Há empresas que pedem algum tipo de “discernimento” nos relacionamentos. Há trabalhadores de empresas que defendem que tudo se resolve “de remanso”. Mas uma coisa é certa, e é uma especialista em direito laboral que garante: “O Código do Trabalho não tem nenhuma especificidade concreta em relação, por exemplo, ao namoro. Não há uma proibição legal que impeça uma relação”. A proteção das relações decorre da reserva da intimidade. Mas atenção às convenções coletivas de trabalho
Não é um caso inédito em grandes empresas. Lá chegaremos.
Na Galp há mais de uma década, e presidente executivo (CEO) há dois anos, Filipe Silva resolveu esta semana demitir-se, alegando “motivos familiares”. Em causa, uma denúncia, interna e anónima. À Comissão de Ética e Conduta da petrolífera chegaria a informação de que o CEO mantinha uma relação com uma sua diretora, que a ele reportava direitamente, não tendo esse relacionamento sido participado àquela Comissão, e podendo configurar uma situação de “conflito de interesses” — segundo as normas da empresa.
Antes mesmo de resignar, e ouvido internamente para investigação, Filipe Silva confirmou uma “ligação” àquela diretora, nunca tendo, porém, admitido a existência de qualquer relação amorosa.
O caso do caso, ou “ligação”, poderia ter ficado por aqui, com a presidente do Conselho de Administração, Paula Amorim, a agradecer o “contributo” de Filipe Silva, tendo já antes referido que o Código de Conduta e Ética “tem de ser cumprido”. No entanto, a Comissão Central de Trabalhadores da Petrogal veio, após consumada a demissão, denunciar que tudo se terá tratado de um “golpe de teatro”, montado para atingir Filipe Silva, referindo que, “não obstante um eventual incumprimento do Código de Ética ser grave”, tudo podia ter sido resolvido “no remanso dos gabinetes", como é, diz-se, “o normal”.
O caso não é inédito, já aqui se disse.
Em 2019, o diretor executivo da McDonald’s, Steve Easterbrook, não se demitiu, e foi demitido, pelo seu conselho de administração, quando se soube do relacionamento consensual que mantivera secreto com uma funcionária da cadeia de fast food, não tendo essa relação sido comunicada — o que seria uma violação da política de conduta. Os administradores consideraram que Easterbrook não teve “discernimento”. Easterbrook concordaria: “Foi um erro. Tendo em conta os valores da empresa, concordo com o conselho [de administração] de que é hora de seguir em frente”.
Um caso algo semelhante ocorreria no ano de 2022, quando uma fonte anónima acusou o então CEO da multinacional petrolífera BP, Bernard Looney, de manter uma "relação pessoal” com colegas. Plural. A denúncia foi recebida, a investigação decorreria, mas sem consequências. Até que, em 2023, o gestor acabou por se demitir. O caso voltaria a ser um caso, Looney admitiu as relações amorosas que manteve e, mais que isso, viria dizer que não terá sido “totalmente transparente” nas declarações que antes prestara e o ilibaram.
Já responderemos à sacramental pergunta se pode, ou não, a empresa demitir (pelo menos à luz da lei e do Código do Trabalho portugueses) um funcionário por este ter mantido, ou manter, uma relação amorosa com um colega.
Mas antes é importante referir o seguinte: quando surgem, os Códigos de Conduta e Ética surgem precisamente nas grandes empresas, e são cada vez mais minuciosos, para se tentar evitar situações de abuso de poder, de benefícios indevidos (e é aqui que surge um “conflito de interesses”, por exemplo) e de casos de assédio ou importunação de cariz sexual. Mais até do que para impedir quaisquer relações consensuais.
Aliás, e voltando à Galp, no Código de Conduta da empresa não existe um descritivo de como se proceder em caso de existir uma relação interpessoal, apenas se refere que uma relação pode resultar em conflito de interesses, ou “aumentá-lo”.
O que os Códigos de Conduta e Ética pedem igualmente é sensibilidade e bom-senso. Ou decoro — como evitar uma demonstração de afeto em público. Ou integridade, responsabilidade e transparência. Ou seja, evitar que aquela relação traga às empresas qualquer tipo de dano reputacional ou na produtividade. Quando tal se pode provar, aí sim, poderá resultar num processo disciplinar e, até, em despedimento.
Não, não se pode
Em Portugal, o Código do Trabalho é claro: ninguém pode ser impedido de ter relações amorosas com os seus colegas de trabalho.
Naquele mesmo código lê-se: “O empregador deve respeitar os direitos de personalidade do trabalhador, inclusive abstendo-se de aceder e/ou divulgar aspetos relativos à esfera afetiva e sexual do trabalhador”. Aliás, e ainda no Código do Trabalho, as relações até podem ser beneficiadas, nomeadamente quanto às férias: “Os cônjuges, bem como as pessoas que vivam em união de facto ou economia comum nos termos previstos em legislação específica, que trabalham na mesma empresa ou estabelecimento têm direito a gozar férias em idêntico período, salvo se houver prejuízo grave para a empresa”.
“Efetivamente, o Código do Trabalho, no seu âmbito de lei geral, não tem nenhuma especificidade concreta em relação, por exemplo, ao namoro. Na verdade, em relação a nada. Não há uma proibição legal — legal no sentido laboral — ou constitucional que impeça ou que refira uma relação entre colegas de trabalho, se isso é possível ou se isso não é possível numa empresa”, garante a advogada Patricia Baltazar Resende.
Especialista em direito laboral, refere um “porém”. “Porém, uma empresa poderá ter códigos éticos de conduta, que são elaborados pela empresa, e aos quais o colaborador fica adstrito. E entre esses códigos pode existir uma cláusula nesse sentido.” Mas nunca de proibição, “proibição não poderá haver”. “Pode falar de algum comportamento ético que possa ser adotado, ou alguma chamada de atenção nesse sentido. Tem é de ser feita de forma subtil, uma vez que a lei geral não tipifica uma situação de proibição total”, explica.
A garantia de que a empresa não poderá impedir uma relação resolve-se, no Direito, recorrendo à reserva da intimidade da vida privada. “Isto significa que todos temos uma vida profissional, onde nos encontramos, onde nos enquadramos socialmente, e depois temos uma vida privada, e de reserva da intimidade, que compete a cada um de nós. É na intimidade, e não na vida profissional, que se encontram os namoros, os relacionamentos amorosos. E o Código de Trabalho refere expressamente que o empregador deve respeitar os direitos de personalidade do trabalhador, abstendo-se de comentar ou interferir nos aspetos relativos à esfera afetiva ou sexual do trabalhador”, explica a especialista em direito laboral, assegurando que uma empresa, “qualquer empresa”, não tem “legitimidade” para interferir e questionar estes aspetos pessoais.
Códigos de conduta e convenção coletiva
No entanto, há situações em que a legitimidade das relações pode até ser algo condicionada, embora não impedida.
E isso é tanto mais comum quanto maiores sejam as empresas. “Aqui, nos códigos de conduta, podemos estar a falar de microempresas, por exemplo, com dois, três, até dez funcionários. No entanto, se estivermos a falar de médias ou até de grandes empresas, estas podem adotar as convenções coletivas de trabalho. E é nas convenções coletivas de trabalho que pode haver, pode efetivamente estar expresso, algo nesse sentido — mas de uma forma também muito subtil, mais uma vez.”
Ou seja, a convenção terá sempre um valor superior à lei geral. E não é só em relacionamentos. “Um exemplo bastante paradigmático é que a lei geral contempla, por exemplo, 22 dias úteis de férias, no ano civil. Contudo, a convenção coletiva de trabalho, que é adotada por uma empresa, poderá não ter adotado os 22 dias úteis que a lei geral do trabalho refere, mas pode adotar 25 ou 26 ou 27. Nunca pode é para menos. Agora, para mais pode. E, portanto, sobrepõe-se, é superior, hierarquicamente superior”, explica Patricia Baltazar Resende.
Situações já houve no país de despedimentos relacionados com ligações amorosas entre funcionários de empresas, no caso com justa causa, e resolvidos em tribunal. Contra e a favor dos trabalhadores. Pelo que já há até jurisprudência — no caso, em favor de quem teria sido despedido. Aconteceu em 2019, no Tribunal da Relação do Porto, ainda que seja um caso peculiar. Uma trabalhadora suspensa por “praticar atos amorosos” no local de trabalho foi despedida com justa causa, concluído aquele tribunal que se trata de um despedimento “excessivo”, tendo para efeito de sanção chegado “a mera advertência verbal do empregador”.
Voltando a Patricia Baltazar Resende, e voltando ao caso da Galp, à pergunta se relações entre superiores hierárquicos e subordinados podem, em qualquer situação, resultar num conflito de interesses, a advogada não tem uma resposta imediata, “pois terá de se atender sempre à luz do caso concreto”.
“Generalizando, no caso da hierarquia, podemos estar a falar, contudo, mais até do que de conflito de interesse, de situações de potenciais abusos de poder, da pessoa hierarquicamente superior poder utilizar esse relacionamento para que tal lhe seja conveniente para um determinado fim, ou até a potenciais casos de oportunidade, em termos de assédio. Além, claro, dos benefícios, de a pessoa que é hierarquicamente superior beneficiar, por via do relacionamento, a outra. Portanto, tudo isto pode acontecer — e aí já é diferente a leitura”, adverte Patricia Baltazar Resende.
Assim sendo, o empregador, em casos de abuso de poder ou de assédio ou de benefício em relação ao trabalhador hierarquicamente em posição inferior, “pode e deve recorrer aos códigos de conduta e tem a responsabilidade de sancionar aquele comportamento”, conclui a advogada.