Manifestantes antimonarquia detidos no Reino Unido: perturbação da ordem pública ou liberdade de expressão?

14 set 2022, 08:00
Manifestações contra o rei Carlos III (GettyImages)

Manifestantes anti-monarquia detidos no Reino Unido: abuso de poder ou direito à liberdade de expressão?

Manifestantes anti-monarquia detidos no Reino Unido: perturbação da ordem pública ou mediatismo?

Manifestantes anti-monarquia detidos no Reino Unido: perturbação da ordem pública ou liberdade de expressão? 

Gritos à passagem da família real, um cartaz com teor ofensivo e um papel em branco. Uma série de incidentes a envolver manifestantes antimonarquia desde a morte da rainha Isabel II está a gerar preocupação de que a "mão pesada" da polícia britânica poderá ter um efeito assustador na liberdade de expressão no Reino Unido

Isabel II morreu há seis dias, Carlos foi proclamado rei há cinco, o Reino Unido está de luto, mas nem todos o vivem da mesma forma. De Oxford a Edimburgo foram vários os britânicos que se insurgiram contra Carlos III e a monarquia.

Essas manifestações, ainda que isoladas, resultaram em três detenções nos últimos dias e numa série de reações por parte das autoridades, de associações de direitos humanos e até de Downing Street - todas elas a defender a liberdade de expressão e a enaltecer aquele que é um direito democrático. Porque foram então detidos estes manifestantes e em que contexto protestavam? 

"Quem o elegeu?"

A primeira detenção ocorreu no domingo, quando Symon Hill, de 45 anos, gritou "Quem o elegeu?" sobre Carlos III, durante a cerimónia de proclamação do monarca em Oxford. Em declarações ao The Independent, o homem explicou: "Não tinha nenhuma bandeira ou crachá. Havia algumas centenas de pessoas entre mim e os degraus. Houve uma declaração de luto e certamente não a interrompi. Quando anunciaram que Carlos seria Carlos III, gritei ‘quem o elegeu?’. Algumas pessoas disseram para me calar e eu respondi, mas não as insultei." 

Segundo o The Guardian, Symon foi detido pela polícia por suspeitas de comportamento susceptível de causar assédio, alarme ou angústia sob a Artigo 5 da Lei de Ordem Pública de 1986. A pena máxima é uma multa de 1.000 libras (cerca de 1.152 euros).

"Que se lixe o imperialismo, abolir a monarquia"

No dia seguinte, uma mulher de 22 anos foi detida enquanto protestava durante a proclamação do rei Carlos III, desta vez em Edimburgo, na Escócia. A jovem, chamada Mariángela, foi vista a segurar um pedaço de cartão no qual se podia ler: "Que se lixe o imperialismo, abolir a monarquia". Desta vez, parte da multidão aplaudiu a detenção da manifestante, apesar de também se terem ouvido outros a defender o direito à liberdade de expressão da jovem. A polícia escocesa explicou que a mulher foi detida por "disrupção de paz".

"República agora"

Também na segunda-feira um homem foi detido depois de ter gritado na procissão que acompanhava o caixão da rainha pela Royal Mile em Edimburgo. As testemunhas, citadas pela imprensa britânica, dizem ter ouvido alguém a gritar "República agora". Segundo o The Guardian, o homem aparentemente "importunou o príncipe Andrew".

Estes dois últimos manifestantes foram mesmo acusados de violação da paz pública ou social e enfrentam agora uma pena máxima de um a cinco anos de prisão e/ou uma multa de 5.000 libras (cerca de €5.761). 

O papel em branco

Com as polémicas à volta destas detenções e do porquê - uma vez que o Reino Unido é uma democracia, apesar de ter uma monarquia constitucional - a Polícia Metropolitana emitiu um comunicado no qual defendeu que as pessoas "têm absolutamente o direito de protestar" contra a monarquia e que o órgão tem "deixado isso claro para todos os polícias envolvidos na operação". Mas uma coisa é certa: as detenções aconteceram.

Dizer ainda que esta nota por parte das autoridades britânicas foi divulgada como resposta a um vídeo que tem circulado nas redes sociais e no qual é possível ver e ouvir um polícia a pedir informações a um homem que segurava um pedaço de papel em branco e que disse ter a intenção de escrever "Não é o meu rei". O agente limitou-se a dizer que a mensagem poderia "ofender as pessoas".

"Acabei de ir à Praça do Parlamento e segurei um pedaço de papel em branco. Um polícia veio e pediu-me os meus dados. Ele confirmou que se eu escrevesse “Not My King” (não é o meu rei), iria deter-me sob a Lei de Ordem Pública porque alguém poderia ficar ofendido", afirmou o autor do vídeo, Paul Powlesland, no Twitter.

Mas não foi só a Polícia Metropolitana que reagiu. O gabinete da primeira-ministra, Liz Truss, também emitiu um comunicado, dizendo que o direito ao protesto continua a ser uma "pedra-angular para a democracia". 

"Não serei levada a comentar casos individuais que são assuntos operacionais para a polícia. Em termos mais gerais, este é um período de luto nacional para a grande maioria do país, mas o direito fundamental ao protesto continua a ser a pedra angular da nossa democracia", lê-se na nota.

Já as associações britânicas de direitos humanos declaram que as detenções de manifestantes antimonarquia após a morte da rainha Isabel II são "profundamente preocupantes". Ruth Smeeth, diretora-executiva do Index on Censorship, disse ao The Guardian que "o direito fundamental à liberdade de expressão, incluindo o direito de protesto, é algo a ser protegido independentemente das circunstâncias".

Já Silkie Carlo, diretora da Big Brother Watch, defendeu que as autoridades tinham o "dever de proteger o direito das pessoas de protestar tanto quanto têm o dever de viabilizar o direito das pessoas de expressar solidariedade, tristeza ou prestar as suas homenagens".

Afinal, o que diz a lei sobre o direito ao protesto?

Segundo a lei britânica, todos os cidadãos têm direito ao protesto pacífico. Embora não haja um direito específico previsto na lei, este está consagrado nos direitos à liberdade de expressão e liberdade de reunião, protegidos respetivamente pelos artigos 10 e 11 da convenção europeia sobre Direitos Humanos, que foi diretamente incorporada ao direito interno britânico.

As limitações ao direito de protestar na Inglaterra e no País de Gales foram estabelecidas na Lei de Ordem Pública de 1986 e este ano na Lei de Polícia, Crime, Sentença e Tribunais (PCSC). Esta última tornou a legislação bastante mais rigorosa e, consequentemente, o controlo mais apertado. Na altura, o projeto de lei foi amplamente criticado, mas acabou por ser aprovado no parlamento britânico. Esta lei permite às autoridades impor condições aos manifestantes, como o horário de início e fim do protesto, limites de ruído, mesmo quando se trata de apenas uma pessoa. Quem não cumprir, pode ser multado ou se causar "incómodo ou inconveniência grave" mesmo mesmo vir a ser detido.

Há também um delito de disrupção da paz de direito comum e um delito com o mesmo nome existe separadamente na Escócia. A Irlanda do Norte tem a sua própria legislação relativamente aos protestos – a Ordem Pública de 1987 que inclui condições que podem ser impostas às procissões públicas.

Há ainda a destacar uma Treason Felony Act de 1848 que, segundo o The Guardian, ainda está em vigor, o que significa que, tecnicamente, qualquer pessoa que peça a abolição da monarquia pode ser condenada por um crime punível com prisão perpétua. Esta "lei da traição", explica o jornal, não é aplicada num processo desde 1879, sendo que um estudo do YouGov no início deste ano concluiu que 22% das pessoas no Reino Unido apoiam a abolição da monarquia.

"É apenas uma janela mediática que aparece"

Na ótica de Helena Ferro Gouveia, comentadora da CNN Portugal e especialista em relações internacionais, este tipo de protestos "são coisas normais, saudáveis" e, sobretudo, "não deixam de ser exceções". 

"Sendo uma monarquia constitucional, é também uma democracia e os cidadãos têm o direito a protestar. (...) São atos isolados normais que existem e não se deve dar excessiva importância. É a democracia a funcionar", acrescentou. 

Um visão que é igualmente partilhada por Tiago Ferreira Lopes, professor de Diplomacia na Universidade Portucalense: "A monarquia não é unânime. Há uma parte da população que é republicana e grosso modo tem respeito pela rainha e outros acham que este é o momento ideal para aparecer." 

O também comentador da CNN Portugal não acredita que possamos vir a assistir a um escalar destes protestos e defendeu que estas manifestações isoladas não passam de aproveitamento mediático: "É apenas uma janela mediática que aparece. São protestos que têm uma dimensão para serem televisionados, para gerarem imagens televisivas. Atravessar à frente de um carro com um cartaz a dizer "Not my king" é uma imagem televisiva. O gritar "abaixo a rainha" é para criar aquele soundbyte. Serve tudo para chamar a atenção para o fim da monarquia."

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