou o Opus como marca em Portugal, nestes 75 anos?
A marca que eu mais gostaria que o Opus Dei estivesse a deixar é a de colaborar com a Igreja e assim facilitar a muitas pessoas terem um gosto maduro pela fé e uma relação genuína com Deus que transforme a vida. Há também, é certo, alguns projectos educativos e académicos a que o Opus Dei está ligado, para aí se dar formação católica, e que têm a sua história, o seu caminho, e a sua fecundidade. Mas, ainda que o rasto social desses projectos seja vasto e duradouro, o maior fruto está na abertura do acesso a Deus a muitas pessoas.

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