opinião
Comentador

O copo de água na tempestade – o que acontece ao Reino Unido depois de 45 dias com Liz Truss

CNN
20 out 2022, 18:04
Liz Truss (GettyImages)

Se retirarmos os dias do adeus a Isabel II, o palpite da Economist pecava por optimismo: Liz Truss não durou o mesmo que uma alface, durou menos.

Em menos de um ano, sob um único partido, o Reino Unido terá dois monarcas, três primeiros-ministros e quatro ministros das Finanças – e pode ir ainda a eleições. 

Para um sistema político, semelhante ritmo de mudança é mais do que uma soma de abanões; é não ter chão de todo. Quase como se a Grã-Bretanha fosse uma pequena e velha casca de noz, ao sabor de ondas que todos sabemos serem gigantes. Com a maior inflação em trinta anos, uma guerra no continente europeu, uma crise energética sem precedente e um Inverno que ainda não chegou, a política britânica respondeu à incerteza com instabilidade máxima. 

Liz Truss não foi uma mera tempestade num copo água – só um erro de casting ou uma tormenta passageira –, a senhora Truss é o rachar do copo, à deriva na tempestade.

Hoje, pela uma e meia da tarde, demitiu-se ao fim de apenas 45 dias de mandato. Tal como o sr. Kwarteng, que tinha despedido há menos de uma semana, quebrou assim o recorde de menor longevidade em funções no Reino Unido. Ambos os prévios detentores do feito – menos tempo como ministro das Finanças e como primeiro-ministro, respetivamente – haviam perecido de causas naturais. O caso de Kwarteng e de Truss é manifestamente outro. A sua morte não é mais do que política. E não há ressurreição possível.

Liz Truss esteve menos tempo em Downing Street (45 dias) do que em campanha para chegar a Downing Street (55 dias). Se retirarmos os dias do adeus a Isabel II, o palpite da Economist pecava por optimismo: Liz Truss não durou o mesmo que uma alface, durou menos.

O que se passou ao longo destas semanas é inqualificável num país desenvolvido, numa economia avançada, numa democracia consolidada. Não há palavras, pelo menos não vernaculares, para descrever a paisagem política que se pintou. "Shitshow", "clusterfuck" e expressões do tipo seriam o título mais apropriado. Jornalistas com 30 anos de experiência admitem em coro nunca terem visto nada igual.

Sábado, escrevi aqui na CNN Portugal que os britânicos atravessam um momento de humilhação internacional equivalente à perda do Canal do Suez. Talvez seja pior. Talvez ultrapasse o partido Tory, a sra. Truss e esta crise. Talvez seja o próprio sistema político – parlamentar e maioritário – que apresenta sinais de esgotamento e carece de reforma. Talvez seja o modelo de seleção interna – entregue às bases de militantes – um perigo para partidos que pisam o risco na retórica, como os Conservadores fizeram desde o Brexit. Talvez isso tudo. Mas uma coisa é certa, o partido de Churchill e Thatcher está politicamente esgotado, sem soluções, credibilidade, adesão popular ou protagonistas.

Nos dez minutos que se seguiram à demissão, Jeremy Hunt (atual ministro das Finanças; ficou em último lugar na primeira ronda de sucessão a Boris Johnson) e Michael Gove (deputado com mais experiência de governação na bancada conservadora) puseram-se de parte. Não serão candidatos à liderança, nem tencionam ser PM. Boris Johnson, apropriadamente, está nas Caraíbas. A rivalidade entre Rishi Sunak (ex-ministro das Finanças, que disputou o partido com Truss no Verão) e Penny Mordaunt (ex-ministra de Boris que também foi candidata) faz com que nenhum queira trabalhar para o outro.

Honestamente, não há uma alma viva que saiba o que vai acontecer no Reino Unido. A sra. May, diz-se, está disponível para guarda-mor. Eu estaria atento a Dominic Raab, mas, seja quem for, não significará mais do que um compasso de espera até à chegada de Keir Starmer e o regresso de um governo Labour, doze anos depois. 

Entre tories, incapazes de oferecer previsibilidade em casa face à imprevisibilidade do mundo, antevê-se uma longa travessia no deserto.

Caso Boris regresse – das Caraíbas para candidato à liderança – não é nada claro que consiga manter uma maioria em Westminster; a sua popularidade junto dos seus próprios deputados é escassa e haveria certamente vários cruzares de Câmara, da direita para a esquerda, de quem não esquece a sua muito recente implosão como primeiro-ministro.

Tremor de Truss

O dia de hoje é o culminar de eventos verdadeiramente épicos numa perspectiva parlamentar. Segunda-feira, Penny Mordaunt substituiu Truss no debate parlamentar por "razões imperativas", mas garantindo que "a primeira-ministra não está escondida debaixo de uma mesa", algo que a própria inusitadamente confirmaria, entrando momentaneamente na sessão, sentando-se na bancada do governo e saindo minutos depois. 

Suella Braverman, ministra da Administração Interna, proclamaria um discurso inflamado contra "a coligação de leitores do Guardian, comedores de tofu e inimigos do crescimento". 24 horas depois, demitir-se-ia por mau manuseamento de informação confidencial. Grant Shapps, opositor e crítico de Truss, suceder-lhe-ia. Em Downing Street, o principal assessor de imprensa de Liz Truss era suspenso por declarações anónimas ao Times. "O Sajid [ex-ministro da Saúde] é um merdas", terá dito. Sajid Javid, que até havia apoiado Truss para a liderança, exigiu o afastamento do detrator. Caso contrário, derreteria o governo em pleno plenário. 

Quarta-feira, os trabalhistas converteram uma votação sobre a perfuração do solo para fins energéticos numa moção de confiança ao governo. O objetivo era simples e bem visto: ou expunham a desunião da maioria Tory ou denunciavam a sua inconsciência ambiental, que ainda por cima viola o seu próprio programa. Os dois "whips" – encarregados da disciplina partidária – escreveriam cartas de demissão por não encontrarem condições para fazerem o seu trabalho. Os deputados recusavam preterir o seu círculo eleitoral à primeira-ministra. "Que se lixe. Já não quero saber", desabafaria um deles.

O dia 19, ontem, foi absolutamente alucinante por isso mesmo: o governo estava num limbo entre "já todos percebemos que acabou" e "ainda não sabemos quando e como vai acabar". Kwasi Kwarteng, que era a segunda figura do governo cinco dias antes, votou contra o governo. Liz Truss nem sequer votou.

O Partido Conservador é, neste momento, uma boneca russa de traições – pessoais ou programáticas. Não se consegue mexer sem demonstrar incoerência ou causar desconfiança. A votação, além de novo sinal de exaustão total do partido, revela que o programa (2019) não serve para a realidade de (2022) e que a sra. Truss não tem – não tinha – o jogo de cintura para gerir essa transição.

Seria uma tarefa hercúlea para qualquer um. Sem credibilidade e autoridade, tornou-se impossível.

De Hasta La Vista Baby para I'll Be Back

Tim Shipman, veterano repórter destas andanças, perguntava ontem, munido de humor inglês: "Será errado pensar que a Rússia usar a bomba acalmaria as coisas por aqui?". Provavelmente não. As últimas semanas – esta em particular – são inacreditáveis. Não dá mesmo para acreditar.

Empurrões no lobby parlamentar, insultos, ameaças, pressões, demissões que são e não o eram, vegetais e antissemitismo, foram dias que tiveram tudo – tudo de mau. A reação do comentariado nacionalista a um judeu ser o novo MAI, o rolo compressor da imprensa tablóide a uma mulher visivelmente atordoada, um microfone por desligar que obrigou um entrevistador a pedir desculpa, um backbencher que diz que o governo do seu partido é "uma desgraça" para a história da democracia. 

É óbvio que vai dar um filme. 

Oxalá, para os britânicos, que seja uma curta-metragem. 

Para Liz Truss, não foi mesmo mais do que isso.

Colunistas

Mais Colunistas

Patrocinados