O que se passa com Liz Truss? Há pouco mais de um mês que é primeira-ministra do Reino Unido e já querem correr com ela

17 out 2022, 22:52
Liz Truss (AP Photo)

Há apenas 40 dias no cargo, Liz Truss já teve de substituir o ministro das Finanças e fazer uma inversão de marcha na sua política económica. Além disso, enfrenta uma crise económica e péssimas sondagens. Tem condições para continuar a ser primeira-ministra?

"Liz Truss está numa situação muito frágil", afirma Nuno Sampaio, especialista em Relacões Internacionais, sobre a primeira-ministra britânica. "Isto pode ser visto antes de mais pelas sondagens, que dão resultados historicamente baixos para o Partido Conservador, abaixo até do que tinha Boris Johnson. Pode ser visto também pela situação económica muito volátil que o Reino Unido atravessa - foram os mercados que tornaram insustentavel a permanência do ministro das Finanças. E, por fim, pela posição da bancada do Partido Conservador, onde foi eleita apenas com 25% dos votos dos deputados, onde não param as declarações de crítica à primeira-ministra. Ela cada vez tem menos apoio."

Por tudo isto, o investigador da Universidade Católica não tem dúvidas de que Liz Truss tem pela frente tempos muitos difíceis. "Há uma pressão muito grande dos eleitores, dos mercados e do Partido Conservador. Apenas 13% dos eleitores acreditam que Truss será uma boa primeira-ministra", sublinha Nuno Sampaio. Mas a situação da governante até pode melhorar: "Foi eleita há 40 dias, teremos de esperar para ver se estas alterações anunciadas pelo novo ministro das Finanças irão ou não resultar", diz à CNN Portugal.

Anselmo Crespo, comentador da CNN Portugal, foi mais categórico: "Ela não tem nenhuma condição para continuar como primeira-ministra", disse o jornalista. "Neste momento, ela está como primeira-ministra mas não é primeira-ministra do Reino Unido porque já ninguém consegue levar a sério o que ela diga daqui para a frente. Olhando para aquilo que se está a passar agora, quase que apetece dizer: volta Boris Johnson, que estás perdoado. Porque, objetivamente, Liz Truss conseguiu em pouco mais de um mês colocar em causa a sexta maior economia do mundo e só não a atirou definitivamente para um buraco sem fundo porque, felizmente, há a independência do Banco Central do Reino Unido que conseguiu de alguma forma travar esse abismo."

O que significa a "marcha atrás" na política económica do governo?

O anúncio, a 23 de setembro, por parte do então ministro das Finanças, Kwasi Kwarteng, de um "Plano de Crescimento” envolvendo 51 mil milhões de euros em cortes de impostos, desencadeou uma enorme turbulência nos mercados financeiros e provocou uma "revolta" entre os parlamentares conservadores. Ao substituir Kwarteng por Jeremy Hunt, na sexta-feira, Truss esperava que a mudança na sua estratégia económica agradasse aos parlamentares e acalmasse os mercados. Na prática, Jeremy Hunt cancelou quase todos os cortes fiscais prometidos por Truss durante a campanha para suceder a Boris Johnson. 

Hunt cancelou a redução fiscal de 20% para 19% do escalão mais baixo do imposto sobre os rendimentos [equivalente ao IRS], a isenção de IVA para turistas, congelamento das taxas sobre bebidas alcoólicas e reformas de impostos para trabalhadores independentes e sobre dividendos. O Executivo já tinha sido forçado a recuar noutros cortes prometidos no plano, devido à instabilidade nos mercados financeiros criada pelo impacto nas contas públicas. Assim, o imposto sobre as empresas [equivalente ao IRC] afinal vai aumentar de 19% para 25% em 2023 e o escalão máximo de 45% do imposto sobre os rendimentos [equivalente ao IRS] vai continuar para os contribuintes mais ricos, em vez de ser abolido.

“Vamos inverter quase todas as medidas fiscais anunciadas no plano de crescimento há três semanas que ainda não iniciaram a legislação no parlamento”, admitiu Hunt, numa tentativa de controlar o aumento da dívida pública. “Numa altura em que os mercados estão a exigir, com razão, o compromisso com finanças públicas sustentáveis, não é correto pedir [dinheiro] emprestado para financiar este corte fiscal”, justificou.

Hunt adiantou ainda que o plano de congelamento dos preços de energia doméstica até 2024 será apenas garantido por seis meses, até abril de 2023 e até ser encontrada "uma nova abordagem que custe ao contribuinte significativamente menos do que o previsto, assegurando ao mesmo tempo apoio suficiente para aqueles que precisarem”.

Do plano inicial apresentado em 23 de setembro no parlamento mantêm-se a redução da contribuição para a Segurança Social e um desconto no imposto sobre a compra de habitação [stamp duty] porque estes já começaram a ser legislados. No total, Hunt antecipou que o cancelamento dos cortes fiscais vai permitir angariar mais cerca de 32 mil milhões de libras (37 mil milhões de euros) anualmente em receitas fiscais. 

A primeira-ministra britânica defendeu a decisão de cancelar os cortes fiscais, anunciados há três semanas, com a necessidade de “estabilidade” e um “novo rumo para o crescimento” económico. "O povo britânico quer, com razão, estabilidade, razão pela qual estamos a responder aos sérios desafios que enfrentamos devido ao agravamento das condições económicas”, disse, através da rede social Twitter. Truss disse que aquelas medidas pretendiam "traçar um novo rumo para o crescimento que apoie e alcance as pessoas em todo o Reino Unido”.

The British people rightly want stability, which is why we are addressing the serious challenges we face in worsening economic conditions.
 

We have taken action to chart a new course for growth that supports and delivers for people across the United Kingdom. https://t.co/P3yglx6efZ

 

— Liz Truss (@trussliz) October 17, 2022

Como é que isto afeta a primeira-ministra?

"Aquilo a que nós assistimos hoje por parte do novo ministro das Finanças britânico não foi só um completo retrocesso em relação ao que Liz Truss tinha anunciado, foi ele a dizer aos britânicos: calma, nada do que a primeira-ministra anunciou que ia acontecer, vai acontecer", explica Anselmo Crespo. "Por um lado, isso demonstra bom senso. Jeremy Hunt veio dizer aos mercados aquilo que os mercados precisavam de ouvir." Mas isso também significa que "toda a política económica que Liz Truss defendia e tinha anunciado não se vai concretizar". Isto é uma enorme descredibilização da primeira-ministra.

Alguns conservadores disseram que a tentativa de Truss de culpar Kwarteng pelo fiasco do plano fiscal poderá virar-se contra ela. “A estratégia económica era o plano da Truss. Ela não pode simplesmente desassociar-se disso”, disse uma fonte do partido, citada pelo Financial Times.

E, apesar de muitos saudarem a nomeação de Jeremy Hunt, um moderado conservador, outros alertaram que ele não terá capacidade de salvar Truss. “Jeremy é uma escolha sensata, mas não tem experiência económica”, disse um ex-ministro. “Não tenho certeza se ele está bem preparado para lidar com esta crise.”

Neste momento, "já não está em causa a popularidade mas a competência da senhora Truss", afirma Nuno Sampaio. Para este especialista, o facto de se tratar de uma mulher na chefia do governo não faz qualquer diferença: "Estamos a falar de um país que teve Margaret Thatcher como primeira-ministra e que teve também Theresa May. Eu acho que essa questão não se coloca. Boris Johnson era um homem e quando os deputados do Partido Conservador sentiram que ele tinha de sair não hesitaram em agir."

“Ela nunca vai melhorar, é uma questão de quando, não se, ela vai” ser deposta, disse um parlamentar, citado pelo Financial Times. “É uma questão de saber o que é menos embaraçoso para nós agora: a dor de se livrar dela ou a dor de mantê-la”, acrescentou outro. “A inversão de marcha mudou esse cálculo" - por agora.

É possível demitir Liz Truss?

Já esta noite, em entrevista à BBC, Liz Truss pediu desculpa pelos “erros que foram cometidos” durante o seu primeiro mês enquanto chefe de Governo, mas sublinhou que os erros cometidos já foram “corrigidos” e que seria uma “irresponsabilidade” não o ter feito. E garantiu que irá continuar no cargo: “Eu vou liderar os Conservadores nas próximas eleições. Não estou preocupada com debates internos do Partido Conservador. O importante é que fui eleita para este cargo para servir o meu país. Estamos a atravessar tempos difíceis, não podemos simplesmente passar o nosso tempo a falar do Partido Conservador. É essa a mensagem para os meus colegas”, disse a líder britânica.

A verdade é que, atualmente, Truss está protegida pelas regras do partido, que afirmam que ela não pode enfrentar uma moção de censura até setembro de 2023: ou seja, até passar um ano após ter sido eleita para suceder Boris Johnson. No entanto, se pelo menos metade dos deputados conservadores apresentarem "declarações de censura" a Graham Brady, presidente do Comité do Partido Conservador, ele será forçado a agir, dizem os analistas. Nessas circunstâncias, Brady teria de dizer a Truss que os parlamentares conservadores queriam que ela fosse embora e, assim, forçá-la a renunciar.

"Como disse um deputado, se tiver de acontecer, vão arranjar forma", diz Nuno Sampaio. "Em política, para além dos mecanismo formais, encontra-se sempre forma. O Partido Conservador é bastante pragmático quando tem de substituir os seus líderes, o que já fez várias vezes. A questão é que o Partido Conservador acaba de sair de eleições e tenta medir o que é mais prejudicial: não substituir Liz Truss e continuar com uma primeira-ministra que não é popular; ou substituir Liz Truss e dar ao país a imagem de que é um partido instável."

"A democracia britânica tem particularidades - só isso é que faz com que Liz  Truss possa estar neste limbo e possa ter uma espécie de aval que lhe permite estar no poder durante quase um ano a não ser que a própria caia em si e ganhe consciência de que neste momento ninguém a leva a sério", afirma Anselmo Crespo, que espera, no entanto, que isso aconteça: que Liz Truss tenha "o bom senso de compreender que neste momento é mais prejudicial ao Reino Unido do que benéfica".

O ideal seria, portanto, diz Nuno Sampaio, "haver um candidato que reunisse uma unidade dentro do partido, uma solução que fosse uma tábua de salvação" e que permitisse uma transição sem grandes sobressaltos e sem necessidade de haver uma nova corrida à liderança.

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