O Reino Unido é o único dos grandes países europeus que não regressou ao número de turistas que tinha antes da pandemia de covid-19. Descubra porquê
Não é um grande slogan turístico. “A Grã-Bretanha está parada”. Foi este o veredito do Partido Trabalhista britânico sobre o país que ambicionava governar, enquanto apresentava, em junho, os seus argumentos para as eleições.
A 4 de julho, venceram essas eleições com uma maioria esmagadora e uma promessa de mudança. Enquanto os residentes se questionavam sobre o que esperar no dia a dia, aqueles que estão fora do país ponderavam o que significaria aquele resultado para os seus planos de férias. Porque o turismo é precisamente uma das indústrias que pode ser alvo dessa mudança.
Há muito que o Reino Unido é uma paragem para quem gosta de viajar. O seu património e espaços culturais fazem desta união de países, por tradição, uma das jóias da coroa na Europa.
Contudo, embora o número de turistas esteja a aumentar em todo o continente – quase todos os países membros da União Europeia viram os indicadores a crescer em 2023 face ao ano anterior –, o Reino Unido ainda não conseguiu recuperar os desempenhos que tinha antes da pandemia.
Praticamente 41 milhões de turistas estrangeiros visitaram o Reino Unido em 2019. Em 2023, foram 37,68 milhões – uma quebra de 7,3%.
São inevitáveis comparações com Itália, que atingiu um novo recorde no número de chegadas em 2023. E só o Luxemburgo registou uma queda mínima no que respeita a visitantes, menos 0,1%.
Além disso, o número de visitantes internacionais que solicitaram um visto turístico caiu 19% face aos números anteriores à pandemia.
A lenta recuperação coincide com contratempos relacionados com o setor do turismo. As greves regulares têm dificultado o transporte. “Os cancelamentos nos comboios estão em níveis recorde”, segundo o manifesto pré-eleitoral do novo governo.
O Reino Unido tem uma costa maravilhosa. Contudo, nos últimos anos, muitas praias ficaram cada vez mais poluídas pelas descargas dos esgotos. Foram também eliminadas as compras para turistas isentas de impostos. E, depois do Brexit, os visitantes da União Europeia precisam agora de um passaporte para entrar em território britânico, algo que a maioria não tem.
Em 2024, os discursos acerca da segurança na capital também ganharam força. Em fevereiro, o então primeiro-ministro Rishi Sunak sugeriu que o país caminhava para um cenário de maior influência das multidões que desafiam o poder. Também destacou, em maio, um aumento de 20% no número de ataques com facas em Londres.
Os comentários de Sunak tiveram um pendor político, até porque estava em marcha a campanha para as eleições locais. Contudo, poucos ouvintes no exterior terão compreendido o contexto.
Então, o que correu mal para o Reino Unido? E poderá o novo governo reverter a situação? O manifesto pré-eleitoral dos trabalhistas, onde o partido traçava os seus planos para o país, ignorou praticamente a indústria do turismo. Contudo, não foi contido nas palavras na hora de descrever os problemas existentes.
“A Grã-Bretanha está parada”, lê-se. “O número de comboios cancelados atingiu níveis recorde… O caos conservador levou ao abandono de grandes projetos, a atrasos de décadas… as nossas infraestruturas estão a desfazer-se”.
O partido prometeu “modernizar” as infraestruturas de transportes do Reino Unido, “reconstruindo a Grã-Bretanha”. A ferrovia passará a ser propriedade pública. E aqueles que gostam de viajar de carro podem ficar também satisfeitos, já que os trabalhistas se comprometeram também a tratar dos buracos nas estradas.
Contudo, nenhum destes esforços será rápido. A nova visão dos trabalhistas para as infraestruturas faz parte de um plano a 10 anos.
Mudar prioridades
O Reino Unido está assim tão mal ou foram as tendências de viagem que mudaram depois da pandemia? Para Tom Jenkins, presidente executivo da Associação Europeia de Turismo, mais conhecida como ETOA, é a segunda opção. “Penso que o Reino Unido está bem, mas vamos ver mais pessoas a viajar para a Europa continental”, afirma, em relação ao ano de 2024, acrescentando que, “alegadamente, não tem havido crescimento na procura de turistas americanos pelo Reino Unido”.
Patricia Yates, presidente executiva da VisitBritain, discorda, referindo que os turistas americanos têm “impulsionado a recuperação da nossa economia desde a pandemia”. Kayla Zeigler, dona da agência de viagens Destination Europe, confirma que tem feito mais reservas de viagens para o Reino Unido.
Contudo, para Marcy Zyonse, dona da Live The Dream Travel, empresa dedicada a viagens de luxo, o Reino Unido tem sido atingido por mudanças nas tendências de viagens após a pandemia. “O apetite por viagens épicas e imersivas a nível cultural tem sido muito forte nos últimos anos”, diz.
“As pessoas estavam desejosas por isso. Nos Estados Unidos, não fomos para lá das Caraíbas durante vários anos. Por isso, as pessoas agora estão interessadas em viagens para a Grécia ou para Itália. Perdemos dois ou três anos de viagens. E penso que o Reino Unido está no fim da lista de prioridades”. Os viajantes que falam inglês querem experiências mais exóticas, junta a especialista – a começar por uma língua diferente.
No fim de contas, o Reino Unido é conhecido pela sua história, pela sua cultura e pela família real – que não vão desaparecer assim tão depressa. Por isso, torna-se mais fácil dar prioridade àquela escapadinha muito merecida no Mediterrâneo.
Foi também à custa desse património que o anterior governo deixou a indústria do turismo decair, argumenta Patricia Yates: “Há uma visão de que somos muito fortes na nossa cultura e no nosso património. E que, só à custa disso, as pessoas vêm”.
“Não é o caso. Tal como qualquer outra indústria exportadora, temos de nos vender. Temos de dizer às pessoas por que motivos têm de vir agora. O benefício de ser um destino com história e património é apenas o facto de esses argumentos já existirem há dez anos e continuarem a existir daqui a outros dez”.
Há também uma espécie de efeito de ressaca da pandemia, quando as limitações às viagens no Reino Unido foram particularmente caóticas, afirmam os especialistas. Os destinos que reabriram as suas fronteiras mais cedo fizeram com que os visitantes elogiassem as suas primeiras viagens após o confinamento – o que acabou por ter um efeito indireto.
“Os lugares mais procurados são aqueles que, no início de 2021, reabriram as suas fronteiras aos turistas americanos, o que criou um grande aumento na procura”, justifica Kayla Zeigler.
Marcy Zyonse concorda: “o Reino Unido ficou para trás e as pessoas perderam a confiança. As pessoas que reservaram as suas férias em 2021 para o ano seguinte não o fizeram para o Reino Unido. Teve um efeito de bola de neve. As redes sociais levaram as pessoas para esses destinos que abriram as suas fronteiras primeiro”.
Voltar a tornar 'grande' a Grã-Bretanha
Então, o que é preciso fazer? Para Patricia Yates, o novo governo britânico deveria usar o turismo como um elemento impulsionador da economia – com um ritmo de crescimento de 7% ao ano, diz, alinhada com as projeções da VisitBritain.
“A força do turismo é podermos ligar-nos rapidamente. Não precisamos de construir muitas infraestruturas para isso”, argumenta. “É uma questão de promover os lugares certos, na altura certa, aos clientes certos”.
A promoção turística pode ser algo complicado. O governo conservador cessante era conhecido pelos seus cortes nas despesas públicas, algo encarado como austeridade. Numa apresentação ao parlamento em março de 2024, a VisitBritain revelou que o seu orçamento para marketing era de aproximadamente “18 milhões de libras [cerca de 21,4 milhões de euros] anualmente, em comparação com os 80 milhões de euros da Irlanda”.
Em novembro de 2021, Patricia Yates tinha dito à CNN que a VisitBritain não sabia qual seria o orçamento da organização para o ano seguinte.
Hoje, explica, tem um orçamento de 19,8 milhões de libras [cerca de 23,6 milhões de euros] e que recebe praticamente a mesma quantia de outra iniciativa governamental. O valor ainda representa praticamente metade do orçamento irlandês – pelo que acaba por recorrer ao financiamento privado para reforçar as contas.
“Sabemos que, por cada libra investida, conseguimos 15 libras dos turistas. Uma fatia vai para o Estado. E há dinheiro dos visitantes estrangeiros a entrar diretamente na economia. Ficam todos a ganhar”, diz.
Todavia, deseja que o novo governo contribua para que seja possível dar mais passos em frente.
“O turismo é responsável por mais de três milhões de empregos, por cerca de 10% da economia”, explica. “Para termos um verdadeiro plano de crescimento, precisamos de assumir uma posição além-fronteiras sobre a Grã-Bretanha, que atraia visitantes e investimento”.
Caros turistas, sejam bem-vindos
Poucos turistas deverão ter prestado atenção à instabilidade política no Reino Unido – como diz Kayla Zeigler, “os americanos têm de lidar com o seu próprio caos político”. Contudo, Patricia Yates realça a importância de uma mensagem de “boas-vindas”.
“É extremamente importante, de forma a impulsionar os turistas internacionais”, refere. “Houve alturas em que a Grã-Bretanha o fez muito bem, como nos Jogos Olímpicos de Londres. Há outras em que não somos tão bem-sucedidos. Precisamos de refletir sobre como queremos posicionar a Grã-Bretanha como um destino acolhedor, e sobre a forma como olhamos para as fronteiras e para os vistos”.
No Índice de Marcas Nacionais Anholt-Ipsos de 2023, que classifica 60 países numa série de atributos, o Reino Unido recebeu a nota mais baixa de sempre no que respeita ao acolhimento. A pontuação relativa à cultura e à população também baixou, embora na classificação geral tenha subida dois lugares, para a quarta posição.
O visto para um turista chinês que queira visitar o Reino Unido dura um ano, mas custa praticamente o mesmo de um visto de dez anos para os Estados Unidos da América, exemplifica. Marcus Lee, presidente executivo da China Travel Online diz que, a eficiência dos vistos é um dos três principais fatores a determinar a motivação dos turistas chineses.
O número de visitantes dos países do Golfo Pérsico aumentou desde que o Reino Unido introduziu um sistema rápido de “autorização eletrónica de viagem”, acelerando os pedidos, mostra Patricia Yates. Havia planos para expandir esse sistema para os mercados europeus e americano. Caberá agora ao novo governo trabalhista executá-lo.
Entretanto, aquilo que ficou conhecido como um “ambiente hostil” em relação à imigração durante o último governo também não ajudou. “Para o turismo, queremos fronteiras efetivas e eficientes, mas também que as pessoas venham”, diz. “Temos de pensar sobre a linguagem que utilizamos”. Para Patricia Yates, as pessoas que visitam o Reino Unido em férias têm 18% mais probabilidades de investir no país - e investimento é algo que o novo governo vai procurar.
Efeitos colaterais do Brexit
Como consequência do Brexit, nome dado à saída da União Europeia, o governo do Reino Unido aboliu as compras isentas de impostos para cidadãos não oriundos do bloco comunitário. Isto significa que o Reino Unido é agora o único país europeu que não disponibiliza isenção fiscal nas compras a visitantes vindos de fora do continente.
Dados da New West End Company, que representa mais de 600 empresas no centro de Londres, mostraram, em fevereiro, que apesar de o número de visitantes em 2023 naquela área ter estado apenas 4% abaixo dos níveis de 2019, os gastos caíram 19%. Os turistas vindos dos países do Golfo Pérsico - que estão entre os mais abastados daqueles que visitam o território britânico - aumentaram 20% face aos números de 2019. Contudo, os seus gastos só cresceram 10%.
O padrão repetiu-se com turistas vindos de todos os pontos do mundo. O número de turistas americanos aumentou 8%, mas os seus gastos caíram 14%. Em Itália e Espanha, contudo, os gastos dos turistas americanos cresceram, respetivamente, 143% e 179%.
“O impacto de terem eliminado as compras isentas de impostos é claro”, afirma Dee Corsi, presidente executiva da New West End Company. “Enquanto o Reino Unido luta para regressar a níveis anteriores à pandemia no que respeita às viagens e aos gastos feitos nelas, a recuperação na Europa continental continua a um ritmo elevado”.
“Enquanto as congéneres italianas e francesas têm aproveitado fortemente as compras isentas de impostos como uma forma de impulsionar o seu crescimento, as empresas britânicas continuam a competir em desvantagem. Com o gasto interno parado, uma quebra contínua nos gastos dos turistas terá uma repercussão nas taxas de desemprego, na entrada de investimento e nas cadeias de abastecimento em todo o país”, junta.
Dee Corsi defende o regresso das isenções fiscais nas compras como uma “oportunidade rara, de ouro, para o governo injetar uma dose de crescimento na economia, com um modelo que já foi testado, comprovado e com um público fiel”.
“Desafiamos o novo governo a aproveitar esta oportunidade com as duas mãos”, refere.
Entretanto, os cidadãos da União Europeia, como Portugal, precisam agora de um passaporte para visitar o Reino Unido. Antes do Brexit, era necessário apenas o cartão de cidadão ou bilhete de identidade para fazê-lo. Em 2021, Tom Jenkins tinha dito à CNN que três quartos dos europeus não têm passaportes.
Também não há boas perspetivas no horizonte no que respeita a entradas e saídas. Quando o novo modelo do Sistema Europeu de Informação e Autorização de Viagem (também conhecido como ETIAS) entrar em funcionamento, todos os viajantes que entrarem no espaço Schengen pela primeira vez terão de ver os seus dados biométricos recolhidos. “É algo que vai consumir muito tempo numa fase inicial”, antecipa. “Há evidências de que sistemas de entrada muito maus acabam por dissuadir as pessoas”.
Virá a moda de ‘Bridgerton’ ajudar à recuperação?
Então, o que pode ser feito? Para Marcy Zyonse, a VisitBritain deveria gastar o seu orçamento destinado ao marketing a atrair influenciadores e conselheiros de viagens para destinos menos conhecidos. Como uma autodeclarada apaixonada pelo Reino Unido, que considera Londres “uma versão melhor de Nova Iorque”, argumenta que a motivação para viajar depois da pandemia clama por aventuras “épicas”, com abordagens necessariamente diferenciadas. Vídeos em câmara lenta dentro do elevador do arranha-céus londrino The Shard, ou algo mais selvagem no Lake District, podem atrair gostos nas redes sociais, sugere.
Esta especialista também acredita que a “maioria” das viagens em família dos americanos são motivas pelas escolhas das crianças. Marcy Zyonse, por exemplo, foi para a Grécia para dar à filha uma experiência ao estilo do filme “Mamma Mia!”. E acrescenta que o Reino Unido “precisa de ter jovens a fazer publicações nas redes sociais usando uma coroa, experimentando o chá da tarde ou fazendo alguma atividade ao estilo de ‘Bridgerton’ [série de sucesso da Netfix]”.
Ainda assim, daria luz verde à próxima grande campanha da VisitBritain. Com lançamento no final de 2024, a campanha “Starring Great Britain” vai desenvolver-se à volta de locais de filmagens [de filmes e séries], conta Patricia Yates, acrescentando que a sua equipa quer promover um estilo de viagens mais barato e fora das épocas altas.
Para Patricia Yates, o novo governo oferece uma oportunidade para fazer crescer a indústria. Contudo, avisa que o Reino Unido precisa de relançar a sua reputação internacional, desejando “ser visto internacionalmente como um país acolhedor, com diversidade cultural, vibrante. Um país para visitar, onde os filhos podem estudar, e onde podem investir”.
Com o novo governo a prometer mudança desde o primeiro dia, pode ser que os sonhos desta responsável se tornem uma realidade em breve.